Prometeica. Revista de Filosofía y Ciencias, ao IV, N. 10, verano 2015
CORRELAÇÕES HISTÓRICAS NOS OITOCENTOS
Historical Correlations in the 1800s
(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, campus São Roque, Brasil)
(UNIP, Brasil)
O século XIX foi um período histrico marcado por grandes transformaçes sociopolíticas, geográficas, filosficas e científicas oriundas, em grande parte, dos ideais ps-revolução do século XVIII e da ascensão da burguesia. A formação dos Estados-nação europeus e a dominação imperialista do mundo por naçes como Inglaterra, França, Itália, Rssia e Estados Unidos da América, associadas à crescente racionalização da ciência e aos avanços tecnolgicos sem precedentes, são características indeléveis dos Oitocentos. A visão mecanicista do mundo e a tentativa de explicar os fenmenos sociais por meio dos métodos estatísticos também são fatores inerentes ao pensamento científico do período. O positivismo e as ideias revolucionárias de Charles Robert Darwin e Alfred Russel Wallace são, igualmente, marcas do século que, transformando a sociedade e a economia, também influenciaram o modo de pensar da atualidade.
Palavras-chave: século XIX | histria sociopolítica | economia | ciência.
The nineteenth century was a historical period marked with major sociopolitical, geographical, philosophical, and scientific changes that derived, mostly, of the post-revolutionary 18th-century ideals and the rise of the bourgeoisie. The consolidation of European Nation-States and the imperialism over the world promoted by nations such as England, France, Italy, Russia and the USA, associated with the growing scientific rationalization and technological advancements are indelible marks of the 1800s. The mechanistic view of the world elicited by Science, as well as the attempt to explain social phenomena with statistical methods are also inherent features of the period. The positivist thought and the revolutionary ideas spread by Charles Robert Darwin and Alfred Russel Wallace are, likewise, traits of such a century that, by changing society and economy, also influenced the way we think currently.
Keywords: Nineteenth century | Socio-Political History | Economy | Science.
Os Oitocentos foram um período histrico marcado por intensas transformaçes geopolíticas, científicas e sociais, principalmente na Europa. O mundo ps-revoluçes (com destaque para a Francesa14 e a Industrial15) vislumbrou avanços enormes na produção, com emprego cada vez mais intenso de novas tecnologias; as crises na esfera social que culminariam, mais tarde, com as drásticas mudanças políticas de início do século XX (como a Revolução Russa16, por exemplo), pareciam quase insignificantes, ao menos no início dos
Oitocentos. Na França, a burguesia triunfou aps a Revolução Francesa; em diversos países europeus, como Holanda, Dinamarca e Bélgica, atividades industriais expandiram-se sobremaneira; aos poucos, as atividades manufatureiras substituíram as antigas formas de trabalho essencialmente ligadas à agricultura. Mudanças na postura frente à pesquisa científica também foram sentidas, tendo sido celebrados contratos em fábricas e universidades em diversas regies europeias, particularmente na recém-unificada Alemanha: imperadores e governantes percebiam no desenvolvimento tecnolgico uma arma para o crescimento econmico e para o aumento do poder político.
Sem nos determos detalhadamente sobre as revoluçes que influenciaram os Oitocentos, nosso artigo procura discutir as possíveis relaçes existentes entre o contexto político e socioeconmico e as correntes do pensamento científico e filosfico vigentes no século XIX de nossa era.
Diversas características podem ser atribuídas aos Oitocentos, porém apontaremos duas: taxas intensas de crescimento demográfico e acelerada industrialização europeia e de outros continentes. Em função da tremenda explosão econmica (embora ela tenha ocorrido de maneira desigual entre os países europeus), surgiram duas classes sociais bem definidas17. Esta dicotomia de classes não afetou somente a economia: intensas mudanças na paisagem e na geografia geopolítica do Velho Mundo foram resultado direto da ação dos trabalhadores (operários e proletários) e da burguesia (comerciantes, proprietários de terras, entre outros).
Os movimentos nacionalistas dominaram a política europeia oitocentista. Povos unidos por uma língua comum e dialetos correlatos (alemães e italianos, principalmente) tentavam formar o que hoje se denomina Estado-nação
17. Estas classes eram a burguesia e o proletariado. Para maiores detalhes, recomendamos a leitura de Rubel & Crump (1987).
autnomo; outros povos, tais como hgaros, irlandeses e tchecos, buscavam independência, uma vez que eram dominados por estrangeiros.
