(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Brasil)
O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener, 2005, escrito por Jeffrey Caine e dirigido por Simon Channing Williams e Fernando Meirelles1, 128 min.) é um daqueles filmes que se deve assistir com atenção, tentando não deixar escapar detalhes e atentando-se às falas das personagens. A trama, rica em suspense, ação, ficção, ideologias, cenários magníficos e roteiro esmerado, prende o telespectador ao filme até o final. A produção cinematográfica foi baseada no livro de John Le Carré2.
A co-produção norte-americana e brasileira parece ter dado certo: em O Jardineiro Fiel pode-se observar uma constante instigação à reflexão sobre os aspectos que permeiam a ética (e, por extensão, a bioética) e procedimentos hodiernamente aceitos como fundamentais à Metodologia Científica, ao mesmo tempo em que se equilibram vertentes emocionais e culturais. O filme sai do lugar-comum das ideologias massificantes da cultura dominante, tão frequente em filmes produzidos nos EUA, ao apresentar um enredo denso e com boa dose de fundamentação científica.
Resumindo a histria, encontramos em O Jardineiro Fiel um diplomata britânico de baixo escalão, Justin Quayle (interpretado por Ralph Fiennes), que recebeu uma missão no Quênia3. A esposa de Justin, Tessa (interpretada por Rachel Weisz), é uma ativista e defensora dos direitos humanos que tem como foco principal de suas preocupaçes a pobreza e a justiça social. Justin
1O Jardineiro Fiel foi o primeiro filme falado em inglês dirigido por Fernando Meirelles, que se tornou internacionalmente famoso por Cidade de Deus.
2 Disponível em: http://www.cineplayers.com/critica.php?id=560; acesso em: 15 jul. 2012.
3 O Quênia é um país da África Oriental. Tem como limites geográficos o Sudão do Sul, a Etipia,a Somália, a Tanzânia, Uganda e o Oceano Índico. Sua capital política é Nairobi.
constantemente pede que Tessa evite comprometimentos com os quenianos, os quais são severa e frequentemente atingidos pela pobreza extrema; ela, por sua índole e ideologia, não acata os pedidos de seu marido.
Tessa envolve-se com os problemas locais e tenta desvendar misteriosas relaçes entre uma indstria químico-farmacêutica, o governo inglês e o governo queniano – para isso, alia-se a um jovem médico do Quênia, o Dr. Arnold Bluhm (interpretado por Hubert Koundé), com quem divide segredos não compartilhados com seu marido. Em uma viagem à parte sul do Lago Turkana, no Quênia, Tessa e o Dr. Arnold são brutalmente assassinados.
A morte de Tessa e do Dr. Bluhm é inicialmente atribuída a um crime passional em que o Dr. Arnold é o principal ator. Entretanto, Justin convence-se da existencia de um esquema por trás da morte de Tessa, iniciando, então, uma investigação. Ele adentra áreas em que não era bem-vindo, pois suas pesquisas levam a pessoas que detinham poder, dinheiro e esquemas de corrupção.
Neste artigo, pretendo destacar alguns pontos propostos no filme relacionados à ética médica, à metodologia científica e à ação de agências governamentais que presumivelmente trabalham para solucionar problemas de sade pblica, como a Aids e a tuberculose. O Jardineiro Fiel revela facetas importantes, polêmicas e instigantes da sociedade moderna, remetendo-nos a questionamentos sobre a ação da tecnologia, das descobertas médico-científico-farmacêuticas e da suposta cura das doenças em populaçes de países subdesenvolvidos.
Por se tratar de um filme não baseado em fatos reais, os nomes de empresas, produtos químicos e afins são fictícios, à exceção da droga nevirapine, utilizada como um medicamento para o combate do vírus HIV-I e da Aids1.
1 O nevirapine também é conhecido como viramune. É uma droga anti-retroviral que age como inibidora da transcriptase reversa do vírus HIV (PATEL& BENFIELD, 1996). Apesar de todas as campanhas midiáticas mundiais, a Aids ainda é um grande problema de sade pblica (SANTOS, 2006).
O Jardineiro Fiel apresenta uma empresa, a ThreeBees (traduzida na versão em português como “Três Abelhas”), que testa medicamentos contra a tuberculose (TB) na população queniana. O medicamento é o Dypraxa, produzido pela empresa franco-suíça KDH.
