PROMETEICA - Revista de Filosofia y Ciencias. 2025, v. 32


Artículos


https://doi.org/10.34024/prometeica.2025.32.20605

 

 


A CONSTRUÇÃO DO “EU” PROFESSOR

CONTRIBUIÇÕES LACANIANAS E DUBARIANAS PARA A COMPREENSÃO DA IDENTIDADE DOCENTE


THE CONSTRUCTION OF THE TEACHER’S “SELF”

Lacanian and Dubarian contributions to the understanding of teacher identity


LA CONSTRUCCIÓN DEL “YO” DOCENTE

Aportes lacanianos y dubarianos para la comprensión de la identidad docente


Leonardo André Testoni

(Universidade Federal de São Paulo, Brasil)

leonardo.testoni@unifesp.br


Amanda Bassani

(Universidade Estadual Paulista, Brasil)

amanda.bassani@unesp.br


Cristiane Bassani
(Colégio Parthenon Bom Clima, Brasil)
cbassani@parthenonplus.com


Patrícia Rosana Linardi

(Universidade Federal de São Paulo, Brasil)

linardi@unifesp.br


Recibido: 30/05/2025
Aprobado: 17/10/2025

 

 


RESUMO


A complexidade da construção da identidade docente tem sido trazida, há décadas, como um dos pilares dos processos significativos de formação de professores. A compreensão de seus elementos constitutivos e sua dinâmica podem propiciar importantes aportes para o desenvolvimento profissional. Diante desse quadro, o presente artigo propõe investigar aspectos da identidade docente e sua dinâmica na constituição do professor, a partir de processos (auto)reflexivos. Do ponto de vista teórico, apoiaremos nossas discussões na psicanálise lacaniana e na sociologia profissional de Dubar. A investigação foi realizada com professores em serviço, que cursaram uma disciplina de pós-graduação na área de formação docente, e se apoiou na produção de autodesenhos e processos reflexivos orientados. Os resultados nos permitem inferir sobre a apropriação da proposta por parte dos sujeitos

envolvidos, provocando questionamentos sobre o próprio processo de constituição do “eu” professor.


Palavras-chave: formação docente. psicanálise lacaniana. identidade docente. sociologia profissional.


ABSTRACT


The complexity of constructing a teacher identity has been considered one of the pillars of significant teacher training processes for decades. Understanding its constituent elements and dynamics can provide important input for professional development. Given this scenario, this article proposes to investigate aspects of teacher identity and its dynamics in the constitution of the teacher, based on (self)reflective processes. From a theoretical point of view, we will base our discussions on Lacanian psychoanalysis and Dubar's professional sociology. The investigation was conducted with in-service teachers, who were taking a postgraduate course in the area of teacher training, and was based on the production of self- drawings and guided reflective processes. The results allow us to infer about the appropriation of the proposal by the subjects involved, provoking questions about the very process of constitution of the “teacher self”.


Keywords: teacher education. Lacanian psychoanalysis. teacher identity. professional sociology.


RESUMEN


La complejidad de la construcción de la identidad docente ha sido considerada, durante décadas, como uno de los pilares de los procesos significativos de formación docente. Comprender sus elementos constitutivos y su dinámica puede proporcionar contribuciones importantes al desarrollo profesional. Ante esta situación, este artículo se propone indagar aspectos de la identidad docente y su dinámica en la constitución del docente, a partir de procesos (auto)reflexivos. Desde un punto de vista teórico, basaremos nuestras discusiones en el psicoanálisis lacaniano y la sociología profesional de Dubar. La investigación se realizó con docentes en servicio, que realizaron un posgrado en el área de formación docente, y se apoyó en la producción de autodibujos y procesos reflexivos guiados. Los resultados permiten inferir sobre la apropiación de la propuesta por parte de los sujetos involucrados, provocando preguntas sobre el propio proceso de constitución del “yo docente”.


Palabras clave: formación docente. psicoanálisis lacaniana. identidad docente. sociología profesional.


Introdução


A formação de professores constitui um frutífero campo investigativo educacional, se configurando como linha de pesquisa em meados do século passado (Gatti, 2017). De fato, as propostas curriculares inovadoras perpassam por professores coerentemente formados para tal, sendo necessário que a atenção também recaia nos processos formativos docentes, seja em escala inicial ou continuada (Testoni et al., 2022).


No âmbito específico dos professores em serviço, ainda se faz necessário o enfrentamento contra preconceitos nesse contexto, para que as atividades de formação não sejam confundidas com cursos rápidos que visam apenas munir o professor de uma sacola de dicas e truques, sem preocupação com a real complexidade da profissão (Testoni, ibidem).


Para Silva (2024),

Ao refletirmos sobre o passado histórico da formação [de professores] no Brasil, percebemos que esse processo de atualização dos educadores sempre foi uma necessidade evidente, mas que ainda enfrentava desafios e obstáculos a serem superados para alcançar plenamente seu potencial de contribuição para a melhoria da qualidade de ensino em todo o país. Apenas no início do século XX, mais especificamente no Brasil, é que começou a ganhar destaque a importância da formação continuada, um processo que visa aprimorar constantemente os conhecimentos e habilidades dos profissionais (p.227).


