https://doi.org/10.34024/prometeica.2019.19.9446


PARO, VITOR HENRIQUE (2018). PROFESSOR: ARTESÃO OU OPERÁRIO? SÃO PAULO: CORTEZ EDITORA. ISBN: 978-85-249-2700-3. Coragem de pensar: ação

pedagógica e processo de trabalho


Denilson Soares Cordeiro

1

(Universidade Federal de São Paulo, Brasil)

denilsoncordeiro@gmail.com


Marian Ávila de Lima Dias

2

(Universidade Federal de São Paulo, Brasil)

mariandias.dias@gmail.com


Recibido: 10/06/2019 Aprobado: 20/07/2019

“No que concerne à qualidade da força de trabalho empregada na escola, é indispensável que se atente para os determinantes socioeconômicos, políticos e culturais que condicionam a baixa qualificação do pessoal docente, as precárias condições em que os professores têm de desempenhar seu trabalho e a inadequação de suas práticas pedagógicas aos interesses populares.”


[Paro, Vitor H. Gestão democrática da escola pública: 127]


A obra do professor Vitor Henrique Paro, dividida em 18 livros e 46 artigos, precisa ser lida, estudada e considerada no conjunto, porque há nas partes uma presença marcante do todo, seja pelo rigor crítico e científico, pela postura política consequente e solidamente fundamentada, seja pela visada com que reconstitui os objetos de pesquisa e de compreensão aprofundada. Soma-se a isso ainda a generosidade professoral de combater o hermetismo típico do ramerrão acadêmico, recusar o dogmatismo e o proselitismo dos currais ideológico-acadêmicos. A obra convida o leitor a um mergulho na compreensão concreta da estrutura escolar real, sempre baseada em pesquisas in loco, com entrevistas, relatos de observação e estudo de bibliografia especializada e legislação.


O livro Professor: artesão ou operário? é resultado de uma pesquisa em uma escola pública municipal de ensino fundamental I e II, em São Paulo, em região, segundo o autor, de “camada média” da população. O propósito original da pesquisa foi o de “estudar a singularidade da ação educativa escolar como processo de trabalho e investigar suas implicações para as políticas educacionais e para a administração da educação fundamental.” (p. 19)


Trata-se de um livro que conjuga dados colhidos e aferidos em pesquisas, entrevistas e acompanhamento de aulas com as pesquisas anteriores do autor, sobretudo aquelas vinculadas à discussão da natureza do trabalho do professor, distinto em múltiplos aspectos do que o autor chama do “trabalho no regime capitalista”, mas também sobre a democratização do trabalho escolar. Ou seja, partir da base material das pesquisas no ambiente escolar tem sido o modus operandi materialista das reflexões que o prof. Vitor Paro apresenta nos livros dele. Há, por isso mesmo, declaradamente uma perspectiva marxista anunciada e defendida como critério para examinar as questões educacionais e como se dá o exercício da atividade docente como trabalho.


O tom, como anunciado no prefácio, é o de uma conversa com o leitor, de uma prosa fluída, generosa e objetiva. O próprio autor ratifica essa posição ao escrever que pretendeu dar uma forma acessível aos resultados da pesquisa para que uma quantidade maior de leitores pudesse se beneficiar do exame dos



1 Professor de Filosofia na Unifesp.

2 Professora de Psicanálise do Departamento de Educação da EFLCH-Unifesp.

dados, dos comentários e das interpretações. As indagações escolares mais comuns, desde o sentido de estar na escola até qual é a natureza própria do trabalho escolar encontram reelaboração preciosa no sentido de se desfazerem alguns dos mal-entendidos recorrentes e dos problemas educacionais mais graves.

Para quem conhece as obras do autor, nesse livro são repassadas e reforçadas as teses principais que condicionam os maiores problemas que enfrenta a educação brasileira: 1. o modelo capitalista é nefasto como parâmetro para pensar qualquer dimensão educativa; 2. o trabalho do professor não se reduz à compreensão dos sentidos atribuídos ao trabalho, por exemplo, do operário, como faz a tradição liberal; 3. a natureza complexa, muitas vezes imprevisível e emancipatória do trabalho docente não pode ficar submetida à “ignorância pedagógica”, a saberes exclusivamente tributários do senso comum e de uma educação doméstica não raro autoritária do professor; 4. as relações, objeto básico do trabalho educativo, devem estar baseadas em princípios democráticos; 5. as avaliações externas do chamado “sistema educativo” encobrem uma dinâmica perversa de buscar “culpados” no sentido de a administração pública se eximir das responsabilidades e livrar-se de estar concernida na necessidade das soluções emergenciais que, não raro, os problemas escolares demandam.


No andamento da exposição, o autor se detém em dissolver uma série de clichês que procuram “explicar” ou “justificar” as condições adversas enfrentadas pela educação, que multiplicam mal- entendidos e que produzem barbaridades pseudo-explicativas. Formulações como: “a família educa, a escola ensina”; “famílias desestruturadas são responsáveis pelas dificuldades de aprendizado”; “o que precisa é aprender a dizer “não” às crianças”; “é preciso dar limites”; “as famílias passam para a escola a tarefa de dar educação básica às crianças”; esclarece a ideia ambígua de que se “constrói conhecimento na escola”; a má compreensão do significado das “novas tecnologias” como panaceias pedagógicas; a falácia ideológica da função da escola como formadora exclusivamente para o trabalho estrito senso.


