https://doi.org/10.34024/prometeica.2024.30.18914
COMPREENSÃO DOCENTE SOBRE IMAGINAR E CRIAR
REFLEXÕES À LUZ DE VIGOTSKI E DO CÍRCULO DE BAKHTIN
TEACHERS' UNDERSTANDING OF IMAGINING AND CREATING
Reflections in the light of Vygotsky and Bakhtin's circle
LA COMPRENSIÓN DE LOS PROFESORES SOBRE IMAGINAR Y CREAR
Reflexiones a la luz de Vygotsky y del Círculo de Bakhtin
(Departamento Ciências Exatas e da Terra – UNIFESP Diadema, Brasil)
(Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática – UNIFESP, Brasil)
(Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática – UNIFESP, Brasil)
Recibido: 19/06/2024
Aprobado: 30/06/2024
RESUMO
Neste trabalho, pautamos a compreensão de um grupo de professoras acerca da imaginação e criação em suas atividades pedagógicas. Os três conceitos basilares do estudo – imaginação, criação e compreensão – são estudados à luz da Teoria Histórico-Cultural, com ênfase em Vigotski, Volóshinov e Bakhtin. A pesquisa foi realizada em uma das escolas que integram um projeto de parceria colaborativa entre universidade e escola. A análise de uma roda de conversa, mediada pela relação diálogo-compreensão, assumida como unidade de análise, permitiu compreender o coletivo docente como um constructo resultante de significações compartilhadas. Tal constructo pronuncia a cultura e a ideologia daquelas professoras e da escola na qual trabalham. Em seu cotidiano, imaginação e criação traduzem-se no deslocar-se temporalmente e espacialmente pela via da experiência história e alheia; advém de suas experiências pessoais e profissionais, cuja força motriz situa-se na relação e convivência com seus estudantes; essa força motriz gesta o poder de agir e o de resistir à atividade reprodutiva e as impele à autoria sobre seu trabalho. Supomos que há a busca por um lugar para a imaginação em suas atividades pedagógicas - um lugar de esperança e de resistência!
Palavras-chave: compreensão docente. imaginação e criação. atividade pedagógica. Vigotski. Círculo de Bakhtin.
ABSTRACT
This paper examines the understanding of a group of teachers about imagination and creation in their pedagogical activities. The three basic concepts — imagination, creation, and understanding— are studied in the light of Historical-Cultural Theory, with an emphasis on Vygotsky, Volóshinov, and Bakhtin. The research was conducted in one of the schools that are part of a collaborative partnership project with the university. The analysis of a conversation circle, mediated by the dialog-understanding relationship, was employed as the unit of analysis to elucidate the teaching collective as a construct resulting from shared meanings. This construct expresses the culture and ideology of the teachers and the school in which they work. In their daily lives, teachers engage in imaginative and creative activities that allow them to move temporally and spatially through historical and other people's experiences. These experiences are drawn from their personal and professional lives, which are shaped by their relationships and interactions with their students. This dynamic drives them to act and resist the reproduction of existing practices, motivating them to take ownership of their work. We posit that teachers seek to integrate imagination into their teaching activities, aiming to create a space for hope and resistance!
Keywords: understanding teaching. imagination and creation. pedagogical activity. Vygotsky. Bakhtin's circle.
RESUMEN
Este trabajo examina la comprensión de un grupo de profesores sobre la imaginación y la creación en sus actividades pedagógicas. Los tres conceptos básicos -imaginación, creación y comprensión- se estudian a la luz de la Teoría Histórico-Cultural, con énfasis en Vygotsky, Volóshinov y Bajtin. La investigación se llevó a cabo en una de las escuelas que forman parte de un proyecto de colaboración con la universidad. El análisis de un círculo de conversación mediado por la relación diálogo-entendimiento, empleado como unidad de análisis para dilucidar el colectivo docente como constructo de significados compartidos. Este constructo expresa la cultura y la ideología de los profesores y de la escuela en la que trabajan. En el cotidiano, los profesores realizan actividades imaginativas y creativas que les permiten moverse temporal y espacialmente a través de experiencias históricas y ajenas. Estas experiencias proceden de sus vidas personales y profesionales, moldeadas por las relaciones e interacciones con sus alumnos. Esta dinámica les impulsa a actuar y a resistir a la reproducción de las prácticas existentes, motivándoles a apropiarse de su trabajo. Postulamos que los profesores tratan de integrar la imaginación en sus actividades docentes, y crean un espacio para la esperanza y la resistencia!
Palabras clave: comprensión de los profesores. imaginación y creación. actividad pedagógica. Vygotsky. El Círculo de Bakhtin.
O presente trabalho analisa a compreensão de professoras dos anos iniciais de escolarização sobre imaginação e criação em suas atividades pedagógicas. Os três conceitos basilares da discussão, imaginação, criação e compreensão são estudados a partir de referenciais da teoria histórico-cultural, com ênfase em Vigotski e em dois dos pensadores do Círculo de Bakhtin (Mikhail Bakhtin e Valentin Volóshinov).