Para tanto, Guskey (2023) nos lembra da importância que tais formações devem ser pensadas de forma cuidadosa, com amplo tempo para discussões e focada em cinco níveis críticos, a saber: percepção dos professores, aprendizagem docente, apoio institucional, utilização dos novos conhecimentos em sala de aula e aprendizagem discente. Ainda segundo o autor,


A informação recolhida a cada nível fornece dados vitais para melhorar a qualidade das iniciativas de formação continuada. Em segundo lugar, a análise da eficácia em um nível não diz nada sobre o impacto do nível seguinte. Embora o sucesso em um nível inicial possa ser necessário para resultados positivos no nível subsequente, é nitidamente insuficiente. Os equívocos podem ocorrer em qualquer momento do percurso. É importante estar ciente das dificuldades envolvidas na passagem de experiências de formação continuada docente. A terceira implicação, e talvez a mais importante, é esta: no planejamento da formação continuada para melhorar a aprendizagem dos estudantes, a ordem dos níveis deve ser invertida. Deve-se planejar de maneira reversa, começando por onde se quer chegar, trabalhando para atingir os objetivos (p.10).


Desse modo, é possível observar a importância do processo de formação continuada para o desenvolvimento profissional docente, no entanto, é preciso que as metodologias formativas utilizadas dialoguem com os objetivos descritos anteriormente. Nessa linha, as práticas reflexivas têm demonstrado um interessante potencial para a aprendizagem docente (Gatti, ibidem). Abib (1996) já destacava a importância de revisitarmos as ideias do profissional reflexivo de Schön e de articulá-las à formação continuada de professores.


Mais recentemente, em discussões sobre a aprendizagem do adulto professor, Testoni e Placco (2023) apontam vários aspectos a serem considerados na formação docente, focando na importância da homologia de processos. Assim, tal vertente traz a importância de se utilizar metodologias formativas que se articulam com as práticas profissionais que se espera do docente em sua sala de aula. Em corroboração, Silva e Souza (2022) nos trazem que


Nessas microrrelações, o professor aprende pelo processo de homologia, em que o aprender com o outro se dá no cotidiano da profissão docente, ou seja, acontece na escola, na/pela relação estabelecida com os pares [profissionais] (p.3).


Assim, partimos da hipótese de que vertentes que articulam processos homológicos e reflexivos na formação de professores, impactariam na aprendizagem profissional e, consequentemente, na própria visão que o docente possui de si mesmo. Diante do exposto, o presente artigo investigou possíveis contribuições da utilização de metodologias formativas (auto)reflexivas no processo de tomada de consciência identitária docente, em um contexto de formação continuada.


Com o intuito de articular essa complexa rede de significantes, apoiaremos nosso constructo teórico em dois pilares, a saber: (a) a psicanálise de Jean-Jacques Lacan e sua construção do sujeito e suas interfaces com (b) elementos da sociologia profissional propostos por Claude Dubar. A seguir, delinearemos mais detalhadamente sobre cada um desses referenciais e suas possíveis contribuições para o escopo da presente investigação.


Referenciais Teóricos: Psicanálise e Educação: articulações possíveis


A interface entre psicanálise e educação é um campo de estudo complexo e produtivo que desafia modelos tradicionais de ensino focados apenas na transmissão de conhecimento. Em vez de ser uma simples ferramenta pedagógica, a psicanálise oferece um olhar profundo sobre os processos inconscientes que permeiam a relação entre educador e educando. Alberto Villani (1999) destaca a

importância de considerar o sujeito do inconsciente no contexto educacional, alertando para os perigos de uma pedagogia que ignora as dimensões afetivas, pulsionais e simbólicas da aprendizagem.


A psicanálise nos convida a repensar a figura do educador. Longe de ser um mero detentor de saber, o professor é um sujeito implicado na relação de ensino, com suas próprias fantasias, desejos e angústias. Essa implicação não é um obstáculo, mas sim um elemento central na dinâmica pedagógica. Villani (ibidem) aponta para a necessidade de o educador reconhecer sua própria posição subjetiva, evitando projetar suas expectativas e frustrações nos alunos. A sala de aula, portanto, se torna um espaço onde as transferências e contratransferências estão em constante jogo, influenciando a forma como o conhecimento é recebido e construído, uma ideia que ecoa as reflexões de Freud sobre a dinâmica da relação analítica (Freud, 1912).


Nessa linha, o ato de aprender não é um processo puramente racional; ele envolve uma abertura para o novo, o que pode ser ameaçador para o sujeito. A psicanálise, aqui, oferece um instrumental para o educador decifrar essas resistências, não para eliminá-las, mas para compreendê-las e trabalhar com elas, criando um ambiente mais acolhedor e menos coercitivo (Vilani, ibidem). Da mesma forma, a autoridade do educador não deve ser confundida com autoritarismo. Enquanto o autoritarismo impõe o saber de forma vertical e hierárquica, a autoridade, na perspectiva psicanalítica, é construída na relação, no reconhecimento do lugar do outro. A autoridade se estabelece não pela força, mas pelo desejo de saber que o educador consegue despertar no aluno (Ponnou, 2015). Assim, Vilani (1999) ressalta que essa autoridade é simbólica, ligada à função de analista que o professor pode exercer, ou seja, de alguém que escuta e acolhe as particularidades do aluno. Essa ideia de uma "escuta simbólica" na educação foi amplamente explorada por Françoise Dolto, que enfatizava a importância de falar a verdade à criança de forma que ela possa compreendê-la, respeitando sua singularidade e seu processo de amadurecimento (Dolto, 1989).


Mais recentemente, autores como a francesa Colette Soler e o brasileiro Jorge Forbes têm continuado a explorar essa articulação. Colette Soler (2013), por exemplo, destaca a importância da função do desejo na educação. Para ela, a educação não deve ser apenas a transmissão de um saber, mas a instigação de um desejo de saber. O saber que é transmitido sem o desejo do sujeito em apoderar-se dele é um saber vazio, que não se articula com a vida. A escola, nesse contexto, precisa ser um lugar onde o desejo de aprender é alimentado, e não sufocado pela rigidez curricular.


