Reseñas


https://doi.org/10.34024/prometeica.2019.19.9516


DRY, SARAH (2014). THE NEWTON PAPERS: THE STRANGE AND TRUE ODYSSEY OF ISAAC NEWTON’S MANUSCRIPTS, OXFORD UNIVERSITY PRESS.

ISBN: 978-0-19-995104-8: o newton que não conhecíamos


Breno Arsioli Moura (Universidade Federal do ABC, Brasil) breno.moura@ufabc.edu.br


Recibido: 25/06/2019 Aprobado: 20/07/2019


Quando Isaac Newton (1642-1727) morreu, aos 84 anos, em 1727, ele era uma figura celebrada pelos seus pares. Autor de duas obras já influentes no período – os Principia (1687, 1ª edição) e o Óptica (1704, 1ª edição), Newton ainda acumulava o posto de presidente da Royal Society, uma das mais antigas e prestigiadas sociedades científicas do mundo. A força do seu legado cresceu ainda mais nas décadas seguintes do século 18, influenciando, em muitos aspectos, a forma de pensar, estudar e escrever sobre o mundo natural na época. Esse “Newton do século 18” tornou-se a verdadeira representação de um cientista em uma visão de senso comum: ele teria sido obstinado, rigoroso, metódico, não teria se iludido por falsos conhecimentos, por ideias que hoje tomamos como supérfluas. Ainda nos dias atuais, essa imagem persiste, trazendo consigo uma leva de concepções distorcidas não apenas sobre a vida e os trabalhos de Newton, mas também sobre a própria ciência.


Em 1936, no entanto, um evento mudou o que até então se conhecia sobre o filósofo natural inglês. Em uma sala da casa de leilões Sotheby, uma enorme quantidade de manuscritos newtonianos não publicados até então foram colocados à venda pelo herdeiro de Newton, o Visconde Lymington, Gerard Wallop (1898-1984). Após esse evento, outro Newton emergiu: o alquimista, o religioso, o filósofo. A partir disso, por um lado, sua historiografia começou a ser revisada e, por outro, uma grande indústria acadêmica acerca de seus trabalhos nasceu. Essa é a história detalhada por Sarah Dry em seu The Newton Papers: the strange and true odyssey of Isaac Newton’s manuscripts (Oxford University Press, 2014), objeto dessa resenha.


Dry começa seu estudo historiográfico a partir da morte de Newton, em 1727. Nesse relato inicial, a autora aponta como Catherine Barton (1679-1739), sobrinha de Newton, e seu marido, John Conduitt (1688-1737), já demonstravam dificuldade em lidar com a enorme quantidade de papeis, instrumentos e até móveis deixados por ele. Um primeiro levantamento foi feito por Thomas Pellet (1671-1744), que enquadrou os materiais em oitenta e duas categorias. De todos eles, considerou apenas cinco textos “aptos para publicação” (p. 13), mas apenas um pronto para ser publicado, o Chronology of Ancient Kingdons [Cronologia dos Reinos Antigos], um extenso texto em que Newton buscou traçar a ordem cronológico de grandes eventos do passado. Alguns dos outros materiais foram publicados em seguida, como o Observations upon the Prophecies of Daniel and the Apocalypse of St. John [Observações sobre as profecias de Daniel e o apocalipse de São João], lançado em 1733.1 Conduitt permaneceu com o restante do material, essencialmente uma coleção de papeis soltos, anotações sem data, comentários sobre obras, além dos cadernos de anotação de Newton.


1 Há uma tradução para o português brasileiro desse livro. A mais recente versão foi publicada pela editora Pensamento, em 2011.

Os manuscritos de Newton permaneceram intocáveis nas décadas que se seguiram. Na década de 1770, Samuel Horsley (1733-1806), então secretário da Royal Society, submeteu uma proposta para publicar uma edição completa de todos os trabalhos de Isaac Newton. Segundo Dry, “ele não era o homem para esse trabalho” (p. 31). Mesmo sendo uma das poucas pessoas com acesso aos manuscritos em muitos anos, à exceção dos herdeiros, Horsley não teria compreendido a complexidade de temas dos materiais de Newton, não publicando quase nada em sua Isaaci Newtoni Opera quae extant Omnia (1779-85). É de se imaginar o trabalho imenso que Horsley teria visto em sua frente e, mergulhado em um contexto que venerava Newton, tenha descartado a importância de materiais cujos temas eram menos ortodoxos para a filosofia natural do século XVIII.