A crença em progresso e mudanças, disseminada largamente nas ciências e na literatura (DRUCKER, 2002), motivou muitos indivíduos ao desenvolvimento de uma cultura industrial que pretendia alcançar novos e promissores mercados. Para operários de fábricas e agricultores, entretanto, as condiçes de trabalho eram precárias e, para os primeiros, os salários eram baixos e a qualidade de vida aviltante.
A grande revolução de finais do século XVIII e primeira metade do século seguinte foram um trunfo para a indtria capitalista e, por extensão, da classe mais abastada (i.e., membros da sociedade burguesa dita liberal). Pode-se afirmar, também, que, economicamente, estes ganhos foram capitalizados não pela economia do mundo moderno, mas por alguns países europeus e pelos Estados Unidos da América (HOBSBAWM, 2010). Em relação a este timo, a industrialização ocorreu de forma mais incisiva aps a Guerra Civil Americana (1861-1865), também conhecida como Guerra da Secessão, tendo sido um dos maiores responsáveis pelo crescimento da economia norte-americana desde então.
O capitalismo de cunho monopolista e, de certa forma, imperialista (e que resultou na hegemonia econmica e no domínio de países como Inglaterra, França, Bélgica, Holanda, Alemanha e EUA sobre África, Ásia e Américas) marcou o século XIX do ponto de vista econmico e geopolítico, modificando fronteiras e alterando a organização das sociedades. A busca por novos mercados para além dos muros europeus e norte-americanos a fim de expandir os negcios e buscar matérias-primas fez com que o mapa-mndi dos Oitocentos fosse praticamente dominado pelas potências europeias, a Rsia e os Estados Unidos. A África (Figura 1) foi praticamente dividida em sua totalidade pelas naçes europeias, com destaque para a Inglaterra e a França. Na Ásia, Índia, Hong Kong, Cingapura, Austrália e Nova Zelândia foram importantes territrios conquistados pela Inglaterra, que, grosso modo, pode ser considerada a ‘dona do mundo’ oitocentista18. A Rsia conquistou regies
18. Outra importante ex-colnia inglesa (dividida com a França) foi o Canadá.
caucasianas e travou batalhas contra a Inglaterra por territrios no Afeganistão e na Pérsia. Em relação ao domínio dos EUA, o Alasca foi comprado da Rssia, o Texas foi comprado do México, o Havaí foi anexado como mais um estado, além de várias ilhas da Polinésia.
Em termos de ciência, as pesquisas em voga à época voltavam-se, primariamente, a questes relacionadas à matéria, imprimindo-lhes um caráter mecanicista, com o uso da lgica e da matemática para tentar explicar os fenmenos da natureza e da prpria sociedade. Esta tendência mecanicista foi, em parte, derivada das ideias iluministas setecentistas19. As ideias de progresso e de um futuro promissor para a humanidade pautavam os pensadores da época que, de certa forma, mantinham-se alheios a tantas guerras, revoltas, greves e miséria que se espalhavam pelo mundo.
19. Também conhecida como a Idade da Razão, o Iluminismo foi um período compreendido entre meados do século XVII e finais do século posterior. Forças culturais e intelectuais enfatizavam a razão e a análise em detrimento de linhas tradicionais de autoritarismo (KOSELLECK, 1988). Personagens influentes da época incluem, entre tantos outros, Bacon, Voltaire, Kant, Descartes e Newton.
Figura 1. Domínio imperialista na África do século XIX por países europeus20.
Esse raciocínio lgico-matemático pretendia conhecer a realidade e interpretá-la, utilizando um método científico infalível e livre de vises parciais. O pano de fundo de tal pensamento alinhava-se com os desenvolvimentos técnicos que melhoravam as condiçes de vida dos homens, não havendo espaço, portanto, para sistemas metafísicos ou crenças supersticiosas – afinal de contas, a razão deveria ser enfatizada por meio da experiência e do empirismo (VERGEZ & HUISMAN, 1984).
As ciências estatísticas foram impulsionadas de forma marcante, notadamente na tentativa de elucidação dos fenmenos sociais. Os recenseamentos, cálculos administrativos, contábeis e econmicos foram mecanismos utilizados por franceses, alemães e ingleses com o uso das ferramentas de análise matemática. Para Judensnaider (2012), os dados censitários e estatísticos, tais como os relacionados a doenças, preços, pessoas
20. Fonte da ilustração: <http://revistaescola.abril.com.br/img/historia/216-africacolonizacao.gif>; acesso em: 19 jan. 2015.
condenadas, mortes, nascimentos, entre outros, estavam disponíveis para serem analisados e quantificados.