Jorge Forbes (2012), por sua vez, amplia a discussão para o contexto da sociedade contemporânea, marcada pela lógica do individualismo e pela falta de referências simbólicas sólidas. Em seus trabalhos, ele argumenta que a educação, hoje, precisa ir além da simples transmissão de conteúdo, atuando na construção de uma bússola ética para os jovens. A psicanálise, ao lidar com a dimensão ética do desejo, oferece um arcabouço para pensar uma educação que ajude o sujeito a se orientar no mundo, a lidar com a falta e a criar laços sociais significativos.


Diante do exposto, é importante ressaltar que a formação do educador, à luz da psicanálise, deve ser um processo contínuo de autoanálise e reflexão sobre a própria prática. Não se trata, porém, de transformar o professor em um psicanalista, mas de fornecer-lhe ferramentas para que ele possa se implicar de forma mais consciente em sua tarefa. A supervisão pedagógica, por exemplo, pode ser pensada como um espaço para o educador refletir sobre as dificuldades e os impasses da sua prática, desvendando as repetições e os entraves que impedem o processo de aprendizagem (Villani, 1999).


Em suma, a psicanálise não oferece uma "técnica" para resolver os problemas da educação, mas sim uma metodologia de escuta. Ela propõe um olhar que vai além do manifesto, buscando compreender as motivações inconscientes que movem a relação de ensino-aprendizagem. Da perspectiva de Alberto Villani às de autores contemporâneos, observa-se que a educação que realmente transforma é aquela que se volta para o sujeito em sua inteireza, considerando suas paixões, suas fantasias e sua singularidade (Forbes, 2012; Soler, 2013).

Algumas aproximações entre Lacan e a Educação


A discussão sobre a aplicação da psicanálise lacaniana ao campo educacional, em particular à formação docente, é um tema de grande relevância, embora complexo. Jacques Lacan desenvolveu uma clínica que se distingue da tradição freudiana em vários aspectos, com um foco particular na linguagem e na estrutura do sujeito. Sua teoria, longe de ser um manual de técnicas, propõe uma abordagem radicalmente ética e epistemológica do inconsciente, que poderia ser adaptada para a análise dos processos de ensino- aprendizagem e, especificamente, para a formação de professores.


Lacan questiona a ideia de que a psicanálise se presta a uma aplicação direta a outros campos. Ele argumentava que a psicanálise não é uma psicologia ou uma pedagogia, mas uma ética (Lacan, 1960). No entanto, essa aparente recusa não significa que sua teoria não possa iluminar outros domínios. A clínica lacaniana, centrada no desejo, na falta e no sujeito do inconsciente, oferece ferramentas conceituais para desconstruir o modelo tradicional de educação, que muitas vezes ignora a dimensão subjetiva do educador e do educando. Lacan (1954-1955) reitera que o sujeito não é um ego autônomo, mas sim um ser dividido, constituído pela linguagem e pela relação com o Outro.


A formação de professores, vista através das lentes de Lacan, poderia ir além da mera aquisição de conhecimentos técnicos e metodológicos. Ela exige que o futuro educador se posicione como um sujeito implicado em sua prática. Um dos conceitos mais frutíferos para essa análise é o do desejo do analista, que pode ser transposto para o desejo do educador. O desejo do analista não é o de curar o analisando, mas de sustentar o processo, por uma via transferencial, em que o sujeito pode construir seu próprio saber sobre seu desejo (Lacan, 1964). Da mesma forma, o desejo do educador não é simplesmente o de ensinar, mas de despertar no aluno o desejo e autonomia de construção de seu próprio saber. Essa abordagem questiona o lugar do professor como mero detentor do saber, propondo que ele atue como um agente de desestabilização do saber instituído, permitindo que o aluno construa sua própria relação com o conhecimento.


A clínica lacaniana, portanto, mesmo não sendo criada na área educacional, pode trazer elementos que contribuam para uma melhor ética da escuta na relação professor-estudante. Ela desafia o educador a se despojar de sua posição de mestre absoluto e a se colocar em uma posição de não saber, permitindo que a singularidade do aluno se manifeste. A formação docente, sob essa perspectiva, se torna um processo de análise pessoal e profissional, onde o professor é convidado a questionar o seu próprio lugar na cadeia do saber e a compreender que a educação é um processo que mobiliza desejos.


O sujeito lacaniano: alguns elementos constitutivos


As ideias psicanalíticas de Jacques Lacan, desenvolvidas a partir de 1930, representam um retorno à obra freudiana. Tratou-se de um movimento que buscou recuperar os fundamentos, especialmente aqueles relacionados à linguagem, ao desejo e à constituição do sujeito. Para Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem (Lacan, 1957/1998).


De fato,


[...] se Lacan propõe o inconsciente estruturado como uma linguagem, a primeira coisa que isso quer dizer é que o inconsciente fala, não que o inconsciente seja um pedaço do código, mas que ele fala. Quer dizer o quê, que ele fala? Que o inconsciente é a moradia, a casa do sujeito, do sujeito que fala: em outras palavras, o inconsciente é o lugar de uma enunciação. É isso que quer dizer “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, só que isso que acabo de enunciar, evidentemente, é também problemático, porque, se vocês conhecem um pouco de lingüística, vão perguntar-me: em que sentido você entende o “sujeito da enunciação”? O sujeito da enunciação, vocês sabem o que é: é o sujeito que fala, que produz o enunciado, distinto então do sujeito gramatical ou lógico do enunciado. Se falo “estamos aqui reunidos”, “nós” é sujeito do meu enunciado, mas o sujeito da enunciação sou “eu” (Calligaris, 1991, p.4).


