Editorial coletivo
Por que ler e citar nossas Revistas de História?
Lemos e citamos nossas Revistas de História o suficiente?
Nas últimas três décadas, o lugar e o papel dos artigos científicos publicados nos periódicos ampliaram-se significativamente no campo das Humanidades, mesmo que este processo seja resultado, em parte, da indução da CAPES, a agência de avaliação da pós-graduação nacional. No entanto, apesar do crescente volume de artigos e de revistas publicados (incluído periódicos discentes), não observamos um crescimento equivalente nos usos destas referências, tanto em outros artigos, teses e dissertações e livros quanto com sua presença em ementas de cursos de graduação e pós-graduação. Caberia perguntar: será que lemos e acompanhamos os artigos que saem nos periódicos, ao menos, nas áreas de nossas especialidades?
A resposta parece ser não, o que pode indicar uma certa distorção: apesar de ser um elemento altamente valorizado na avaliação dos programas de pós-graduação, e envolver um grande trabalho de avaliação e edição por parte das equipes editoriais de periódicos, sua inserção no cotidiano do pesquisador em História não parece ser central. Se tomarmos como certo que os artigos deveriam representar os primeiros resultados de pesquisas originais, não caberia a nós, como comunidade, valorizá-los? Nos arriscamos a dizer que duas ações deveriam ser pensadas de modo a contribuir com uma mudança neste quadro: primeiramente, uma ampliação nos usos de artigos científicos na prática de pesquisa, além disso, o reconhecimento dos trabalhos realizados pelas equipes editoriais (editores de periódicos e avaliadores/pareceristas, em especial).
É um consenso partilhado entre nós a importância dos livros autorais como fruto da consolidação de pesquisas originais, muitas delas acumuladas ao longo de anos. Os artigos de periódico, no entanto, podem ter outra função: a de apresentar novidades de pesquisas, de abordagens, de revisões do campo historiográfico, de reflexões sobre a docência e sua prática etc., cujo caráter exploratório é sempre bem-vindo. Seria salutar que alguma reflexão sobre seus formatos estivesse presente nos nossos espaços formativos. Mas provavelmente a questão passe por um gargalo: como nós, enquanto campo, desejamos potencializar a leitura e uso dos artigos publicados se durante a formação do historiador (no nível de graduação e pós-graduação) a imensa maioria dos itens bibliográficos das ementas disciplinares são de livros? E mesmo os textos obrigatórios valorizam capítulos muito mais que artigos? Sem uma formação que prepare a comunidade historiadora para consultar, usar e refletir sobre este tipo de referência dificilmente este quadro se alterará.
Observando o que as revistas do campo têm feito ultimamente, cabe apontar que utilizamos muito pouco o que oferecem para reflexão e atividades de formação. Além dos tradicionais dossiês, as seções de debate, informes de pesquisas, entrevistas, blogs, entre outros, e mais recentemente lives e discussões online que aumentaram progressivamente com a pandemia, quase nada disso parece ser material orgânico de discussão sobre seus temas e produções. Poucos são os cursos que promovem reflexão e acompanhamento de revistas nas áreas especializadas, dentro e fora do Brasil, o que pode ser especialmente significativo na pós-graduação devido ao fato dos periódicos serem veículos de comunicação das pesquisas mais recentes, bem como espaços de interações recorrentes. E o que dizer de cursos que promovam atividades formativas acerca da produção editorial em seus vários níveis, até mesmo de avaliadores, o que conta com ainda experiências inovadoras muito pontuais.
Nada disso fará sentido se não investirmos na valorização do trabalho editorial como um todo: a atuação dos editores, conselhos, assistentes e avaliadores. Este processo envolve ao menos dois âmbitos: (a) reconhecimento institucional do trabalho daqueles envolvidos no processo de edição de um periódico; e, (b) reconhecimento do trabalho na elaboração dos pareceres dos artigos avaliados.
A atuação das equipes, em seus mais variados níveis, requer um reconhecimento institucional que talvez deva ter um forte arrimo dentro de nossos próprios departamentos, programas, universidades, sem contar nossa avaliação como pesquisadores e docentes. A condução e execução dos trabalhos dos periódicos requer horas a fio de trabalho voluntário em prol do campo científico e, na imensa maioria das vezes, sequer é levado em conta como atividade pelas instituições – salvo raríssimas exceções. O mesmo se pode dizer dos trabalhos dos discentes envolvidos nos processos de editoração de periódicos que deveriam ter computadas, ao menos, as horas que essas atividades tomam, se as entendemos realmente como experiência central na sua formação. Os editores arcam com o tempo, o acúmulo de trabalho (vale dizer que quanto menor o periódico, mais o trabalho é centralizado em poucas pessoas), a dificuldade de encontrar pareceristas especialistas, para garantir a publicação dos números na periodicidade mais adequada possível.