A ciência apresenta-se, portanto, como um corpus metodolgico preciso que fazia uso intenso e irrefutável da observação, dedução, comparação e testes. A inteligibilidade da realidade circundante spoderia ser feita, portanto, por meio de pressupostos científicos (leis, postulados etc.). A analogia das ciências da natureza (ditas ‘exatas’, tais como as ciências físicas, químicas e biolgicas) foi, paulatinamente, aplicada às ciências sociais para que fosse possível interpretar as leis que regiam a sociedade. Esse ambiente motivaria o surgimento das sociedades científicas oitocentistas, cujo escopo principal era o desenvolvimento de pesquisas nas áreas de ciências sociais e humanas (BOCK et al., 2001).
A burguesia, vitoriosa desde o século XVIII com a queda do chamado Antigo Regime21, parecia imperar sobre todos os campos da vida político-social. Será a partir deste contexto de progresso e de avanços que buscaremos compreender uma corrente de pensamento tipicamente oitocentista: o positivismo.
Definir o positivismo em linhas gerais não é tarefa fácil. Vergez & Huisman (1984) o definem como sendo uma doutrina filosfica pela qual somente podemos adquirir conhecimento das coisas que experimentamos por meio dos sentidos. Richardson (1999) complementa esta definição ao admitir que o positivismo é uma forma poderosa de empirismo que rejeita a metafísica e a teologia, procurando o conhecimento além do escopo da experiência; o pensamento positivista fundamenta-se na investigação experimental e na observação como as icas fontes de conhecimento substancial. Kremer-Marietti (2007) aponta Auguste Comte (1798-1857) e John Stuart Mill (18061873) como os principais idealizadores do positivismo (que passou a ganhar força maior a partir de meados do século XIX).
21. Este termo é aplicado ao modo de vida tipicamente encontrado entre as populaçes da Europa entre os séculos XVI e XVIII. Monarquias absolutas e capitalismo social são, respectivamente, as características políticas e econmicas marcantes desse período histrico (TOCQUEVILLE, 2010).
O pano de fundo sobre o qual o positivismo se desenvolveu inclui as perspectivas sobre a construção do conhecimento que, desde Galileu Galilei (final do século XVI), apoiaram-se em uma ciência experimental. Esta ciência experimental – associada a maiores graus de certeza e validade – pretendia explicar a natureza de forma eficaz e objetiva, tornando-a, por sua vez, il à vida humana. A experimentação e o uso da lgica e da matemática para explanar fenmenos naturais atingem, durante o século XVII, patamares tremendos, principalmente com o físico, filsofo natural, astrnomo e alquimista sir Isaac Newton (1642-1727)22. Com as ideias iluministas do século XVIII, dogmas antigos foram sendo questionados à luz das ‘novas’ explicaçes da natureza.
É inegável que o sentimento de progresso e evolução imprimia ritmo novo às ideias científico-filosficas dos Oitocentos. No âmbito das ciências naturais, as ideias de evolução e seleção natural dos organismos vivos defendidas por Charles Robert Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913) praticamente de forma paralela (embora a figura de Darwin costume ser mais rotineiramente proeminente) trouxeram questionamentos aos paradigmas vigentes, de forma mais incisiva às ideias criacionistas (WILSON, 2000). Assim, Darwin e Wallace propunham uma teoria de certa forma positivista ao inferirem que as espécies evoluíam no tempo histrico e no espaço físico, a partir da seleção natural e da sobrevivência dos mais aptos: estava sendo colocada em cheque, portanto, a crença na existência de um ser superior, criador de tudo e todos23.
Atingir as leis que explicariam o mundo físico e a regência do universo era uma meta necessária no ideário oitocentista, uma vez que se partia de dois princípios básicos: os seres vivos (portanto, a espécie humana inclusa) estavam sujeitos à evolução e a humanidade progredia enormemente, como nunca antes fora presenciado.
Pois bem: foi neste cenário de certa forma paradoxal (o progresso do capitalismo transformava a paisagem urbana, introduzindo novos hábitos e costumes, ao passo que o proletariado, explorado de forma cruel, iniciava movimentos grevistas para que suas reivindicaçes fossem ouvidas24) que Comte desenvolveu suas ideias. O positivismo comteano encontrara terreno fértil em um mundo de contrastes cada vez mais intensificados. Como resolver as questes da miséria e da pobreza em meio a tamanha fartura e crescimento econmico? O ideal de progresso e ordem social25 tentaria estabelecer parâmetros para tratar das questes que envolviam as ondas de fome endêmicas e doenças que se espalhavam pelo mundo e, acentuadamente, entre a classe operária por meio da ciência e da tecnologia, as quais dispunham de ferramentas capazes de sanar tais problemas da humanidade. Para Comte, filho de um fiscal de impostos francês cuja vida familiar parece ter sido turbulenta e instável, a ordem poderia ser uma condição sine qua non para que a humanidade pudesse progredir (COMTE, 1978).