A obra de Lacan é vasta e, principalmente, baseada em relatos orais gerados por seus seminários. Um dos fundamentos constitui-se na articulação entre os três registros da experiência psíquica: o Real, o

Imaginário e o Simbólico, que representam modos diferentes e interdependentes de funcionamento da realidade psíquica. Sinteticamente, o Imaginário é o domínio das imagens e identificações especulares; está ligado à constituição do eu, ao narcisismo e à construção ilusória de uma unidade do corpo (Kehl & Fortes, 2021). O Simbólico, por sua vez, é o campo de aproximação com a linguagem, nele se inscrevendo o sujeito por meio de relações de significantes. Já o Real representa o impossível de simbolizar, aquilo que está fora da linguagem e retorna como trauma e recalques, como excesso que resiste à formalização (Kehl & Fortes, ibidem).


Segundo Lacan (1949/1998), a articulação entre tais vertentes ocorre, em um primeiro momento, no Estádio do Espelho, uma das cenas inaugurais da subjetividade. Trata-se do momento em que o bebê, entre seis e dezoito meses, identifica-se com a imagem do seu corpo refletida no espelho, formando uma imagem própria que independe da figura materna. Lacan (ibidem) descreve esse momento como aquele em que o sujeito reconhece uma forma total de si pela primeira vez, ainda que essa forma seja uma ilusão, conforme nos aponta o próprio autor, essa forma situa-se no exterior, pois ela é uma imagem — e é essa imagem que o sujeito irá tomar como modelo de sua identidade (Lacan, 1949/1998).


Em tal processo, também, funda-se o "eu" (moi), que para Lacan é essencialmente alienado, pois se constitui a partir da imagem de um outro. A alienação, neste caso, propõe que o sujeito se relaciona com uma construção atravessada pela linguagem e identificações imaginárias, sendo, portanto, um reflexo de algo que vem de fora.


Aqui, Lacan introduz a importante distinção entre Eu Ideal (Moi idéal) e Ideal do Eu (Idéal du moi), conceitos fundamentais para o desenvolvimento da investigação em tela. Na linha lacaniana, o Eu Ideal é a imagem narcísica que o sujeito forma no espelho, ou seja, é o que ele deseja ser, a imagem idealizada de si, em um viés de glória, completude e admiração. Já o Ideal do Eu é um ponto de inscrição simbólica, a instância que avalia, julga e orienta o sujeito com base no desejo do Outro (grafado com letra maiúscula, por representar o Grande Outro), figurado pelas normas e ideais sociais e simbólicos.


Para ilustrar essa distinção, Lucas e Montoto (2018) nos recordam de uma analogia lacaniana, na qual um jovem dirigindo um carro conversível, confiante com a situação, ao passar por uma mulher militante comunista na calçada, nota que ela o olha com desprezo. Nesse momento, o jovem se vê através da imagem narcisicamente gloriosa — este é o Eu Ideal. No entanto, o olhar da mulher atua como Ideal do Eu: ele o desestabiliza, interpela, introduz a dimensão do julgamento e da castração simbólica. Desse modo, o Ideal do Eu é o ponto a partir do qual o sujeito se vê como digno de amor, mas também como passível de ser julgado (Lacan, 1960/1998).


Esse exemplo reforça a caracterização do sujeito dividido lacaniano, ou seja, a imagem de completude do Eu Ideal entra em conflito com o olhar do Outro que representa a ordem simbólica. O olhar do Outro é sempre estruturante e, muitas vezes, opressivo, porém participa da constituição do sujeito e revela sua falta. O sujeito se constitui, portanto, na tensão entre aquilo que deseja ser (imagem ideal) e aquilo que o Outro espera dele (Ideal do Eu). Assim, conjectura-se que


Se o Eu ideal, edificado segundo o modelo da onipotência infantil fálica, através das primitivas identificações com a mãe, também fálica, funciona sob os imperativos do processo primário e do princípio do prazer (Sopena, 1991), o Ideal do Eu, por sua vez, formado em um momento de mediação e por força das influências da realidade e da educação, segundo a concepção freudiana, permitirá a temporalização da existência. A realização narcisista do sujeito, que se faz doravante pelo cumprimento das exigências do Ideal do eu, estará então submetida ao processo secundário e ao seu correlativo princípio de realidade que, intimamente ligados à consciência e atenção, à memória e ao pensamento (Nogueira, 1999, p.2).


Esse conflito, portanto, marca a entrada do sujeito no campo do desejo e da linguagem. A linguagem, ao nomear, instaura a perda: o sujeito só pode ser na medida em que renuncia a ser tudo, e portanto, o sujeito se constrói através de uma cadeia de significantes (Lacan, 1960/1998). Assim, ele é fruto da linguagem, uma resposta ao lugar do Outro, com seus desejos instaurados no inconsciente não verbalizável, que se manifesta, simbolicamente, por formações como sonhos, atos falhos e sintomas.

Nessa linha, a estrutura psicanalítica de Lacan defende um saber sobre o desejo do sujeito, a partir da escuta dos efeitos produzidos pela linguagem. O sintoma é decifrável enquanto texto, e o inconsciente é tratado como um saber não sabido estruturado na linguagem desse sujeito (Flores, 2016), que se escreve nas falhas do discurso, permitindo-se, assim, que o analisante encontre novas significações para o seu desejo, tornando-se um sujeito do suposto saber. Diante do exposto, as ideias de Lacan apresentam um sujeito dividido entre registros, em travessia na busca de um desejo que nunca é plenamente realizado, mas que o move permanentemente. Tal divisão trouxe um importante debate sobre a constituição de tal sujeito, com influências em diversas áreas de estudo que buscavam essa compreensão, como, por exemplo, os estudos sociológicos profissionais de Claude Dubar.