Na perspectiva vigotskiana, a imaginação é mais que uma função psíquica. Considerada uma atividade complexa, constitui-se como um “sistema psicológico”, por articular-se a várias outras funções mentais, tais como: percepção, memória, linguagem, pensamento, formação de conceitos, dentre outras. A
imaginação está na base da atividade criadora, explicitada por Vigotski (2009a, p. 14) como “aquela que combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novos comportamentos”. Nessa dimensão teórica, a criação torna-se “o destino de todos” (Vigotski, 2009a, p. 16) e não apenas de alguns privilegiados. Essa compreensão guarda a essência do pensamento desse autor, a de que todos, sem exceção, devem ser vistos a partir de suas potencialidades.
Ao nos referirmos à compreensão, assumimos à dimensão social, ideológica, dialógica e axiológica atribuída a esse conceito pelo Círculo de Bakhtin. Para Volóshinov (2017), a compreensão é construída na atividade comunicativa, em um movimento discursivo dialógico, portanto prenhe de significados e de juízo de valores. Como um constructo coletivo, a compreensão, embora reflita a consciência do enunciante (daquele que profere seu discurso), é sustentada por signos ideológicos materializados na conversa entre pares. A palavra, em seu papel de signo, é carregada de significado (Vigotski, 2009b), como tal pode "assumir qualquer função ideológica: científica, estética, moral, religiosa" (Volóshinov, 2017, p. 99). A compreensão, em si, não deixa de ser um processo de significação - um processo de produção de significados.
A relevância deste estudo ancora-se não apenas no importante referencial teórico adotado, mas, sobretudo na relação que estabelecemos entre atividade imaginativa e criadora com a autoria no trabalho docente. Estamos cientes da complexidade desta relação, a lembrar dos tempos difíceis que enfrentamos na atual conjuntura educacional: como imaginar e criar diante do alinhamento e padronização curricular impostos? Como construir significados e compreensões coletivas em tempos de tão forte culto ao individualismo no âmbito do fazer pedagógico? Imaginar e criar acabam por se tornar um ato de resistência na atividade docente, reflexão amparada pela premissa vigotskiana de que imaginamos e criamos a partir de nossas experiências forjadas nas condições materiais e concretas, nas quais, e por meio das quais, produzimos nossa vida diariamente.
Outra relação não menos relevante estabelece-se entre a intencionalidade docente e o lugar que a imaginação ocupa nas atividades didáticas, a saber do importante papel da imaginação no desenvolvimento cognitivo de crianças (Cruz, 2011; Mendonça, 2018, Francioli & Steinheuser, 2020). Nesse viés teórico, sobressai o status social e cultural da atividade pedagógica, tecida a várias mãos, muitas vezes carregadas de dificuldades e contradições, distante de qualquer neutralidade. Significa dizer que as compreensões docentes sobre essas atividades são nutridas por interesses e juízo de valores pessoais e interpessoais, cujas palavras de um constituem e são constituídas na relação com outros. Eis porque a discussão proposta é, para nós, tão cara.
A criação do mundo humano, bem como a evolução da espécie humana, ambas mediadas pelo trabalho, como atividade humana, são marcadas pela imaginação e criação. Tudo que nos cerca tem sua gênese no processo de criação. A base desse pensamento está na máxima marxista sobre o conceito de trabalho social que delega ao trabalho o poder de transformar e autotransformar-se: o homem “Ao atuar, por meio desse movimento sobre a natureza externa a ela e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (Marx, 1985, p. 145). Em outras palavras, Pino refere-se à mesma premissa:
Numa perspectiva histórico-cultural, transformar a natureza significa conferir-lhe uma “forma” nova de existência material e simbólica (entendendo o termo “forma” no sentido aristotélico). Isso tanto vale para a natureza quanto para o homem, parte dessa natureza. Em outros termos, é a humanização do homem e da natureza (Pino, 2006, p. 50).
O que Vigotski busca nos dizer? qual a relação desse postulado com os processos imaginários e criadores? O mesmo que Marx e Pino nos disseram, imaginar e criar perfazem duas experiências, a de planejar (imaginar) e a de produzir (realizar o processo imaginado e consolidar o processo de criação).
Esses princípios materialistas e dialéticos são demarcados por Vigotski ao explicitar a inexorável relação entre imaginação e realidade. Segundo o autor, essa relação ocorre sob quatro formas: a experiência
anterior; experiências históricas e alheias; influência da emoção na imaginação e vice-versa; e o círculo completo da atividade criadora.
Na primeira, o autor destaca que toda e qualquer imaginação tem como fonte a realidade, a experiência anterior vivenciada pela pessoa. Por mais fantástica que seja uma criação, sua gênese situa-se nos elementos hauridos das experiências de cada pessoa. Por isso, quanto mais experiência, maior possibilidade de imaginar e criar com maior complexidade:
A atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e da diversidade da experiência anterior da pessoa, porque essa experiência constitui o material com que se criam as construções da fantasia. Quanto mais rica a experiência da pessoa, mais material está disponível para a imaginação dela. Eis por que a imaginação da criança é mais pobre que a do adulto, o que se explica pela maior pobreza de sua experiência (Vigotski, 2009a, p. 20).