Dada a experiência de vida toda, a convicção formada a partir do exame atento de tantos descalabros na esfera das políticas públicas para a educação e, por isso, pela autoimposição de ser contundente ao expressar da própria indignação, tudo isso compõe uma força de irrupção expressivamente enfática que, às vezes, faz a prosa se aproximar do gênero do manifesto. A conclusão é, em vários trechos, propositiva e até prescritiva, o que, penso, pode de fato aliviar a expectativa e a hesitação (quase) permanente de educadores preocupados em refletir sobre os desafios que enfrentam. Ilustro com os dois trechos abaixo:


“... a relação pedagógica, para realizar-se, não pode ser uma relação de poder contra o outro ou sobre o outro, mas uma relação de poder para o outro e com o outro (Holloway, 2003; Paro, 2019: 125).

Não se nega a hierarquia, mas aqui é compreendida com um fator privilegiado de orientação no sentido de propiciar e não impedir as forças em jogo na educação. Uma condição quase evidente, mas cuja assimilação e prática, pelo embotamento, pela precariedade de formação de professores e pela perversidade dos interesses mercantis do sistema, fazem passar muito longe das salas de aula e das chances de reconsideração político-pedagógica.


Por isso, o professor Vitor Paro recomenda:

“... trata-se de buscar novos parâmetros para se conceber e se implementar uma estrutura em termos organizacionais, didáticos e curriculares que favoreça as relações democráticas entre todos os envolvidos no empreendimento escola.” (p. 130)


A organização do trabalho, seja na escola, seja nas universidades, seja ainda nas instâncias de administração dos assuntos educacionais, como ministérios, secretarias, diretorias de ensino e mesmo de reitorias universitárias obedece a um andamento de sobrecarga das responsabilidades de cunho dito “prático” burocratizado (ou bancário) e de consequente asfixiamento das inteligências traduzido em produtivismo e devidamente sedimentado pela meritocracia, orientado, como nomeia o autor, pela

“razão mercantil”. A vigência da cultura de uma “educação de resultados” baseada exclusivamente em processos oficiais técnico-quantitativos de avaliação reforça a miragem e a naturalização da educação como sistema produtivo e, por isso, tende a legitimar o ponto de vista neoliberal que olha para a escola como empresa e para o trabalho docente como operário. E daí se procura justificar uma série de expectativas de resultados e exigências produção exteriores à natureza do tipo de trabalho que na escola e na educação deveriam ser desenvolvidos.

A natureza do trabalho docente aparece como o núcleo de uma discussão fundamental para e educação, mas que não encontra viabilidade no atual e mercantilista andamento do trabalho escolar e universitário, o que reforça a dispersão e a rápida adesão irrefletida a modelos e critérios meramente empresariais de enquadramento da dinâmica educacional. Disso, resulta, quase automaticamente, teses pretensamente inovadoras e performáticas alardeando flexibilidade (ou flexibilização) e disposição de aperfeiçoamento quando, de fato, não passam de procedimentos voluntaristas e, por isso, de base ideológica a serviço quase imediato das prerrogativas neoliberais de precarização e de liquidação dos pressupostos de autonomia, de emancipação e de democracia na condução dos assuntos educacionais.


A adoção de pressupostos e práticas democráticas, diante desse tipo de realidade, encontra “naturalmente” resistência de toda parte, ainda que nenhum dos membros da escola e menos ainda da gestão abram mão de se dizerem “democráticos”, porque o rótulo, sabemos, opera como matéria e azeite na máquina de produção e reprodução de significados administrativos, mesmo sem nenhum lastro efetivo de práticas democráticas. O sentido, portanto, atende ostensivamente ao temperamento volúvel do que se pretender buscar como justificação. Sobre esse tema, para surpresa dos pesquisadores, os depoimentos da comunidade escolar exigem, comumente, “mão firme” da gestão e obediência como valor de eficiência escolar.


A constituição de um ambiente democrático tende a impedir a instalação de alguns dos fortes condicionantes das catástrofes escolares – e podemos dizer também sociais – como as visões empresariais da escola e as veleidades totalitárias delas decorrentes. Talvez não precisaríamos dizer que o mesmo ainda vale para a constituição de sociedades e de Estados melhores, porque democráticos, mas isso demandaria romper com o brutal silenciamento a que a inteligência tem sido submetida ultimamente no Brasil. E o livro do professor Vitor Paro aponta, corajosamente, com experiência, dados e fundamentação crítico-teórica consistente, na direção dessa imprescindível ruptura.


Como costuma acontecer nos bons livros, também Professor: artesão ou operário? é uma obra que nos convida a outras pesquisas, estudos e percursos investigativos sobre este ou outros assuntos, tais como a obra de Ricardo Antunes, cito a título de exemplo: Adeus ao trabalho: sobre as metamorfoses e a crise da centralidade do mundo do trabalho; do Grupo e revista alemã Krisis, do qual o Manifesto contra o trabalho é a obra coletiva mais conhecida; A loucura do trabalho e Banalização do sofrimento social, ambos de Christophe Dejours, diretor de um instituto de pesquisas sobre psicologia social na França; Tempo, trabalho e dominação social, de Moishe Postone; As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, de Robert Castel; e as inúmeras dissertações e teses acadêmicas disponíveis nos arquivos, bibliotecas e bancos de dados universitários e que, infelizmente, ainda não chegaram ao formato de livros publicados.