O “casamento milionário” entre a KDH e a ThreeBees é politicamente legitimado por duas outras instâncias: o Governo do Quênia (representado pelo Ministério da Sade) e a Coroa Britânica (representada pela Alta Comissão Britânica). A primeira instância governamental encontra na figura do Dr. Joshua Ngaba seu principal articulador; a Alta Comissão Britânica tem como chefe executivo Sandy Woodrow, apresentado desde o início da trama como amigo de Justin Quayle. Complementando esta união de interesses encontramos Bernard Pellegrin, representando a Coroa Britânica na África. Pellegrin beneficia-se dos lucros gerados pela KDH e pela ThreeBees, mantendo relaçes comerciais com as empresas e com o Ministério da Sade queniano.
A população queniana é testada para TB e para Aids – colhem-se amostras de saliva das pessoas em “Unidades Médicas Mveis” fornecidas pela ThreeBees1. Aqui reside o primeiro problema bioético: os quenianos não são informados de que as amostras de saliva servirão para diagnosticar a presença do vírus HIV e também da bactéria causadora de TB2. Ora, se partirmos da premissa de que bioética é, segundo Singer (1994), uma ética aplicada (prática) que tem como foco principal resolver conflitos e controvérsias morais relacionados às Ciências da Vida e da Sade3 tendo como pressuposto filosfico algum tipo de sistema de valores éticos, a realização de testes com
1 No filme, a ThreeBees é mencionada como sendo a “empresa mais bem-sucedida do Quênia”. Sandy Woodrow constantemente pede para que Justin detenha os comentários de sua esposa Tessa, alegando que ela atrapalha a Alta Comissão Britânica e os interesses da Coroa.
2 O vírus HIV (vírus da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, a Aids) é um lentivírus (um vírus com longo período de incubação associado a doenças neurolgicas e Imunossupressoras; é membro da família dos retrovírus) que leva os seres humanos a progressivamente perderem sua imunidade natural, permitindo que infecçes oportunistas e cânceres possam se instalar no corpo (WEISS, 1993; DOUEK et al., 2009). Várias cepas do gênero Mycobacterium podem causar a tuberculose, especialmente M. tuberculosis. Ao contrário do que muita gente possa imaginar, TB não acomete somente os pulmes: as bactérias podem causar infecçes na pele, em vísceras e outros rgãos. A taxa de mortalidade em pessoas não tratadas pode chegar a mais de 50% dos casos (KONSTANTINOS, 2010).
3 Coletivamente incluídas na grande área denominada Ciências Biolgicas.
medicamentos em uma população humana sem o prévio consentimento dos pacientes fere tais valores. Complementando este raciocínio, podemos encontrar em Vergez e Huisman (1984) uma definição de ética: uma ciência do comportamento que busca explicar, compreender, justificar e criticar a moral de uma sociedade (sendo a moral entendida, aqui, como o conjunto de costumes, normas, princípios e valores que norteiam o comportamento do indivíduo no seu grupo social).
Não ser informado acerca de testes para determinada doença já é um desrespeito ético, mas receber um medicamento novo para tratar doenças, ainda não totalmente testado, é um atentado à bioética. Os quenianos são tratados contra a TB utilizando a droga nova comercializada pela ThreeBees, o Dypraxa1. Este medicamento não tinha, ainda, comprovação de sua eficácia e uma relação precisa de seus efeitos colaterais. O diplomata Justin Quayle, aps a morte de sua esposa e tentando compreender a trama que ela e o Dr. Bluhm tentavam elucidar, acaba descobrindo que mais de sessenta quenianos tratados com o Dypraxa morreram. Seus corpos foram queimados e jogados em um cemitério clandestino; suas fichas médicas desapareceram. Para o governo, é como se não tivessem recebido tratamento algum.
“Cobaias humanas” seria um termo que poderíamos utilizar ao nos referirmos às pessoas tratadas com Dypraxa em O Jardineiro Fiel. Este termo seria indissociavelmente contrário a uma das mais importantes funçes que a bioética supostamente defende, que, segundo Schramm (2002: 14), é “[...] protetora, no sentido, bastante intuitivo, de amparar, na medida do possível, todos os envolvidos em alguma disputa de interesses e valores, priorizando, quando isso for necessário, os mais ‘fracos’ [...]”.
Os pacientes do Dypraxa eram forçados a assinalar um “X” em uma ficha do governo atestando que concordavam em receber o medicamento (mesmo desconhecendo as razes reais de sua aplicação). Caso se recusassem, perdiam qualquer tipo de convênio médico e passavam a não receber outro tipo de tratamento. Como não tinham condiçes financeiras suficientes para arcar com outros custos, cedem.
1 A mesma empresa farmacêutica mantém um departamento químico que produz pesticidas. Justin utiliza pesticidas da ThreeBees em seu jardim da residência no Quênia.