Daí atribuirmos tamanha importância ao processo educacional na formação intelectual dos estudantes, crianças, adolescentes e adultos. Quanto mais experiências vivenciadas na escola, quanto mais repertório conceitual, maior potencial imaginativo e criador. Essa relação também é estabelecida por Cruz (2011) e pelos autores Barbosa e Batista (2018) ao dizerem da articulação entre cognição, pensamento em conceitos e imaginação, numa relação de mutabilidade, em que uma função potencializa a outra.
A imaginação também se relaciona com a realidade por meio das experiências históricas e alheias, o que significa dizer que sempre nos apoiamos na experiência histórica da humanidade e na experiência de outras pessoas, respectivamente, para realizar nossos processos imaginários. Esse fundamento nos diz com muita força do caráter coletivo das atividades imaginativas e criadoras: estamos sempre alçando materiais de outras experiências para compor um ato criador, pois nem mesmo as obras de Shakespeare, ou de qualquer outro grande pensador da humanidade, perde o caráter coletivo. Imaginamos e criamos na relação com outrem.
Na terceira forma de relação, o autor destaca o quão importante é a mútua influência entre imaginação e emoção, isto é, imaginamos de modo diferente a depender de nossos estados de ânimo; ou nossos estados de ânimo são afetados, a depender do conteúdo de nossos processos imaginários. Em seu atributo de função psíquica, a emoção compõe o sistema psicológico da imaginação.
E, por fim, a última forma de relação consiste no movimento dialético circunscrito ao círculo completo da atividade criadora, cujos caminhos não prescindem de elementos percebidos da realidade, os quais, hauridos de experiências pessoais anteriores e de experiências históricas e alheias, são completados no plano mental e realizados em um objeto, material ou simbólico. Esse objeto, uma vez formado, fecha o círculo e volta a compor a realidade, modificados e fixados ou objetivados em novos objetos, frutos da produção humana. Vale ainda lembrar que essa objetivação consiste no "processo pelo qual a totalidade dos instrumentos produzidos (...) contém em si, a um só tempo, a objetivação imediata do trabalho de quem o produziu e a objetivação cumulativa das tantas gerações precedentes" (Azevedo & Smolka, 2023, p. 4).
Esses pressupostos não fogem dos princípios da teoria vigotskiana, os quais explicam a formação das funções psicológicas superiores (Vigotski, 2000; 2009b; 2018; 2021), o de que toda função mental tem sua gênese nas relações sociais em um movimento que segue o curso das relações interpessoais para a relação intrapessoal. Como já dissemos em outro trabalho, “não há imaginação e criação que não sejam frutos de processos sociais, culturais e históricos” (Azevedo & Smolka, 2023, p. 7).
Em coerência com o destaque que demos ao lugar que a imaginação ocupa na escola, assumimos a importância de se discutir a compreensão das professoras, interlocutoras da pesquisa, sobre processos imaginários e criadores em suas atividades didáticas. De fato, imaginar e criar articulam-se com o
compreender docente e com a intenção docente de levar seus estudantes à compreensão dos objetos de estudos. Eis a essência das atividades didáticas: compreender e promover processos de compreensão.
Alguns postulados são pilares do entendimento dos processos de compreensão, como por exemplo, a natureza social do sujeito e a natureza social da linguagem e do signo. Essas premissas são caras tanto para Vigotski como para pensadores do Círculo de Bakhtin, enfatizados por autores como Pino (1993; 2000; 2006), Clot (2006), Smolka (1993, 2006, 2019), Lima (2020), entre outros.
Lima (2020, p. 299), com base em Bakhtin, afirma que "o sujeito para o Círculo, é, essencialmente, social, nesse sentido ocupa posições na sociedade, compõe grupos sociais, representa interesses individuais ou coletivos, enfim, não é inerte à dinâmica da sociedade, mas, ao contrário, produz e é produzido por ela". O próprio Bakhtin (1997, p. 312) elucida a essencialidade das interações entre pares como condição para a constituição do sujeito:
Ser significa ser para o outro, e através do outro, para um mesmo. O homem não possui território soberano interno; está íntegra e permanentemente no limite; buscando-se a si mesmo, olha nos olhos ou através do outro (...). Não pode fazer sem o outro; não pode ser eu mesmo sem o outro; devo encontrar-me no outro, encontrando o outro em mim (em reflexo e percepção mútua).
Ives Clot (2006, p. 23), em suas interpretações acerca da teoria vigotskiana, nos ajuda a compreender o que é o social em Vigotski. Vejamos o que ele diz:
Vygotski achava ingênuo olhar o social como um conjunto de pessoas, como uma coleção. Para ele, o social não era uma coleção de indivíduos. O social está lá, presente, mesmo quando estamos sozinhos; ele não está fora de nós mesmos, nem somente entre nós, ele está em nós, no espírito e no corpo de cada um de nós. Portanto, não é porque se diz “social” que a questão está resolvida.
Concordamos com Clot: a questão não está resolvida, a saber da singularidade do sujeito, a um só tempo, individual e social. Não é porque é individual que não é social, pois, como afirma o próprio Vigotski (1998) o indivíduo singular é social porque somos um conjunto de relações mediadas. Mesmo quando estamos sozinhos, estamos nos relacionando com outras pessoas, seja por meio de lembranças, seja na leitura silenciosa de um livro ou no ato de contemplar um quadro. Somos seres singulares e carregamos conosco muitos outros e muitas vozes. Por fim, Volóshinov (2017, p. 205) corrobora ao dizer que "O mundo interior e o pensamento de todo indivíduo possuem seu auditório social estável" (itálico no texto original).
