https://doi.org/10.34024/prometeica.2024.31.16399

 


OUTROS OLHARES PARA A MATEMÁTICA

46F

O CONHECIMENTO MATEMÁTICO PODE SER UM INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E ABRIGO? 1


OTHER VIEWS ON MATHEMATICS

Can Mathematical Knowledge be an instrument of protection and shelter?


OTRAS OPINIONES SOBRE LAS MATEMÁTICAS

¿Puede el Conocimiento Matemático ser un instrumento de protección y refugio?


Thays Alves de Oliveira

(Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil)

thays.alves@ufms.br


Vanessa Franco Neto

(Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil)

vanessa.neto@ufms.br

Recibido: 05/03/2024
Aprobado: 07/11/2024

 


RESUMO

Neste trabalho apresentaremos uma discussão inicial, para as autoras, que tem surgido nos nossos espaços de formação como marcadores das nossas experiências. Um início de debate que consiste na não neutralidade da Matemática e, por consequência, da Educação Matemática numa perspectiva que envolve questões sociais, em específico as questões raciais. Dessa maneira, trazemos para discutir a relação dessas áreas como moldes que os corpos subalternos são submetidos na sociedade. De que forma a Matemática tem sido utilizada, nos mais diversos espaços? A Matemática pode ofertar um espaço acolhedor para mulheres negras? E para a comunidade queer? De quais modos a Matemática tem sido utilizada pelos corpos subalternos? Preocupadas com essas demandas, apresentamos aqui uma breve explanação, e um possível ambiente, para discussões sobre como corpos subalternizados têm se apoiado nas matemática(s) para ocuparem diversos espaços e assim, fugir de opressões e desigualdades que os circulam. Queremos, então, neste artigo apresentar uma demanda inicial nossa, como maneira de questionar o lugar da Matemática e da Educação Matemática para além dos discursos e metanarrativas que são propagadas nessas áreas, que de tanto narrado se torna a única versão quando falamos de(a) Matemática. De modo que as nossas demandas recheadas de angustias possam emergir problemáticas outras nas mais diversas sujeitas.

Palavras-chave: matemática(s). poder. meio escolar. questões raciais e sociais. narrativas.


1 Esse artigo foi submetido e aprovado para apresentação na seção Poster do evento intitulado: 12th Mathematics Education and Society Conference – Brazil, que ocorreu nos dias 28 de julho até 02 de Agosto de 2023 na cidade de Diadema/SP. E, foi ampliado para ser submetido nesse periódico.

ABSTRACT

In this paper, we will present an initial discussion, for the authors, that has emerged in our training spaces as markers of our experiences. A beginning of a debate that consists of the non-neutrality of Mathematics and, consequently, of Mathematics Education from a perspective that involves social issues, specifically racial issues. In this way, we bring to discuss the relationship of these areas as molds to which subaltern bodies are subjected in society. In what ways has Mathematics been used in the most diverse spaces? Can Mathematics offer a welcoming space for black women? And for the queer community? In what ways has Mathematics been used by subaltern bodies? Concerned with these demands, we present here a brief explanation, and a possible environment, for discussions on how subalternized bodies have relied on mathematics to occupy different spaces and thus escape the oppressions and inequalities that surround them. In this article, we want to present an initial demand of ours, as a way of questioning the place of Mathematics and Mathematics Education beyond the discourses and metanarratives that are propagated in these areas, which, because they are so often narrated, become the only version when we talk about Mathematics. So that our demands, full of anguish, can give rise to other problems in the most diverse subjects.

Keywords: mathematics(s). power. school environment. racial and social issues. narratives.


RESUMEM

En este trabajo presentaremos una discusión inicial, para los autores, que ha surgido en nuestros espacios de formación como marcadores de nuestras experiencias. Un inicio de un debate que consiste en la no neutralidad de la Matemática y, en consecuencia, de la Educación Matemática desde una perspectiva que involucra cuestiones sociales, específicamente cuestiones raciales. De esta manera, traemos a discutir la relación de estas áreas como moldes a los que se someten los cuerpos subordinados en la sociedad. ¿Cómo se han utilizado las Matemáticas en los más diversos espacios? ¿Pueden las matemáticas ofrecer un espacio acogedor para las mujeres negras? ¿Y para la comunidad queer? ¿De qué maneras han sido utilizadas las Matemáticas por los organismos subordinados? Preocupados por estas demandas, presentamos aquí una breve explicación y un posible entorno para las discusiones sobre cómo los cuerpos subordinados han dependido de las matemáticas para ocupar diferentes espacios y así escapar de la opresión y las desigualdades que los rodean. Por eso, en este artículo queremos presentar una demanda inicial nuestra, como una forma de cuestionar el lugar de la Matemática y la Educación Matemática más allá de los discursos y metanarrativas que se propagan en estos ámbitos, que después de tanta narración se convierte en la única versión cuando hablar de(las) Matemáticas. De modo que nuestras demandas, llenas de angustia, pueden hacer surgir otros problemas en los más diversos temas.

Palabras clave: matemáticas(s). fuerza. entorno escolar. cuestiones raciales y sociales. narrativas.