Infelizmente não é muito diferente no trabalho dos pareceristas. Na imensa maioria, temos uma atuação praticamente voluntária e anônima, em que a demanda pela sua grande especialização e qualidade do parecer tem um mínimo de reconhecimento (uma declaração de atividade realizada, a ser computado em relatórios de atividades de departamentos e/ou no programa), que é bem aquém da contrapartida ofertada. Não à toa, não há revista que não enfrente atualmente dificuldade em se encontrar pareceristas, e ainda mais dispostos e com tempo para dedicação às avaliações. Enquanto não valorizarmos o trabalho dos pareceristas como produção intelectual sumamente qualificada, novamente estaremos com poucas possibilidades de reverter o quadro. Ainda mais diante dos novos desafios que se colocam às revistas hoje em dia para que sejam veículos muito mais dinâmicos e ativos na interação com a comunidade, e menos simples repositórios de textos.
Arriscamos dizer que o reconhecimento de todas essas etapas de produção e avaliação pode apontar para um saudável caminho contrário ao produtivismo, em prol de uma cultura de maior leitura e interação com os periódicos. Alterar a cultura consolidada da área no que toca às revistas, e incentivar uma maior experimentação diante das possibilidades atuais das plataformas digitais é algo mais que bem-vindo atualmente, mas que demanda tempo precioso de trabalho de todas e todos nós.
Nada disso é possível sem recursos. Editar um periódico de qualidade exige recursos financeiros no pagamento de equipes especializadas – revisão, tradução, diagramação, secretários/assistentes editoriais, marcação XML, hospedagem de sistema de gerenciamento do fluxo editorial, DOI, entre outros. A mudança do suporte de papel para o digital pode ter apresentado uma ideia ilusória de que os custos se reduziram. No entanto, de modo geral, os custos ficam equivalentes ou maiores, na medida em que trabalhos mais especializados se tornaram imperativos, assim como a necessidade de criação/disponibilização de sistemas que garantam o acesso digital no curto, médio e longo prazo. Neste sentido, financiar um livro é muito mais fácil do que uma revista acadêmica que exige trabalho constante e qualificado que não pode ser como que sorrateiramente embutido nas tarefas de docência e pesquisa.
Neste sentido, a demanda por recursos financeiros é mais que urgente, seja nacionalmente, seja em nossas instituições e programas. Sua falta tem levado ao encerramento da atividade de vários periódicos, desde pequenos títulos até mesmo revistas do mais alto estrato no sistema de avaliação nacional. Uma posição hegemônica dentro da área de história e recorrente em grande parte das humanidades é que os periódicos não devem realizar cobranças de taxas, seja dos autores (normalmente nomeadas como ‘taxa de processamento de artigo’, APC, article processing charge), seja dos leitores (taxas de assinaturas ou de acesso). Deste modo, e considerando que o vínculo da grande maioria das revistas é com as instituições de ensino superior (IES) públicas, as alternativas são as chamadas públicas da modalidade programa editorial. Dentre estes sistemas de financiamento são poucos os que contemplam os novos periódicos ou os emergentes; em geral, o foco tem sido nos periódicos indexados nas grandes bases de dados nacionais e internacionais. As alternativas para os periódicos novos e emergentes seriam as Fundações de Apoio e recursos das próprias IES, no entanto, têm sido cada vez mais raros esses editais. Ainda assim, raramente essas agências financiadoras contemplam este grupo. O estrangulamento financeiro dos periódicos alija as comunidades de pesquisa no seu processo de crescimento e consolidação, além de comprometer e reduzir a pluralidade de tópicos de pesquisa e, com isso, a bibliodiversidade do campo.
Diante cenário nacional de descaso e desfinanciamento das pesquisas, nossa atuação política é lutar pelo financiamento sempre! Mas é fundamental lembrar também o quanto pode ser crucial uma cultura de pesquisa e formação que valorize as revistas científicas da área, no âmbito do uso e dos trabalhos para sua produção.