Ao nos referirmos à natureza social da linguagem, queremos dizer da sua gênese constituída no desenvolvimento histórico da humanidade e de seu papel na mediatização desse desenvolvimento. Há quem diga ser a linguagem tão antiga quanto o primeiro ato mediado do Homo sapiens ao relacionar-se socialmente com outro Homo sapiens. Claro que não se tratou de um encontro casual, ao contrário, o aparecimento da linguagem está vinculado à necessidade de organização social para a busca de satisfações de necessidades conjuntas; de dizerem algo um ao outro em prol da busca de alimentos e de defesa. Sem dúvida, o trabalho socialmente dividido está por trás da formação da linguagem, pois apenas sob tais condições, tão-somente, tornou-se possível formar-se um sistema de signos linguísticos (Luria, 2001).
Azevedo (2013, p. 71), com base em Luria (2001), afirma que "a aparição da linguagem foi o fator determinante para que o homem passasse da conduta animal à atividade consciente". Tal premissa nos remete ao que Marx e Engels (2007, p. 34-35) disseram sobre a relação linguagem e consciência:
A linguagem é tão antiga como a consciência, a linguagem é a consciência real, prática, que existe também para outros homens, que, portanto, também existe para mim mesmo; a linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens. Desde o início, portanto, a consciência, já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens.
Se a consciência é produto da atividade humana, a linguagem também o é e continuará sendo por todo o sempre. Referimo-nos à linguagem como um sistema de signos, no qual a palavra é a sua "célula", o
seu "elemento fundamental e central" por cumprir o papel de conter a generalização "como modo absolutamente original de representação da realidade na consciência" (Vigotski, 2009b, p. 407).
Em suas últimas palavras no capítulo "Pensamento e Palavra" do livro "A construção do pensamento e da linguagem", quiçá, algumas de suas últimas palavras escritas em sua breve vida, Vigotski enuncia que:
Ela [a palavra] é a expressão mais direta na natureza histórica da consciência humana.
A consciência se reflete na palavra como o sol em uma gota de água. A palavra está para a consciência como o pequeno mundo está para o grande mundo, como a célula viva está para o organismo, como o átomo para o cosmo. Ela é o pequeno mundo da consciência. A palavra consciente é microcosmo da consciência humana (Vigotski, 2009b, p. 486, grifos nossos).
Por abrigar e representar a consciência, por ser o "microcosmo da consciência", a palavra consciente é mais que um signo, é um "signo ideológico", tal como diz Volóshinov (2017) em mais de uma passagem do livro "Marxismo e filosofia da linguagem". Volóshinov (2017, p. 95) continua e reforça esse posicionamento ao afirmar que "Uma consciência só passa a existir como tal na medida em que é preenchida pelo conteúdo ideológico, isto é, pelos signos, portanto apenas no processo de interação social". E aqui estamos reiterando esse pressuposto ao dizermos que a palavra, como signo ideológico, materializa-se na comunicação, na interação entre pessoas, isto é, em um processo de compreensão.
A compreensão não se exime do diálogo exatamente por ser realizada na relação entre signos, na relação entre palavras, a lembrar que numa conversação a minha palavra ampara-se e ressoa-se na palavra do outro. O diálogo, compreendido como uma “forma básica de compreensão do outro e de si mesmo, bem como a forma mais importante da interação discursiva” (Grillo, 2017, p. 66), realiza-se na troca de enunciados entre o enunciante e o interlocutor proporcionada pela bilateralidade da palavra. Segundo Volóchinov:
Enquanto palavra, ela é justamente o produto das inter-relações do falante com o ouvinte. Toda palavra serve de expressão ao "um" em relação ao "outro". Na palavra, eu dou forma a mim mesma do ponto de vista do outro e, por fim, da perspectiva da minha coletividade. A palavra é uma ponte que liga o eu ao outro. Ela apoia uma das extremidades em mim e a outra no interlocutor. A palavra é o território comum entre o falante e o interlocutor" (Volóchinov, 2017, p. 205).
O que é a compreensão senão esse constructo ideológico tecido por um conjunto de significados trocados e amparados nas palavras próprias e alheias? Senão um processo que se constitui no âmago das ambiguidades, das contradições, das concordâncias e dos esclarecimentos? O processo de compreensão é em si um movimento de produção e apropriação de significações, o qual "(...) não se dá de maneira passiva nem direta, pois o sujeito reelabora, imprime sentidos privados ao significado compartilhado na cultura" (Zanella e Andrada, 2002, p. 128).
E numa conversação (conjunto de atos discursivos) imprimimos na palavra, aliás, no signo, não apenas significados advindos de nossas experiências pessoais e sociais, mas de sistemas de significação "construídos ao longo da história social e cultural dos povos" (Pino, 1993, p.21). Eis, mais uma vez, a evocação de experiências pessoais, alheias e históricas na composição dos signos ideológicos que permeiam e constituem todo processo de compreensão.