A Sociologia Profissional de Claude Dubar: Identidade, Pertencimento e Atribuição


Ao adentrar na temática da socialização e, consequentemente, da identidade, Dubar (2005) inspira-se constantemente na psicanálise Freud-lacaniana, como base para sua teoria.


É necessário, aqui, voltar à psicanálise e a suas aquisições mais sólidas, recordemo-nos que, para Freud, o Ego é a um só tempo uma instância defensiva contra as agressões do real externo, uma "agência" de coerência das representações e de adaptação à realidade e uma organização de investimento libidinal. O Ego é permeado por conflitos permanentes entre o Id, portador de todos os desejos recalcados, e o Superego, sede das normas e dos interditos sociais [...]. Sem dúvida foi Lacan quem mais insistiu, em sua leitura de Freud, nessa "discordância primordial na relação do organismo com sua realidade [...] nessa "subversão do sujeito" em sua atividade desejante (Dubar, 2005, p.134)


Os processos de construção das identidades sociais e profissionais na contemporaneidade passam por complexos fatores. Ao rejeitar a ideia de uma identidade fixa, Claude Dubar propõe uma abordagem relativizada da identidade, concebendo-a como resultado de processos de socialização e de interações sociais. Neste ponto, pode-se, novamente, fazer uma aproximação com a obra de Lacan, no âmbito da sociologia das profissões, focando nas transformações do trabalho e narrativas autobiográficas.


No caso específico do trabalho docente,


Significa dizer que a identidade docente não pode ser compreendida apenas como um único processo vivido pelos indivíduos. Dessa forma, a sua complexidade surge de seu caráter inacabado, compreendendo a natureza do tornar-se docente como um processo contínuo, fruto das relações e interações com o meio social, através dos ciclos de trajetória de vida e profissional que formam suas singularidades e pluralidades [...] As transformações, as ressignificações, mostram seu caráter cíclico, contextual e processual, pois se trata [...] de um processo situado nas frequentes mudanças que ocorrem na sociedade, nas condições de trabalho e nas trocas com os indivíduos nos contextos culturais com os quais o sujeito interage (Júnior & Conceição, 2024, p.1).


Para Dubar (2005), a construção identitária é um processo dinâmico articulado entre a biografia individual e as regras sociais. Segundo o autor, nesse processo destacam-se dois vieses principais: a identidade "para si", ou seja, aquela construída pelo próprio sujeito com base em sua trajetória, suas experiências e vínculos subjetivos - pertencimento; e a identidade "para o outro", imposta ou reconhecida socialmente por meio de classificações institucionais, diplomas, cargos e expectativas sociais - atribuição. Aqui, é possível realizar um diálogo com a psicanálise lacaniana, ao se considerar os conceitos de “eu ideal” e “ideal de eu”. A identidade profissional, nessa articulação, traduz-se na negociação entre o que o sujeito pensa de si mesmo e o que os outros reconhecem ou impõem a ele.


O pertencimento reflete a maneira como o indivíduo se insere e se identifica com determinados grupos sociais e espaços institucionais ao longo de sua trajetória. Essa dimensão está profundamente ligada à socialização primária (família, escola, valores culturais) e à socialização secundária (formação técnica ou acadêmica, inserção no mercado de trabalho, vivências profissionais), que juntas moldam o sentimento de continuidade do “eu” (Andrade, 2025).


Na perspectiva de Dubar (1991), o pertencimento é constituído por meio de experiências vividas que conferem ao indivíduo um senso de pertencimento a um coletivo, seja ele uma profissão, uma classe,

uma geração ou uma cultura organizacional. A identidade profissional, nesse caso, é construída ao longo do tempo por meio de processos formativos, da experiência prática e da participação em comunidades de prática. É nesse processo que o indivíduo desenvolve não apenas competências técnicas, mas também uma representação simbólica de si mesmo enquanto membro legítimo de um grupo profissional. Por outro lado, o conceito de atribuição diz respeito à forma como a identidade profissional é socialmente reconhecida ou imposta ao sujeito. Nesse caso, inter-relaciona normas e classificações produzidas por instituições sociais, como o sistema educacional, as empresas, os sindicatos e os órgãos de regulamentação profissional.


Segundo Dubar (1997), a atribuição corresponde ao olhar do “outro social” (o Grande Outro, na perspectiva lacaniana) sobre o indivíduo. Ela se concretiza por meio de dispositivos como o diploma, os títulos profissionais, as certificações e os contratos de trabalho, que conferem ao sujeito um estatuto reconhecido socialmente. Ao mesmo tempo, a atribuição pode também implicar exclusões, estigmas ou desqualificações, quando o sujeito não corresponde às expectativas normativas de determinado grupo ou instituição.


Esse reconhecimento institucional é fundamental para a consolidação da identidade profissional, pois é ele que confere legitimidade à atuação do sujeito em uma determinada profissão. No entanto, também pode haver tensões entre as atribuições sociais e os sentimentos de pertencimento dos indivíduos. Por exemplo, um trabalhador pode se sentir parte de uma profissão mesmo sem possuir o reconhecimento formal para exercê-la, ou, ao contrário, pode possuir as credenciais necessárias, mas não se identificar com o grupo profissional ao qual pertence formalmente.