A farsa bioética logo é percebida por Tessa e pelo Dr. Bluhm. Sua inquietação e repulsa ao que presencia no Quênia fazem com que Tessa mantenha contato, pela Internet, com uma ativista de direitos humanos na Alemanha. Esta ativista diz a Tessa que há grandes falcatruas políticas em que agências do governo supostamente tentam salvar a vida de pessoas como as “cobaias humanas” do Quênia. Ela também descobre, pesquisando vídeos na Internet sobre o mesmo assunto, que os africanos pagam cinco, dez ou vinte vezes mais caro os remédios que as agências inglesas e europeias sugerem, em acordos desconhecidos.
Ao mesmo tempo, Tessa descobre que o amigo de seu marido, Sandy, deve vigiá-la por “questes de segurança”. Isto fica mais evidente, ainda, quando ela indaga o Ministro da Sade do Quênia, durante festa dada em sua residência, acerca da inauguração de uma clínica que não dispunha de equipamentos de esterilização de ferramental cirrgico.
Há, ainda, a figura do Dr. Loorbeer, um médico alemão que realiza testes com pacientes portadores do vírus HIV. Ao ser denunciado, o Dr. Loorbeer refugia-se em rinces remotos da África. É descoberto, entretanto, por Justin no final do filme, que o interpela em busca de respostas para a trama que tenta desvendar em função da morte de Tessa.
Será mesmo que estas questes, pontuadas tão seriamente no filme, são apenas devaneios fílmicos ou permeiam, de fato, a realidade que nos cerca? Para Bock et al. (2002), o discurso fílmico-fictício representa, muitas vezes, uma projeção da realidade. Neste caso, a dura constatação de que pessoas são submetidas, todos os dias, a drogas da indstria farmacêutica cujos benefícios e malefícios não são totalmente elucidados. E, na pior das hipteses, os testes são feitos diretamente nos pacientes.
Podemos refletir sobre este assunto pautando-nos em Ladriére (2002: 101-102):
A bioética, da maneira como ela se apresenta hoje, não é nem um saber (mesmo que inclua aspectos cognitivos), nem uma forma particular de expertise (mesmo que inclua experiência e intervenção), nem uma deontologia (mesmo incluindo aspectos normativos). Trata-se de uma prática racional muito específica que pe em movimento, ao mesmo tempo, um saber, uma experiência e uma competência normativa, em um contexto particular do agir que é definido pelo prefixo ‘bio’. Poderíamos caracterizá-la melhor dizendo que é uma instância de juízo, mas precisando que se trata de um juízo prático, que atua em circunstâncias concretas e ao qual se atribui uma finalidade prática através de várias formas de institucionalização. Assim, a bioética constitui uma prática de segunda ordem, que opera sobre práticas de primeira ordem, em contato direto com as determinaçes concretas da ação no âmbito das bases biolgicas da existência humana.
Historicamente, questes éticas – e, por extensão, também bioéticas – têm chamado a atenção de cientistas, pesquisadores e comunidade civil de forma geral. Alfonso-Goldfarb (2000), Debru (1996) e Ferreira (1990) apontam tais questes que ora ou outra adentram a historiografia da Medicina, da Farmácia e da Biologia. Ptzsch (1996) discorre longamente sobre esta problemática que, aparentemente, insiste em permanecer nos corredores das Ciências Biolgicas.
No outro extremo da polêmica há a questão da regulamentação internacional de medicamentos, que há décadas tenta reger a fabricação e comercialização de drogas farmacêuticas. A ICH (International Conference on Harmonization)1, por exemplo, é um termo de harmonização de leis de países que realizam pesquisas farmacêuticas há muito tempo, entre os quais o Japão, os EUA e diversos países europeus (com destaque para a Alemanha e a França). Pesquisas que seguem as normas da ICH são aceitas para o registro de uma droga farmacêutica em agências estatais como a Anvisa no Brasil, a Anmat da Argentina ou a FDA nos EUA2.
Que posição adotar, então, frente ao que O Jardineiro Fiel apresenta como proposta de reflexão? A de que as pesquisas farmacêuticas são, muitas vezes, insidiosamente realizadas traindo os preceitos bioéticos internacionais ou aquela que defende uma fiel retenção aos tratados internacionais? Para responder a esta questão, devemos analisar algo intrinsecamente relacionado à (bio)ética: a pesquisa científica.
1 O sítio eletrnico oficial é http://www.ich.org/ (acesso em 10 jul. 2012).
2 Os sítios eletrnicos das agências mencionadas são: Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/anvisa/home; Anmat (Administracin Nacional de Medicamentos, Alimentos y Tecnología Médica), http://www.anmat.gov.ar/principal.asp; e FDA (U.S. Food and Drug Administration), http://www.fda.gov/.