Esse caráter ideológico impresso no signo, na palavra com significado, carrega ideologicamente e axiologicamente o processo de compreensão, o que o configura como “(...) conjunto de valores, crenças, conceitos, ideias compartilhadas por um determinado grupo social, que permite ao sujeito se posicionar frente ao objeto da compreensão (Lima, 2020, p. 303).
Esse posicionamento “frente ao objeto da compreensão” marca a presença do ato responsivo no processo de compreensão. Ao respondermos a um enunciado alheio, estamos buscando nos orientar em relação a ele, estamos adicionando nossas palavras a esse enunciado. Quanto mais réplicas, quanto mais palavras forem trocadas, quanto mais significados elas realizarem, “tanto mais profunda e essencial será a
compreensão" (Volóshinov, 2017, p. 232). Por isso, aludimos à compreensão como uma atividade comunicativa sem nos importar se o conteúdo dos enunciados e dos atos responsivos sejam assentimentos ou antagonismo, pois a sua essência é a realização do ato de comunicar algo a alguém. Por fim, interpretamos a compreensão como um constructo coletivo e colaborativo, cuja palavra transmite a cultura, ideologia e axiologia de seus pronunciantes.
Em coerência com a base teórica fundamentada, buscamos nos aproximar do método construído por Vigotski para suas pesquisas no campo do desenvolvimento humano (Vigotski, 2021, p. 129). Relembramos aqui três princípios básicos desse método justificados por esse autor: (1) análise de fatos dão lugar à análise de processos, o que nos leva à busca da gênese dos elementos contemplados nos enunciados; (2) privilegiar a explicação em oposição à pura descrição, para que nos aproximemos da essência do pensamento das professoras na tentativa de mostrar “relações e conexões” do fenômeno materializadas nos enunciados; (3) apreender o fenômeno processualmente a partir de sua historicidade.
Buscar aproximações com esses princípios implica olhar o objeto para além de sua aparência, desafio nada simples: no caso da conversação em análise, como considerar, por exemplo, a transitoriedade de cada significado enunciado para reconsiderá-lo nas réplicas e consensos? Como captar os elementos de historicidade inscritos nas experiências pessoais relatadas? O desafio está em conceber a compreensão docente não como um enunciado isolado, que se encerra nos sentidos pessoais atribuídos a um objeto, mas como um processo em discussão que constitui e é constituído no “drama” (Smolka, 2021) contínuo do trabalho docente, na dinâmica de suas relações, em seus afetos e desafetos diários, cuja historicidade assenta-se na própria trajetória de vida e profissional de cada professora.
O método de Vigotski prevê ainda a análise por unidades em detrimento do método que decompõe o todo em elementos isolados, tal como é proposto pela psicologia tradicional. Para o autor, a unidade seria a menor parte que contém os elementos característicos da totalidade, sendo esses elementos indecomponíveis. Um exemplo, próximo aos nossos conhecimentos, seria o estudo da água a partir de sua unidade - a molécula de água, por guardar toda e qualquer característica de qualquer quantidade de água, em qualquer um de seus estados físicos. Caso decompuséssemos essa molécula, separaríamos seus elementos químicos, teríamos dois gases e não mais a água.
Em consideração à complexidade desse método, vamos ilustrar com a unidade definida por Vigotski para estudar a influência do meio no desenvolvimento humano – a “Vivência”. Por que Vivência seria uma unidade? Porque “representa, de modo indivisível, por um lado, o meio, o que se vivencia – a vivência está sempre relacionada a algo que está fora da pessoa -, e, por outro lado, como eu vivencio isso”. Na vivência, há “uma unidade indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação que está representada” (Vigotski, 2018, p. 78. Grifos no texto original).
Na busca por traçar caminhos metodológicos para o estudo das compreensões docentes no âmbito de uma conversação, optamos por organizar os dados em episódios e orientar a própria análise pela relação diálogo-compreensão, a nosso ver, indissociável - sem diálogo, não há compreensão, sem compreensão não há diálogo. Outra justificativa importante para essa escolha é que nesta relação residem elementos essenciais para o processo de comunicação, por conseguinte, de compreensão – discursos e significados em movimento. A relação diálogo-compreensão cumprirá o papel de mediar o nosso olhar para os enunciados e suas réplicas, de modo a buscar a essência – os significados que permeiam os discursos e configuram o processo de compreensão. Em coerência com o referencial teórico em pauta, pressupomos que os significados enunciados por cada professora advêm de suas experiências pessoais e profissionais, de seus pensamentos elaborados na escuta ativa de suas parceiras.
Fica aqui imanente o caráter social da relação diálogo-compreensão, pois, ainda que cada signo/significado seja proferido por cada professora em suas enunciações, nenhum deles é isento de seu
status ideológico e social. Enfim, nesse esforço analítico, interessa-nos a complexidade dos significados produzidos e compartilhados nessa busca por compreender o objeto em debate.