É importante destacar que a identidade profissional, na linha abordada, é particularmente vulnerável em contextos de instabilidade e reestruturação do mundo do trabalho, como, por exemplo, no caso da flexibilização do emprego, a precarização das relações laborais, o desemprego estrutural e a obsolescência rápida das qualificações, afetando a relação entre pertencimento e atribuição, gerando o que o autor denomina crises identitárias (Andrade, 2025).


Desse modo, a compreensão da sociologia profissional na visão de Dubar, propicia um frutífero debate com a psicanálise lacaniana, sendo, em nosso ponto de vista, fundamental para pensar políticas públicas de formação docente, especialmente no convite à reflexão sobre as formas de pertencimento e os critérios de atribuição que constroem o valor social de professoras e professores.


Percurso Metodológico


A presente pesquisa foi realizada no contexto de um curso de pós-graduação stricto sensu em uma universidade pública paulista. Tal curso tinha como objetivo debater aspectos da formação de professores de ciências e matemática, apresentando uma carga horária total de 60h, distribuídas em 15 encontros de 4h cada.


Os sujeitos de pesquisa foram constituídos por 10 mestrandos e doutorandos regularmente matriculados na disciplina, apresentando faixa etária entre 23 e 60 anos e com atuação ativa na formação docente e educação básica, em diversas áreas do conhecimento, como pedagogia, matemática, química, letras e biologia. Cumpre consignar que todos os envolvidos autorizaram sua participação na investigação em termo próprio. A pesquisa foi registrada no comitê de ética sob numeração 5.718.381.


Para que a abordagem sobre a construção identitária docente fosse realizada, solicitou-se aos participantes que se elaborassem um desenho que representasse eles próprios atuando em sua profissão, sendo que a ilustração poderia estar acompanhada por palavras ou frases. Após essa etapa, solicitou-se um novo desenho com consigna semelhante, desta vez solicitando a representação de como os outros os viam atuando na profissão. Após esse processo, os desenhos foram socializados com todos os envolvidos, em uma roda de conversa.

A pesquisa, portanto, apresenta caráter qualitativo, já que seu corpus se constitui de dados emanados de interações sociais e suas possíveis interpretações, sendo possível sua alocação em um estudo de caso, haja vista o recorte de público específico realizado (Minayo, 2012). Assim, ainda que a investigação não permita generalizações, a metodologia aqui empregada busca uma profundidade no tocante à identidade dos professores, permitindo replicações com outros grupos docentes.


Ainda do ponto de vista metodológico, a análise dos autodesenhos foi realizada de acordo com o método já tradicional proposto por Chambers (1983), articulado com Testoni et al. (2016), relacionando os elementos ilustrativos-textuais articulados em uma interpretação contextual. A discussão entre os participantes, durante a roda de conversa, foi gravada, transcrita e teve seus excertos de interesse acadêmico extraídos, utilizando-se a Análise de Prosa (André, 1983).


Resultados e Discussão


A discussão dos resultados levará em consideração os desenhos e falas de cinco participantes. Os demais não foram analisados, por alguns motivos, como a ausência de participação na roda de conversa, não realização dos desenhos solicitados, ou mesmo ilegibilidade da escrita. Assim, o material construído pelos seis participantes, aqui identificados por letras maiúsculas e gênero masculino (visando preservar o anonimato), constituirão o corpus da pesquisa.


Desse modo, a análise que segue buscou interpretar tal corpus à luz das ideias de Lacan (1998, 2008, i.e.), especificamente relacionadas com os conceitos de Grande Outro, eu ideal e ideal do eu, articuladas ao processo de construção identitária profissional proposto por Dubar (2005), focando nos construtos de atribuição e pertença. Para facilitar a compreensão da análise e possibilitar uma visão mais completa de cada sujeito, faremos o relato por participante. Utilizaremos o negrito para auxiliar na localização desses aportes teóricos.


Participante M


O participante M constrói seu primeiro desenho sem desenhar a si próprio. Na ilustração é possível observar diversos professores trabalhando em grupos. Ao lado de cada mesa, há a legenda “Mesas com grupos heterogêneos de professoras (es) (grifo nosso), em busca da aprendizagem). O desenho posterior ilustra o próprio participante sorrindo e com os olhos brilhando; ao lado deste desenho existem as inscrições: “professoras (es) (grifo nosso), gestão da escola, minha chefe”. Ainda no segundo desenho, o participante relata:


Os outros dizem que meu olho brilha quando estou na sala de aula e que lá é meu lugar feliz [...]. Sou formada em ciências sociais, então, às vezes, especialistas em matemática tentam testar meus conhecimentos (em especial homens), mas eu me preparo [..] me achava uma fraude por não estar na lousa, e deixar os alunos irem lá”.


A análise dos elementos anteriores nos traz indícios para inferir que o Grande Outro lacaniano (Lacan 1949/1998) pode ser representado pelas normas da docência tradicional, centrada na lousa, no domínio do conteúdo e na autoridade técnica, especialmente encarnado por figuras masculinas especialistas, neste caso específico. O eu ideal, aqui caracterizado neste artigo como docente ideal, traz um almejar de M em ser um professor acolhedor e reconhecido pelo “brilho nos olhos”, representando uma imagem positiva e afetiva de si mesma (Lacan, 1998). Já o ideal de eu, aqui cunhado como o ideal de docência, pode ser traduzido como o lugar simbólico que exige domínio de conteúdo e postura autoritária, possivelmente internalizado como um padrão ao qual o participante inicialmente não corresponde. Em articulação com as ideias dubarianas, nota-se que M atribui-se, inicialmente, uma identidade frágil (“me achava uma fraude”), mas ao ser reconhecido pelo grupo, constrói pertença e legitima sua prática (Dubar, 2005). Sua identidade, portanto, é reconstituída ao deslocar o Ideal do Eu tradicional por um novo modo de reconhecimento vindo do grupo, trazendo elementos de uma ressignificação de sua identidade profissional.