Os manuscritos newtonianos seguiram inéditos por mais um século. Outras nuances da vida de Newton e de sua personalidade, no entanto, ficaram conhecidas, tais como sua fase obscura nos anos 1690 e sua maleficência, especialmente contra o astrônomo real de sua época, John Flamsteed (1646-1719). Não é meu intuito revelar a minuciosa reconstrução de Dry acerca desses dois eventos, mas cabe apontar como eles já indicavam uma mudança em relação ao que se pensava sobre Newton, não sobre seu legado, claramente incontestável, mas sobre quem ele realmente foi. No final do século XIX, em 1872, parte dos manuscritos científicos foram doados à Universidade de Cambridge, sob responsabilidade de John Couch Adams (1819-1892) e George Stokes (1819-1903). Novamente, percebeu-se a grande complexidade dos textos, muitas vezes constituídos de folhas soltas, sem numeração, título ou indicação de tema. Só a catalogação levou dezesseis anos, sendo publicada em 1888.


A partir desse ponto, Dry faz uma profunda análise do mercado literário europeu e estadunidense, além de comentar o papel fundamental de colecionadores no processo de preservação de materiais antigos. Por essa análise, Dry nos mostra como a importância de alguns desses materiais não era evidente até o começo do século XX; uma cópia da segunda edição dos Principia poderia ser comprada por cerca de 37 libras, em valores atuais.


Chegamos então ao ano de 1936, quando Wallop decidiu colocar à venda os materiais de Newton. Novamente, o estudo de Dry é detalhado e qualquer menção a ele pode privar o leitor de se fascinar com o relato da autora. Destaco, apenas, duas figuras importantes nesse processo, John Maynard Keynes (1883-1946) e Abraham Yahuda (1877-1951), que compraram, respectivamente, grande parte dos papeis alquímicos e religiosos de Newton. A coleção de Keynes está hoje no King’s College da Universidade de Cambridge, enquanto os materiais de Yahuda foram levados à National Library de Israel. Vale mencionar que esses materiais estão disponíveis online nos sítios virtuais dessas instituições.


Dry finaliza seu estudo historiográfico abordando a criação de uma “indústria” acerca dos trabalhos de Newton após o leilão da Sotheby. O conhecimento de uma outra face newtoniana – mais imersa em assuntos então considerados externos à ciência – mostrou como ela nunca ocupou papel secundário no desenvolvimento das ideias mais importantes de Newton. Ela estava lá, nos escólios dos Principia e nas Questões do Óptica, de modo mais explícito, mas também nas partes ditas “científicas”, implicitamente. Newton parece não ter sido uma figura brilhante apenas pelo seu domínio do conhecimento sobre o mundo, da matemática e da astronomia; ele foi justamente isso por mesclá-los com concepções alquímicas, religiosas, metafísicas etc. Newton foi produto de seu tempo.


O estudo de Dry traz uma significativa contribuição à historiografia da ciência por duas razões. Em primeiro lugar, ela mostra que o Newton que não conhecíamos permaneceu escondido por uma série de motivos, intencionais e não intencionais. Por um lado, as diferentes visões de mundo nos séculos XVIII e XIX, os valores dados aos pensadores e às suas obras, as expectativas que se traçavam para o futuro, entre outros pontos, determinaram que seu caminho até o público ficasse mais difícil. Isso não significa que, em todos os casos, os manuscritos foram ocultados deliberadamente. Não se via a necessidade de trazê-los à tona, uma vez que eram meramente reflexões, trivialidades de Newton, algo naturalmente sem importância. Isso nos faz pensar em quantos detalhes da história da ciência não

conhecemos – ou ainda não conhecemos – e como a revelação de que eles existem pode suscitar um conjunto totalmente diferente de perspectivas historiográficas.

A análise das diferentes perspectivas historiográficas motivadas pelo leilão da Sotheby é a segunda grande contribuição do livro de Dry. A historiografia sobre Newton anterior às décadas de 1950 e 1960

– quando os primeiros estudos derivados do acesso aos papeis comprados por Keynes e Yahuda apareceram – hoje é notadamente ultrapassada. Basta, por exemplo, comparar biografias de Newton anteriores a esse período com o extenso trabalho de Richard Westfall (1924-1996) em Never at rest (1980) ou mesmo com textos mais recentes, que associam Newton – em alguns casos, de modo exagerado – à figura de um grande mago e alquimista. Sem o aprofundamento nessa extensa “nova” literatura sobre o inglês, dificilmente qualquer estudo historiográfico sobre ele será publicado nos dias atuais. Isso, a meu ver, reforça como a historiografia da ciência é um campo tão mutável quanto a ciência. As escolas de pensamento, as metodologias, os materiais, enfim, tudo, mudam continuamente. O trabalho do historiador da ciência – e do historiador, de modo geral – é difícil, complexo, que exige a tomada de posições, de referenciais, estudos precisos e acurados. Resta saber se o livro The Newton Papers nos traz tudo acerca dos manuscritos newtonianos. Minha percepção é que sempre será impossível saber. Porém, o que Dry descortina é suficiente para vermos quantas particularidades há na história e quanto elas podem ser determinantes para conhecermos, estudarmos e popularizarmos as grandes figuras da ciência.