A investigação, base deste trabalho, faz parte de uma pesquisa mais ampla vinculada a um projeto1 de parceria colaborativa estabelecida entre pesquisadores de uma universidade pública e 05 escolas da educação básica que atendem os anos iniciais de escolarização e, uma delas, atende a Educação Infantil. O propósito geral dessa parceria foi buscar a melhoria do ensino nas instituições envolvidas a partir da formação inicial e continuada de professores, com atenção centrada na gestão escolar e nas relações de ensino, com ênfase em ciências e matemática. Para a discussão aqui proposta, privilegiamos o processo formativo centrado em uma das escolas, o qual envolve professoras da Educação Infantil e dos anos iniciais de escolarização. Focalizamos os processos imaginários e criadores das professoras, ao planejarem e desenvolverem projetos de ensino interdisciplinares, com ênfase em ciências. Os encontros formativos ocorrem, semanalmente, entre a coordenadora/formadora (uma das autoras deste trabalho) e pequenos grupos de professoras da Educação Infantil e dos anos iniciais de escolarização.
Dentre os dados empíricos produzidos, selecionamos uma roda de conversa realizada entre a coordenadora/formadora e quatro professoras dos anos iniciais, intitulada “como concebemos a imaginação e a criação em nossas atividades didáticas?”. Para além deste título, anotações da pesquisadora em Diário de Campo (D.C.) nos falam do clima de empatia que permeou a conversa:
“Encontram-se sentadas em círculo. Risos e brincadeiras fazem parte do momento, algo que é muito comum nesses encontros. Aliás a grande proximidade entre elas, o fato de se conhecerem há algum tempo e de compartilharem os trabalhos que realizam de forma constante, gerou dificuldades na transcrição da conversa. Muitas falas, afirmações ou lembranças apresentadas são completadas através de gestos e risos. As experiências descritas, por terem sido compartilhadas pelo grupo, muitas vezes não são concluídas ao serem narradas. Para as participantes, olhares, gracejos, expressões de espanto ou de afirmações parecem dar conta de preencher as lacunas deixadas por palavras não ditas, às vezes, apenas iniciadas. Como em qualquer outro grupo, há diferenças e peculiaridades nas vozes, cada professora tem um perfil próprio, umas falam mais, outras discordam ou concordam com o silêncio, muitas vezes com uma palavra ou até mesmo apenas sinalizam com o movimento da cabeça. O certo é que há muita empatia entre elas, cujo respeito à voz do outro é a marca do processo de compreensão” (D.C. 2024, p. 26).
A conversa foi videogravada e guardada no banco de dados da pesquisa em referência, alçada para o nosso cuidadoso estudo dos enunciados com os quais organizamos os seguintes episódios: 1. Primeiro olhar das professoras sobre a imaginação; 2. De onde vem a imaginação? Episódio 3: Imaginação e atividade educativa: Incentivo ou inibição? Episódio 4: Imaginação e autoria na atividade pedagógica. Para este trabalho, escolhemos os episódios 1, 2 e 4 por apresentarem uma grande riqueza de elementos constitutivos do processo de significação. Em tempo, esclarecemos que no decurso da discussão dos resultados, as participantes são identificadas com nomes fictícios.
Episódio I. Primeiro olhar das professoras sobre imaginação
1 PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP:
Título da pesquisa: FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE PROFESSORES E GESTÃO DEMOCRÁTICA: uma parceria universidade- escola para a melhoria do ensino público.
CAAE: 27414619.7.0000.5505. DADOS DO PARECER: Projeto CEP/UNIFESP: Número do Parecer: 3.977.680 – _17/04/2020 –
_PROJETO APROVADO. Maiores informações: E-mail: cep@unifesp.br
Alguns elementos são apresentados pelas professoras ao exporem os sentidos que atribuem ao processo de imaginação. O primeiro é a relação que Luana e Kátia estabelecem entre imaginação e criação/criatividade. Pelo diálogo apresentado, não é possível presumir o lugar que a imaginação ocupa em suas compreensões: será sinônimo de criação? Está na base do processo de criação? (Vigotski, 2009a). Seria algo fantasioso sem nenhuma relação com a realidade?
Mais adiante, nos turnos 4 e 5, Luana e Lúcia aproximam-se um pouco mais do pensamento vigotskiano ao imporem movimento ao conceito de imaginação: "o imaginar, o viajar", “desvendar o desconhecido”, pois como afirma Vigotski (1998, p. 129) os processos imaginários requerem, em um movimento dialético, liberar-se para adentrar-se à realidade, uma vez que a “penetração mais profunda na realidade exige uma atitude mais livre da consciência para com os elementos dessa realidade”. Para que consigamos "viajar", "desvendar o desconhecido", ou seja, visitarmos lugares ou povos nunca antes conhecidos e até mesmo visitar nossos antepassados ou projetarmos o futuro, precisamos, por princípio, nos desprendermos da realidade, libertarmos a nossa consciência das amarras, nos assegurarmos da experiência histórica e alheia, para depois voltarmos à realidade com um novo constructo. Apenas a imaginação nos transporta no tempo e no espaço… apenas a relação inexorável entre imaginação e realidade nos possibilita tamanha façanha.
São relações possíveis de se estabelecer a partir dos enunciados das professoras, mas sem nenhuma certeza da gênese desses posicionamentos: será que elas têm consciência de que estão falando do imaginar a partir da experiência histórica e alheia?