Participante C


O participante C constrói seu primeiro desenho representando crianças brincando embaixo de uma árvore. Não há a confecção de um segundo desenho, mas a legenda da ilustração e falas do participante podem ser observadas a seguir.


Embora pareçam livres (as crianças), foi uma atividade planejada [...] A direção que não acompanha o planejamento entenderia que houve um não cumprimento das regras [...] A direção decidia os projetos que os professores deveriam trabalhar (...) como não havia jeito, aceitei meu tema (folclore), mas fui pesquisar sobre maracatu e realizei a proposta da minha maneira [...] Já me neguei a obrigar (pela direção) a fazer a mesma atividade, ao mesmo tempo, para todas as crianças.”


As análises do desenho, articuladas com os aspectos contextuais exacerbados (Testoni et al., 2016), possibilita a identificação de elementos que caracterizam o Grande Outro no papel da direção escolar que impõe projetos e padroniza práticas. O docente ideal é trazido como um educador crítico, autônomo, capaz de planejar com liberdade e de respeitar o ritmo das crianças, relação esta que contrasta com o ideal de docência, que, claramente, possui um viés institucional, com cumprimento de regras, alinhamento com cronogramas, fiscalização de espaços, além de um aparente julgamento constante.


Em relação aos critérios estabelecidos por Dubar (2005), C atribui a si a identidade de professor que pesquisa e resiste (“fui pesquisar sobre maracatu”), mas seu pertencimento acusa uma possível crise identitária, ao passo que deseja reconhecimento, mas resiste à normatização (Dubar, ibidem). Assim, C busca romper com o Ideal do Eu instituído para sustentar seu Eu ideal de educador crítico, sofrendo entre o desejo e o lugar simbólico que o julga (Lacan, 2008).


Participante H


H confecciona seu primeiro desenho representando estudantes espalhados pela sala de aula e fora dela (embaixo de uma árvore), com um professor circulando entre eles. O segundo desenho representa a si próprio como um super-herói dá mais foco a frases e palavras, como exposto a seguir.


Plataforma: cumprir metas na plataforma, na qual os estudantes não leem, somente acessam...a plataforma é usada para evitar maiores problemas…momento solo. Os alunos veem as aulas como divertidas, porém a família o vê como um professor tradicional, que fica sentado o tempo todo, à frente de seus alunos enfileirados [...] ter que dar conta de tudo e lutar contra a fadiga extrema.”


Os elementos trazidos por H apontam para um Grande Outro (Lacan, 1949) representado pela plataforma digital de ensino e a lógica gerencial da educação em um viés autoritário, homogêneo e desumano. Ao se desenhar como herói, traz um docente ideal envolvido com o processo de ensino-aprendizagem, porém contrasta com um ideal de docente julgado e cobrado por resultados pela comunidade escolar que, inclusive detém sua imagem pública (“sentada, tradicional”).


Do ponto de vista dubariano (Dubar, 2005), o docente tem como pertença um profissional lutando contra o sistema, porém sem reconhecimento de seus desejos. A crise identitária coloca em conflito seu Eu ideal de educador ativo e o Ideal do Eu tecnocrático (Lacan, 1998), causando, inclusive, o esgotamento, expressos nos sentimentos de fadiga extrema.


Participante P


P, em seu primeiro desenho, posiciona-se sorrindo na mesa da vice-direção de uma escola. Ao seu lado, existem estudantes com rostos tristes ou contrariados. Em seu segundo desenho, P desenha a si próprio com uma placa com a inscrição “posso ajudar?”. Suas falas, durante a roda de conversa, retratam um pouco melhor essa última ilustração, como exposto abaixo:

A equipe docente me vê como alguém “zen”, que fica tomando café o dia todo [...] [sou] um profissional que aparenta gostar do trabalho [...] Não consigo seguir todos os comandos [...] sou obrigado a adaptar provas para a aprovação automática.”


O conjunto de elementos e excertos permitem inferir sobre o papel da escola, enquanto locus burocrático, como um Grande Outro, cobrando por metas, aprovações automáticas, além de práticas esvaziadas de sentido. Aqui, pode-se identificar um embate entre sua visão de docente ideal e o ideal de docente, já que se nota um professor desejante de reconhecimento, enquanto mediador equilibrado e acolhedor, mas que espera eficácia e controle total.


Dessa forma, P vive um paradoxo entre o desejo de cuidar e a exigência de produzir, já que foi a ele atribuído um personagem acolhedor, não sustentado em seu pertencimento. Como destaca Lacan (2008), a imagem de si construída pelo olhar do Outro pode aprisionar. Nesse caso, o “zen” é um estereótipo que apaga sua luta interna, revelada no conflito entre aparência e prática.


Participante Z


O primeiro desenho de Z representa um professor lecionando, de forma on-line, para várias pessoas, cuja legenda indica possuírem formações acadêmicas diferentes. O participante não construiu o segundo desenho, porém escreve:


No meu trabalho, recebo slides prontos e não podem ser alterados. Como preciso manter meu trabalho acabei utilizando, mesmo não concordando com o conteúdo”.


Apesar de lacônico, é possível fazer inferências acerca do papel que o sistema de ensino, enquanto fiscalizador, autoritário e beligerante em relação à autoria docente representa o Grande Outro na relação estabelecida pelo participante com seu trabalho. Nesse contexto, o docente ideal traz um professor crítico e reflexivo (Contreras, 2002) em relação ao conteúdo a ser ensinado; porém o ideal de docência o remete a um sistema que impõe a obediência cega, sem espaço para questionamentos.