Contextualizando o lugar de fala deste artigo

Quando começamos a escrever este trabalho não imaginávamos que ele seria convidado a ser expandido para, em seguida, ser submetido a uma avaliação da PROMETEICA – Revista de Filosofia y Ciencias. Quando iniciamos esse processo de produção, em 2023, nosso intuito era que ele fosse aceito na seção de Pôster do evento intitulado: 12th Mathematics Education and Society Conference – Brazil, que ocorreu nos dias 28 de julho até 02 de Agosto de 2023 na cidade de Diadema/SP. O que aconteceu, apresentamos um pôster em formato de uma discussão inicial nesse evento, com o seguinte título: Outros

olhares para a Matemática. Importante mencionarmos que a expansão sugerida adveio dos comentários e contribuições durante a nossa apresentação, o que nos possibilitou pensar problemáticas outras para darmos continuidade ao que estamos propondo nesse artigo.

Em meio a esse processo de escrita, outro caminhar fez intersecções nessa trajetória. Thays, a primeira autora desse artigo, estava cursando Mestrado47F2 em Educação Matemática pelo Programa de Pós- Graduação em Educação Matemática da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGEduMat/UFMS), sob a orientação da Vanessa, a segunda autora. Durante nossas reuniões de orientação, acordamos que a dissertação (Oliveira, 2024) seria apresentada no formato Multipaper – uma coletânea de artigos possíveis de publicação, que acompanha capítulos introdutórios que de forma sucinta, ou não, apresentam um panorama da pesquisa.

Dito isso, o que gostaríamos de salientar nessa contextualização é que o lugar de fala deste artigo é a composição da dissertação, em formato Multipaper, da Thays, em que esse texto se faz presente com o seguinte título: Outros Olhares para a matemática: conhecimento matemático como instrumento de proteção e abrigo. Ou seja, esse trabalho apresenta um objetivo (que no formato Multipaper se configura como um dos objetivo específicos), que em conjunto com outras produções, respondem ao objetivo geral da dissertação que é investigar as trajetórias de formações de professoras negras de Matemática que atuam no curso de Licenciatura em Matemática das universidades públicas de Mato Grosso do Sul, de modo a compreender as afetações e os atravessamentos das questões sociais e raciais nos processos de formação dessas mulheres.

Então, com a dissertação publicada no Repositório da UFMS, e que nela consta a primeira versão submetida a PROMETEICA desse artigo, achamos importante explicitarmos que uma perspectiva não atualizada desse texto se encontra em uma dissertação publicada. Essa possibilidade é possível pois, o formato Multipaper permite que tais considerações se torne realizável.


Indicações Iniciais

Neste trabalho vamos apresentar uma discussão inicial baseada na narrativa de vida de uma das autoras, a Thays, e uma fala experienciada pela Vanessa, sua orientadora de Mestrado. Nossa intenção aqui não é apresentar uma metodologia de pesquisa, ou até mesmo, um referencial teórico, mas apresentar uma conversa inicial entre as autoras e com possibilidade de afetar diversas pesquisadoras, que nos ajudaram e nos ajudarão a produzir um espaço de problematização sobre algumas maneiras possíveis de abordar ou praticar as matemática(s), provavelmente por caminhos pouco usuais.

Dito isso, precisamos começar a problematizar: de que Matemática estamos falando nesse trabalho? Achamos importante dizer que trabalharemos com a dualidade entre a Matemática (com letra maiúscula) e as matemática(s) (com letra minúscula e no plural). Quando nos referimos a Matemática, a entendemos como uma ciência posta que reafirma suas conquistas desde a civilização ocidental moderna, sustentada por metanarrativas que idealizam a Europa, desqualificando a diversidade de outras culturas pois não apresentam adequadamente a estrutura padrão. A Matemática, segundo Rosa e Giraldo (2023), como a soberana, pautada na relação de poder (im)posta no decorrer dos tempos. Ou seja, “à posição de uma Matemática historicamente eurocêntrica, de referência branca, masculina, cis-heteronormativa” (Rosa; Giraldo, 2023, p. 3). Uma Matemática exata, pronta e acabada.

Em contrapartida, as matemática(s) são os processos de construção do conhecimento, preocupadas e mobilizadas pelas práticas culturais e histórias do desenvolvimento da sociedade. Segundo Rosa e Giraldo (2023), matemática(s) são a (re)invenção possíveis de serem (des)ordenadas e (re)inventadas. E


2 Hoje, Thays, é aluna do curso de doutorado em Educação Matemática do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGEduMat/UFMS).

optamos por utilizar os parênteses para evidenciar a imposição de conhecimentos únicos e a (re)existência de conhecimentos plurais.