Sigamos para o próximo episódio:
Nossa atenção está centrada no significado das palavras, isto é, nos signos trocados no diálogo estabelecido entre as enunciantes. Por isso, dizemos que estamos assistindo a um movimento dialógico justificado pelo encontro de enunciações. Os atos responsivos provocados pela pergunta da formadora, nos dizem do processo de compreensão acerca da gênese da imaginação. Embora a leitura apareça como um importante lócus de imaginação, parece ser consenso entre as professoras que sua origem se situa na experiência de vida de cada uma delas, expresso por elas como vivências. A professora Luana, no turno 13, compartilha o significado que explica por que a sua árvore é diferente da árvore da professora Kátia,
ao buscar essa diferença em suas experiências culturais no lugar onde vivia. Nos turnos 14 e 15, Kátia e Lúcia, movimentam-se em direção à Luana com palavras de anuência.
O processo de compreensão das professoras coaduna com a ideia de que a árvore que uma pessoa desenha tem em si materializada traços alçados de suas realidades, de experiências guardadas em suas memórias, reelaboradas em seus pensamentos a partir de suas escolhas: tamanho da árvore, coloração, formato das folhas e frutos, entre outros. A árvore desenhada é apenas o ato criativo, o qual “costuma ser apenas o ato catastrófico que ocorre como resultado de um longo período de gestação e desenvolvimento do feto” (Vigotski, 2009a, p. 35).
Possivelmente a compreensão das professoras sobre o conceito de vivência não é a mesma explicitada por Vigotski (2018). Como já dissemos, para o autor, a vivência não é apenas a experiência vivenciada, mas resulta da combinação entre particularidades da situação vivenciada e peculiaridades da pessoa que a vivenciou; depende dos sentidos pessoais, bem como do seu estágio de desenvolvimento. Portanto, a vivência é única para cada pessoa. Embora chamemos a atenção para o conceito de vivência, o significado compartilhado na troca de enunciados não desvaloriza o processo de compreensão, basta que consideremos que a interpretação docente é que vivência é sinônimo de experiências vividas ao longo da vida, ou seja, são sentidos pessoais não condizentes com a significação vigotskiana.
consigo trazer deles a atenção a memorização de que eu não estou vendo, mas eu estou vendo essa (folha), vocês conseguiram ver a folha?
Vários elementos relevantes para a discussão proposta podem ser destacados no diálogo que estrutura este episódio. De antemão, ressaltamos a peculiaridade dos modos de mediação da formadora, sempre com questões abertas, autênticas e sem muitas enunciações afirmativas. Parece condizer com uma escuta ativa, intencional, própria de quem profere uma pergunta autêntica, aquela que é enunciada por quem não sabe a resposta e deseja saber (Werstch, 1999). Parece, conscientemente, respeitar a interação e imprevisibilidade características de qualquer diálogo (Milani, 2020). Essa peculiaridade aparece nas duas perguntas que marcam o início deste episódio... ela não sabe se o professor ainda imagina e nem quando, e deseja saber. Os atos responsivos foram também autênticos e surpreendentes, os quais confirmam a autenticidade da pergunta da mediadora.
Em resposta a essas primeiras perguntas, as professoras, além de se assumirem como imaginativas (“super imaginativas”), nos dizem, a um só tempo, do caráter coletivo de sua atividade criadora e dos motivos que as impelem a imaginar. O teor coletivo de suas ações aparece na voz da Luana, no turno 27, ao responder afirmativamente dizendo “a gente imagina” e na voz da Kátia, no turno 28, ao confirmar que são seus alunos o motivo, a fonte de inspiração para suas atividades imaginativas. O contato e a convivência com eles aguçam “na gente também essa vontade”, as afetam e as constituem como professoras não apenas “super imaginativas”, mas autoras de seus trabalhos.
Esses atos responsivos, ditos com bom humor, expressam os sentidos que cada professora atribui às relações sociais que permeiam o seu fazer pedagógico. A compreensão está em função desses sentidos, dos modos como concebem o outro, dos modos como compreendem a constituição dos seus alunos como sujeitos (Zanella e Andrada, 2002). Parece ser os estudantes a fonte de inspiração e de resistência às tensões contínuas presentes no trabalho das professoras.
Logo em seguida, podemos assistir um pouco dessas tensões nos enunciados das professoras em resposta à pergunta provocativa da formadora. Lara, no turno 29, muda o rumo da conversa ao indagar, propositadamente, se o “material didático atrapalha a imaginação do professor”. Ela faz emergir uma forte contradição do trabalho docente, a tensão entre a atividade reprodutiva e a atividade criadora. Essa tensão explicita possíveis amarras que aprisionam o fazer docente e até podem impossibilitar a constituição da docência como práxis educativa – a associação entre o pensamento e a concepção (Azevedo, Abib & Testoni, 2018).