O conceito de “positivo” envolvia diferentes conotaçes:
Considerada de início em sua acepção mais antiga e comum, a palavra positivo designa real, em oposição a quimérico. Desta tica, convém plenamente ao novo espírito filosfico, caracterizado segundo sua constante dedicação a pesquisas verdadeiramente acessíveis à nossa inteligência, com exclusão permanente dos impenetráveis
mistérios de que se ocupava, sobretudo em sua infância. Num segundo sentido, muito vizinho do precedente, embora distinto, esse termo fundamental indica o contraste entre il e ocioso. Lembra então, em filosofia, o destino necessário de todas as nossas especulaçes sadias para aperfeiçoamento contínuo de nossa verdadeira condição individual ou coletiva, em lugar da vã satisfação duma curiosidade estéril. Segundo uma terceira significação usual, essa feliz expressão é frequentemente empregada para qualificar a oposição entre a certeza e a indecisão. Indica assim a aptidão característica de tal filosofia para constituir espontaneamente a harmonia lgica no indivíduo, e a comunhão espiritual na espécie inteira, em lugar dessas didas indefinidas e desses debates intermináveis que devia suscitar o antigo regime mental. Uma quarta acepção ordinária, muitas vezes confundida com a precedente, consiste em opor o preciso ao vago. Este sentido lembra a tendência constante do verdadeiro espírito filosfico a obter em toda parte o grau de precisão compatível com a natureza dos fenmenos e conforme às exigências de nossas verdadeiras necessidades; enquanto a antiga maneira de filosofar conduzia necessariamente a opinies vagas, comportando apenas uma indispensável disciplina, baseada numa repressão permanente e apoiada numa autoridade sobrenatural. É preciso, enfim, observar especialmente uma quinta aplicação, menos usada que as outras, embora igualmente universal, quando se emprega a palavra positivo como contrária a negativo. Sob esse aspecto, indica uma das mais eminentes propriedades da verdadeira filosofia moderna, mostrando-a destinada sobretudo, por sua prpria natureza, não a destruir, mas a organizar (COMTE, 1978, p. 61).
Ainda jovem, Comte estudou na Escola Politécnica de Paris (EPP), onde importantes figuras do pensamento filosfico-intelectual encontravam-se ativas. Este convívio certamente deve ter imprimido em Comte forte predileção pelo rigor do método científico, especialmente aps ter saído da EPP e lido os pensamentos de Adam Smith (1723-1790), David Hume (1711-1776) e, em especial, Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, mais conhecido como Marquês de Condorcet (1743-1794). Este timo autor inspirou em Comte a ideia de associação entre genialidade científica e avanço da humanidade, combinação essa responsável por conduzir o ser humano à extrema organização social e política iluminada pela Razão (CARITAT, 1993).
Além desses pensadores, o filsofo e economista francês Claude-Henri de Rouvroy, conhecido como Conde de Saint-Simon26 (1760-1825), também foi uma influência importante na vida de Comte. A vida de Saint-Simon foi um misto de utopias, aventuras transnacionais, estudos enciclopédicos, fortunas, misérias, tentativa de suicídio e criação de uma religião prpria. Heilbroner & Milberg (2008) discutem que a Igreja Saint-Simoneana (com igrejas na França e filiais alemãs e inglesas), fundada aps a morte de Saint-Simon, era mais aparentada a uma irmandade do que uma institucional eclesiástica propriamente dita27.
Aps o contato com estes diversos pensadores, Comte iniciou uma atividade profissional como professor de matemática e filosofia, ainda casado com Caroline Massin, com quem permaneceu durante 17 anos. Aps o rompimento com Massin, apaixonou-se por Clotilde de Vaux, embora não tenha contraído matrimnio com ela28.
O principal trabalho de Comte é, indubitavelmente, seu Curso de Filosofia Positiva, escrito entre 1830 e 1842, em seis volumes, posteriormente renomeado para Sistema de Filosofia Positiva. A confecção deste material ocasionou a perda de seu cargo como Examinador na EPP: seus ataques incisivos à abstração matemática e seus pressupostos de que as ciências biolgicas e sociolgicas eram as icas e fidedignas ciências ao se apoiarem em métodos experimentais não agradaram aos diretores da instituição.