Não vou, neste item, abordar a historiografia do método científico (ou “dos” métodos científicos) porque diversos autores podem ser consultados para maior aprofundamento no tema, entre os quais Beveridge (1981), Chalmers (1994), Collins (2007), Debus (1984), Feyerabend (1988), Gould (1992), Hume (1972), Kuhn (1970), Lakatos (1970), Needham (1978), Popper (1979), Rochberg (1992) e Singer (1959). A intenção neste ponto é refletir sobre a metodologia científica atualmente aceita pela comunidade mundial como norteadora das pesquisas científicas, ou seja, a metodologia hipotético-dedutiva1.
Segundo Calil (2009), o método hipotético-dedutivo parte da construção de hipteses ou conjecturas que são submetidas a testes, à crítica intersubjetiva, à divulgação (com a possibilidade de novas críticas) e, finalmente, ao confronto com os fatos para a verificação de as hipteses serem ou não válidas. Caso sejam, pode haver a possibilidade de novas críticas e refutação. Poderíamos, também, dizer que este método admite tentativas e eliminação de erros; neste caso, não temos a certeza (ou a verdade) absoluta a qual não é alcançável por nenhum método (POPPER, 1979).
A partir de finais do século XIX, a sociedade passou, gradativa e crescentemente, a admitir que o “cientificamente provado” é confiável e, portanto, factível de ser aceito. Este pensamento permeia as áreas físicas, químicas e, obviamente, as biomédicas. Assim, tende-se a considerar somente resultados de uma pesquisa científica como sendo admissíveis, em detrimento de conhecimentos não necessariamente científicos, como a medicina popular, por exemplo. Com isto, pode-se notar certo endeusamento da Ciência, que passa a ser uma detentora da verdade e redentora dos problemas humanos. Contrastemos este raciocínio com o pensamento de Gewandsznajder (2010: 117) acerca da cientificidade do mundo moderno:
Considera-se a tecnologia como parte inerente à ciência moderna e seus métodos (BAUCHSPIES et al., 2005); portanto, neste artigo também se faz alusão à tríade Ciência-Tecnologia-Sociedade.
A ciência é apenas uma parte da cultura humana, assim como a arte, a filosofia, a religião e o conhecimento comum ou cotidiano. A ciência também não constitui a nica maneira de conhecer o mundo: os saberes adquiridos no dia a dia, por exemplo, são extremamente importantes na nossa vida. Quando se diz que um conjunto de ideias não é científico, isso não significa que ele seja falso, absurdo, sem sentido ou intil.
Com a valorização (talvez super-estimação?) do método hipotético-dedutivo e todas as suas áreas correlatas, passa-se a aceitar que somente a ciência dá respostas para os problemas do mundo. Esta lgica é falseante e enganadora quando se considera, por exemplo, que muitas descobertas científicas e avanços tecnolgicos delas decorrentes acabaram acarretando problemas ambientais, econmicos e sociais, tais como as consequências para a camada de oznio oriundas dos produtos à base de CFC (cloro-flor-carbono), os problemas ambientais com os plásticos (garrafas PET, principalmente) e diversos tipos de isopor, as tragédias como a ocorrência de teratologias e malformaçes fetais decorrentes de medicamentos (como a Talidomida) e poluição química, entre tantos outros (GIL-PÉREZ, 1986; KRASILCHIK& MARANDINO, 2004; MERTON, 1942; PINTO, 2012; ORI, 2012).
O Dypraxa de O Jardineiro Fiel não fugiu a esta regra: foi cientificamente criado pela KDH e posteriormente comercializado pela ThreeBees. O que se coloca em pauta de discussão é como os testes foram realizados. Aparentemente, não havia suficientes provas de que a nova droga seria um “tratamento revolucionário” para os sintomas da doença1 – portanto, refuta-se a constatação de que, apesar de ter sido concebido nos moldes da ciência moderna (seguindo a metodologia hipotético-dedutiva), o medicamento pode ser lesivo a quem o recebe.
Não se pretende abolir o método hipotético-dedutivo, obviamente. A discussão amplia, entretanto, a polêmica acerca de sua total fidelização como sendo o nico método que tenta responder às questes da natureza e seus fenmenos. Quando se considera que este método pode suprir a humanidade de respostas “comprovadas”, parte-se do princípio de que as verdades absolutas podem ser alcançadas; para Lakatos (1970) e Popper (1979), este raciocínio é
1 Neste caso, TB. No filme é sugerido que a TB vai matar uma em cada 3 pessoas, sendo considerada a nova praga do século XXI.
errneo e falsificante, uma vez que não há como, por nenhum método, atingir a verdade absoluta ou qualquer que seja este conceito.