Sem dúvida, o livro e o material didático existem, prescrevem, exercem controle sobre as ações didáticas, tal como insinua a professora Lúcia ao dizer que “ele [livro] pode tanto atrapalhar (...)”, complementado com o que disse Luana: “atrapalhar não, mas...”. São frases incompletas, abertas, as quais nos mobilizam a imaginar seus complementos. Entretanto, em meio a essas frases incompletas, Lúcia pondera ao afirmar, que “pode ser colaborativo”, que elas possuem “liberdade”, que podem utilizar esse material como apoio e até como fonte de inspiração. Referem-se à possibilidade de autoria, de domínio sobre seu próprio trabalho, ainda que ditado por um determinado material didático ou por uma certa orientação curricular. Podemos interpretar que as professoras não negam os limites impostos pelo material didático, mas que as condições concretas de realização do trabalho docente na escola, onde atuam, abrem espaços de elaboração. Podemos dizer que esses espaços de elaboração são brechas que se abrem na atividade reprodutiva, da qual emergem a atividade criadora (Azevedo & Smolka, 2023). Outra interpretação pode ser a suposição de que esses espaços são criados a partir de condições e modos como o ensino é organizado na escola. E, claro, essas condições e esses modos de organização resultam de acordos estabelecidos entre os pares e que são regidos pelas relações ideológicas e de poder próprios da cultura daquele lugar.
A compreensão que ecoa no diálogo nos transmite esses acordos, aparentes nos enunciados das professoras. Lúcia e Luana, nos turnos 31, 33, 34 e 36, encontraram nas provocações da formadora
oportunidade para relatar suas experiências didáticas, seus processos de autoria, seus modos de driblar essas tensões e contradições que se estabelecem entre seguir o material prescrito ou usá-lo como apoio aos seus processos criativos. Mostram que a força para resistir, ou melhor, o poder de agir (Clot, 2006) que as mobiliza está em suas capacidades imaginativas sempre revigoradas nas relações que estabelecem entre si e com seus estudantes. A força motriz que as impelem a imaginar está também na busca por realizar a função social de sua docência – garantir a aprendizagem.
Notamos esse movimento sobretudo no último enunciado da Luana, o qual nos convida a entrar no movimento de imaginação que ela propõe aos seus estudantes. Não apenas nós aceitamos esse convite, mas também as demais professoras e formadora o aceitaram: a imaginação da professora foi transposta para nossos processos imaginários, captamos o movimento e nossos pensamentos voaram livres, pairando aqui e ali, seguindo o planar da folha ao vento...sentimos o vento e vimos a folha: e você, leitora ou leitor, aceitou o convite? viu a folha?
O que a análise do diálogo imanente à roda de conversa, mediada pela unidade de análise “diálogo- compreensão” nos falam dos modos de compreender das professoras sobre imaginar e criar em suas atividades pedagógicas. Primeiro enfatizamos que há um modo próprio de compreensão do coletivo docente. As professoras falam de um determinado lugar, em nome de uma determinada cultura, cujos sentidos contemplam seus signos ideológicos, os quais, por sua vez, influenciam a constituição de suas consciências (Lima, 2020).
Não temos dúvida do teor ideológico de cada pergunta mediadora do diálogo – havia uma intenção em cada uma delas... ou várias intenções... podemos imaginar algumas: encontrar um lugar para a imaginação no trabalho docente; ressaltar a importância do imaginar na formação das professoras e, por conseguinte, na formação intelectual dos estudantes; potencializar os atos de criação/autoria das professoras... pronunciar uma compreensão, dentre outros. Todos os enunciados e “palavras responsivas”, constituintes do diálogo, são respaldados por uma certa teoria, pelas tantas vozes que povoam as memórias das professoras, pelos tantos outros que as habitam (Volóshinov, 2017, p. 232).
Alguns objetos são representados na compreensão das docentes: imaginar e criar embrincam-se com o deslocar-se temporalmente e espacialmente pela via da experiência história e alheia; a gênese da imaginação está nas experiências pessoais e culturais do sujeito; a fonte de imaginação na escola situa- se em seu próprio trabalho docente, cuja força motriz está na relação e convivência com seus estudantes; essa força motriz, bem como suas experiências profissionais, gestam o poder de agir e o de resistir à atividade reprodutiva; a atividade criadora emerge nas brechas da contradição entre seguir o material didático ou criar a partir das atividades didáticas que propõe; emerge e as impele a serem autoras, donas de seus modos de produzir o seu trabalho cotidianamente.
Assistimos nos diálogos ocorridos em cada episódio que não há nenhuma neutralidade no modo de compreensão das professoras, pois reina no significado de cada palavra, nas significações construídas, a pronúncia da ideologia e da cultura escolar daquela escola, em detrimento de outros ambientes escolares e de outros docentes. Por fim, ousamos interpretar que, pelos menos para essas professoras, há um movimento de busca por um lugar para a imaginação em suas atividades pedagógicos, um lugar de esperança e de resistência!!!
Para finalizar, gostaríamos de dizer que escrever este artigo foi um processo de aprendizado sem limites, melhor dito, um processo de apropriação do conceito de compreensão… porque, sem dúvida, foi um grande desafio a nossa busca por aplicar socialmente esse conceito tão pouco explorado na literatura da área de ensino. Foi para nós um movimento de “dialogismo”, um processo dado pela “emergência de várias vozes” (Scorsolini-Comin, 2014, p. 251), de nossas próprias vozes e de outros que nos povoam; um processo repleto de relações interpessoais, interpretações conjuntas, o qual ganha grande potencial
de incidência sobre nossas zonas de desenvolvimento iminentes (Vigotski, 2009b) e, talvez, fonte de nosso desenvolvimento como pesquisadoras que somos.
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