Do ponto de vista identitário (Dubar, 2005), o docente tem a si atribuído um papel submisso e silencioso, não sendo possível observar elementos de pertencimento ao vínculo profissional, causando um apagamento da subjetividade. Como observa Lacan (1998), quando o sujeito não tem lugar no discurso do Outro, resta apenas a alienação, aqui representada por um professor que usa um material que não reconhece como seu, mas precisa aceitar para sobreviver, em um processo de esvaziamento identitário apontado por Dubar (2005).


Para efeito de síntese, apresenta-se, a seguir, um quadro com a sistematização dos principais resultados encontrados para cada participante


Quadro 1: Síntese dos resultados observados



Participante


Desenhos/Falas Principais


Grande Outro


Eu Ideal


Ideal do Eu

Identidade Profissional (Dubar)


M

1º desenho: professores em grupos. 2º desenho:: ele sorrindo com “olhos brilhando”. Fala sobre ser testado por especialistas homens e se sentir “uma fraude”.


Normas da docência tradicional e autoridade técnica masculina.


Professor acolhedor, reconhecido pelo afeto e brilho no olhar.


Domínio de

conteúdo e autoridade na lousa.


Reconstrói sua identidade: de frágil para reconhecida

pelo grupo, alcançando pertença e legitimidade.



C

Desenho: crianças brincando sob uma árvore. Fala sobre a imposição de projetos pela direção e sua resistência criativa.


Direção escolar controladora e padronizadora.


Educador autônomo, crítico, atento ao ritmo das crianças.


Educador institucional, normatizado e obediente.

Identidade em crise: atribui-se resistência, mas sofre com a falta de reconhecimento institucional.


H

1º desenho: estudantes espalhados e ele circulando. 2º desenho: ele como super-herói. Fala sobre plataforma, solidão, fadiga extrema.


Plataforma digital e lógica gerencial desumanizante.


Educador ativo e comprometido com os alunos.


Professor tecnocrático e fiscalizado, visto como tradicional.


Vive esgotamento por conflito entre desejo e exigência externa. Pertença frágil.


P

1º desenho: ele sorrindo como vice-diretor; alunos tristes. 2º desenho: com placa “posso ajudar?”. Fala sobre ser visto como “zen”.


Escola burocrática e

exigente por aprovações automáticas.


Mediador equilibrado, acolhedor e envolvido.


Executor eficaz de metas e comandos.


Luta entre imagem de acolhimento e cobrança interna. Pertença marcada por paradoxo.


Z

Desenho: aula online com alunos de diferentes formações. Fala sobre uso de slides prontos sem concordar.


Sistema autoritário que nega autoria docente.


Professor crítico e reflexivo.


Educador obediente e passivo.

Identidade apagada. Submissão sem pertencimento; esvaziamento subjetivo.

Fonte: Autores

Na sequência, iremos expor as conclusões e últimas considerações da investigação em tela.


Considerações Finais


O presente artigo teve como objetivo apresentar possíveis contribuições da psicanálise lacaniana para compreensão dos elementos constitutivos da identidade docente. A proposta de atividade formativa aqui apresentada buscou, através da construção de autodesenhos e (auto)reflexões coletivas, possibilitar tomada de consciência dos fatores que se articulam na construção do “eu” professor. Metodologias (auto)reflexivas na formação docente têm seu potencial validado na respectiva literatura (Sarmento, 2024, i.e.) e, na investigação em tela, foi possível observar fortes indícios que corroboram com tal validação.


Corroborando com essa visão, Silva e Bergmann (2024) nos apontam que


Deste modo, pesquisar o professor e seu processo identitário é uma forma do mesmo se reavaliar e observar como educador, neste sentido [...] compreender como esse indivíduo se enxerga e faz-se docente, por meio de suas identidades pessoal e profissional, mostra-se um pertinente caminho para potencializar sua formação e sua prática. Nesse campo, a identidade profissional do professor emerge como uma nova perspectiva investigativa que pode contribuir para compreender como o professor se constitui e se transforma profissionalmente em diferentes contextos sociais e culturais (p.2).


Ato contínuo, a construção dos desenhos, permeados por frases e palavras, trouxeram elementos além do texto (Testoni et al., 2016), permitindo-se fervilhar inferências acerca do contexto profissional de cada docente. Nessa linha, o aporte teórico trazido por Lacan deu luz a relações conflitantes entre o eu ideal e o ideal de eu, aqui cunhados como docente ideal e ideal de docente, retratando professores acuados por instituições de ensino, representadas por sua gestão em vários níveis, ocupando o papel do Grande Outro lacaniano (Lacan, 1960/1998; Lacan, 1949/1998). Esse conflito demonstrou crises

identitárias profissionais, nas quais, de um ponto de vista sociológico, o papel atribuído ao trabalho docente muitas vezes é distante de um pertencimento profissional significativo.


Portanto, as narrativas revelam o sofrimento docente diante de um Grande Outro que nem sempre reconhece o desejo do sujeito. O conflito entre o eu ideal (quem o professor deseja ser) e o ideal do eu (o que se espera dele) gera tensão, alienação e, em alguns casos, resistência e reinvenção identitária. Entretanto, a atividade formativa aqui trazida trouxe elementos que possibilitaram reflexões dos sujeitos de pesquisa. Tal fator, em nosso ponto de vista, é fundamental, pois permite ao professor reconstruir sentidos e ressignificar sua prática, possibilitando uma construção identitária docente sólida e alinhada aos valores educacionais que primam por aprendizagens significativas.


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