Comte assumia três postulados gerais: a) sua filosofia positiva (pensamento positivo) deveria imperar entre os homens por meio de estudo da filosofia histrica; b) uma proposta de taxonomia das ciências (de acordo com níveis crescentes de complexidade e generalização) com fundamentação na filosofia positiva (Figura 2); e, c) a possibilidade de reforma prática das instituiçes sociais por meio de um pensamento sociolgico que pudesse determinar a estrutura e os processos de modificação da sociedade.
Figura 2. Hierarquia das Ciências de acordo com o pensamento de Comte. Para ele, a matemática era a ciência menos complexa e menos generalista, oposta das ciências sociais, com suas ineras complexidades e enorme generalização. Nenhuma ciência era superior à outra: a sociologia servia tão somente para relacionar as demais ciências para o entendimento completo da histria do homem (adaptado de PRIYA, 2015).
As ciências naturais foram dicotomizadas por Comte em abstratas e gerais (responsáveis pela descoberta das leis que regiam as classes fenomenolgicas) e em concretas e descritivas (representando a aplicação das leis formuladas pelas abstratas com o intuito de compreender a histria da vida). Da hierarquia das grandes áreas do conhecimento retratadas na Figura 2, Comte apontava, também, a primazia das ciências gerais sobre as concretas: assim, estudos em química deveriam preceder aqueles em mineralogia, e investigaçes sobre bioquímica deveriam ser anteriores aos estudos de zoologia, por exemplo. Este raciocínio fundamentava-se na ideia de que, havendo uma sequência lgica e sucessiva do encadeamento das ciências naturais, seria mais fácil compreender a interdependência entre elas (COMTE, 1978).
O pensamento positivista de Comte, do ponto de vista ontolgico, caracterizava a realidade como sendo algo totalmente apreensível; sua epistemologia partia do princípio de que os fatos e os achados eram verdadeiros e sua metodologia era experimental e manipulativa. Ainda, sujeito e objeto eram encarados como entidades independentes, não influenciáveis entre si no processo de conhecimento (GUBA, LINCOLN, 1994). Comte buscou, assim, uma síntese do que fora elaborado pelas ciências físicas, químicas e biolgicas para a elaboração de seu método ‘seguro’ de obtenção do conhecimento.
Rossi (2000) pontua as ideias comteanas como sendo defensoras da perfeição e da felicidade do gênero humano, adquiridas por meio de etapas (graus) que seguiam uma lei presente na prpria histria da humanidade. Analogamente, admite que Comte aforava a ciência e a técnica como principal fonte de progresso “(...) político e moral, constituindo a confirmação de tal progresso” (ROSSI, 2000, p. 96).
O âmago do pensamento comteano reside no fato de que a reforma do intelecto humano deve ser pré-requisito para quaisquer mudanças na sociedade. As possibilidades técnico-científicas disponíveis para a sociedade seriam a alavanca para que uma ‘nova forma de pensar’ pudesse edificar os patamares de uma Nova Ordem Mundial. A saída para esta estratégia, portanto, parece residir em um caráter “religioso” de sua filosofia: Comte admite que a sociedade perfeita, sine macula, poderia ser alcançada somente por meio da ciência desenvolvida naquele período.
A filosofia positiva de Comte admitia, também, que a sociologia (“Física Social”) era o derradeiro estágio do desenvolvimento científico; desta forma, Comte raciocinava que o intelecto do homem também poderia ser categorizado em uma taxonomia tríade de estágios: a fase inicial ou teolgica, a intermediária ou metafísica e a real ou positiva.
O século XIX foi, sem dvida, um período histrico de grande turbulência nas esferas que sustentam as sociedades modernas: economia, política e progresso científico-tecnolgico. Como discutido, o legado de liberdade, igualdade e fraternidade, tão freneticamente pregado pela Revolução Francesa de finais do século XVIII, aos poucos toma corpo na filosofia das ciências, consolidando-se nos ideais capitalistas e modificando o mundo de forma nunca antes vista.
No âmbito científico, as ideias revolucionárias que colocavam em cheque a criação das espécies por um ser divino desde o início do mundo encontram respaldo na filosofia positiva de Comte, apontado aqui como um dos maiores ícones dos Oitocentos. Apresentado como forma de perceber o mundo, o positivismo tornou-se a doutrina que permitia aos burgueses a manutenção da ordem, condição necessária para o progresso da sociedade.
Esgotar este tema é tarefa impossível. Pretendemos, com este ensaio, trazer ao leitor um apanhado geral sobre o cenário do século XIX em que se inter-relacionam aspectos político-econmicos e filosfico-científico-tecnolgicos em uma sociedade que estava, constantemente, sujeita a mudanças em seu modo de pensar e viver.
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