A bioética trata, como vimos, de uma ética prática que tenta, na medida do possível, resolver controvérsias morais relacionadas às Ciências Biolgicas. A aplicação de um medicamento para a cura de certa doença (como apresentado no filme e comentado neste artigo), embora seguindo a metodologia hipotético-dedutiva, não garante sua eficácia e, muito menos, a justificativa do uso de “cobaias humanas”. Para Tagata (2008, p. 117), “[...] o verdadeiro trabalho de pesquisa deve, sempre, pautar-se em princípios éticos”. Este princípio é igualmente compartilhado por Oliveira (2005).
Com isto, passamos à abordagem da trama que é tecida em O Jardineiro Fiel, tentando responder à pergunta: por que o jardineiro é fiel?
O diplomata Justin Quayle é o esteretipo da dominação ideolgico-política, embora em pequena escala. Ao representar o governo britânico no Quênia e, inicialmente, compactuar com as açes da Coroa junto ao Ministério da Sade do país africano, ele apresenta a clássica figura da personagem que detém o saber e, consequentemente, o poder. Para o político, filsofo e ensaísta inglês Francis Bacon (1561-1626) considerado um dos fundadores da ciência moderna, – “saber é poder” (GAUKROGER, 2001). O que sabe mais detém o poder sobre o que sabe menos (ou nada sabe). Neste caso, a dominação historicamente conhecida dos países europeus sobre o continente africano vem novamente à tona, inserida na trama proposta no filme.
Justin é um jardineiro esmerado – seu passatempo favorito é cuidar de suas plantas e manter seus jardins impecáveis. Ao fazer isto, o diplomata mantém a postura de isolamento da dura realidade que o cerca: ao se fechar em seu universo botânico, Justin ignora as mazelas que afligem a população africana. Não será a postura do diplomata a que também ns adotamos em nossa sociedade? Talvez seja mais fácil ignorar os problemas, como se eles fossem invisíveis. A tomada de posiçes invariavelmente compromete diversas áreas de nossas vidas.
E foi justamente a tomada de decisão que levou Justin a sair de seu lugar seguro (suas plantas e seus jardins) e arriscar sua vida. Ao penetrar no denso cosmo político-econmico da trama envolvendo governos e indstrias químico-farmacêuticas, Justin descobre que as pesquisas que sua esposa e o Dr. Bluhm realizavam tinham fundamento. Com isto, é perseguido, tem seu passaporte cassado e acaba, inevitavelmente, sendo assassinado ao retornar ao local onde Tessa e o médico amigo haviam também sido assassinados.
Podemos interpretar a fidelidade do Jardineiro, também, como sendo o retrato da mentalidade humana que, mantendo-se alheia às realidades imediatas adjacentes, fecha-se em seu sistema. O status quo é, portanto, mantido – a não ser que açes externas ameacem severamente este modus operandi, momento em que forçosamente se é impelido a mudar a postura.
Diversas facetas poderiam ser analisadas neste filme. Preferi realizar o recorte apresentado neste artigo por ser mais amplamente discutido do ponto de vista das Ciências da Natureza.
Problemas sociais – diferenças étnicas e econmicas, por exemplo – também são questes apontadas no filme. Tessa (o avesso da apatia social que finge não ver os problemas reais), embora defenda os direitos humanos e lute pela população de baixa renda no Quênia, toma banho em banheira de espuma enquanto Jojo, um trabalhador residente nas favelas de Nairobi, vai de bicicleta ao trabalho e “banha-se” lavando apenas o rosto e as axilas com a água de uma bacia. Contrassensos como este são apontados pela produção cinematográfica, com cenas que contrastam, por exemplo, uma locomotiva cruzando a favela da capital queniana: a modernidade (tecnologia oriunda da pesquisa científica) defrontando-se com a miséria. A Ciência resolve, de fato, as mazelas sociais?
No filme, as pessoas são tratadas com nevirapine para o tratamento da Aids. O medicamento, entretanto, não chega gratuitamente à população como deveria. Segundo Justin, as agências que atuam junto ao Ministério da Sade do Quênia servem, em tese, para atender à população, resolvendo seus problemas;
oque se vê, entretanto, é uma briga por poder e dinheiro.
O Jardineiro Fiel convida, portanto, os telespectadores a refletirem sobre
questes atuais, polêmicas e, sobretudo, engajadoras: ser fiel ao que se pensa
pode levar a rumos incertos; afinal, somos contínua e cotidianamente
permeados pela natural insegurança que rege nossas vidas e a entropia do
Cosmo.
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