A palavra “Matemática”, no singular, é frequentemente associada a um corpo único de conhecimento imutável, evolutivo e constituído a partir de produções científicas de matemáticos pesquisadores. A opção pelo termo “matemática(s)”, no plural, demarca um posicionamento político que se opõe a essa história única – e eurocêntrica – de conhecimento, indicando nosso reconhecimento do dinamismo e da diversidade dos processos históricos e sociais que atravessam a produção de saberes matemáticos. (Rosa; Giraldo, 2023, p. 14)


A Matemática (com letra maiúscula) é a imposição de autoridade de uma cultura sobre as outras, e as matemática(s) (com letra minúscula e no plural) são visibilização dos povos, culturas e saberes que são considerados subalternizados. São matemática(s) que se posicionam, que são resistências e são transgressões do que estão postos e impostos na sociedade. E são com essas matemática(s) que trabalharemos nesse paper, matemática(s) que estão preocupadas com os processos vivos considerando as culturas, subjetividades, desejos, corpos e afetos.

A Matemática que é utilizada para segregar e oprimir aqueles e aqueles que fogem das habilidades que eles ditam serem as certas para esse campo. Em contrapartida matemática(s) (com letra minúscula e no plural), representa a invenção de caminhos outros, a construção do conhecimento que não está pronto e acabado, matemática(s) que estão preocupadas com a história e a cultura que a cerca. (Oliveira, 2024, p. 74)


Portanto, ao utilizarmos esse termo estamos (re)afirmando nossos posicionamentos de lutas e resistências de sujeitos subalternizados em todos os espaços, incluindo os espações considerados de poder.


48F

Matemática como abrigo 3

49F

“Comecei a ir bem nas aulas de matemática, porque não queria ser visto na escola como o menino afeminado (gay). As habilidades com os conhecimentos matemáticos me possibilitaram ser visto naquele espaço para além do menino gay, e me tornei o ‘menino bom em matemática...’” 4


50F

“A matemática, de certa forma, me salvou ao longo da educação básica porque ela foi o que me permitiu ser visto, né. Ser um representante... Ninguém quer passar a sua Educação Básica, a sua escola, como sendo apagado. Você quer ser lembrado de certa forma, você quer ser visto, você quer ser reconhecido por alguma coisa...” 5


Quando eu tive um primeiro contato com esses excertos narrativos, de início comecei a me questionar sobre o meu processo de aceitação da minha negritude e a relação da Matemática nisso tudo. Essas experienciações me possibilitou (re)significar a formação básica, a ponto de relacionar essa área como um abrigo, uma proteção, um silenciamento e um pertencimento que, de certo modo, (re)configurou a minha vida, meu caminhar, minha trajetória e o meu modo de existência enquanto sujeita subalterna na sociedade. Ao me deparar com essas falas, percebi como a minha Educação Básica foi pautada e direcionada por ter uma certa “facilidade” com a Matemática. E por isso, posso dizer que conheço esse lugar que a Matemática ocupa na sociedade, pois as vivi na pele. Formada em Licenciatura em Matemática pela Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, escolhi na monografia narrar episódios (auto)biográficos sobre as experiências e vivências que tive durante a Formação Inicial. Discorrer sobre questões raciais e sociais, são batalhas que escolhi enfrentar recentemente e tem sido um caminho difícil em meio aos silenciamentos que a academia opera e me oferta.

Falar sobre questões raciais em um curso de graduação e em pleno século XXI, é bem mais dificil do que se imagina. Muitos estão acostumados a achar que o racismo já acabou e que é quase impossível que ele aconteça em um ambiente onde todos tem acesso à informação. Mas a realidade não é essa, na academia, ou pelo menos no meu curso [licenciatura em matemática], os diálogos com essa temática foram silenciados


3 Escolhemos nessa seção utilizar a primeira pessoa do singular, por se tratar de uma narração de vida de uma das autoras, a Thays.

4 Fala de um pós-graduando em sua defesa/qualificação, experienciada pela Vanessa, uma das autoras desse trabalho.

5 Fala do João (Guse; Esquincalha, 2022, p. 13)

e quase inexistentes. [...] Falo para que as pessoas entendam que as questões sociais e raciais devem ser discutidas em todo o ambiente acadêmico, inclusive se você estiver em um curso de exatas. (Oliveira, 2021, p. 58)


Durante a formação me vi em meio aos silenciamentos e exclusões que o campo da Matemática pode ofertar. Sofrer racismo na Universidade, fez com que eu entrasse em um processo de questionamentos sobre uma determinada Matemática. Será que a Matemática não tem espaço em discussões interseccionais? Será que essa neutralidade posta já está impregnada em todos que pertencem a essa área? Djamila Ribeiro (2018) menciona que nenhuma ciência pode ser considerada neutra e que essas ideias são ficções interessadas a quem se privilegia socialmente e que tem a inclinação em (re)produzi- las por meio da ciência. De que maneiras podemos ver e interpretar essa área, Matemática, do ponto de vista dos marcadores sociais que perpassam nossas vidas sociais? Desneutralizar a Matemática tem sido um longo caminho a ser percorrido, pois esse conhecimento é tido como essencial e qualificador de condutas de modo a (re)produzir normas sociais que regulam os corpos (Valero, 2018). Segundo Guse e Esquincalha (2022) a Matemática pode ser utilizada como dispositivo para manutenção de poder, além de segregar e excluir.

A matemática, enquanto considerada como conhecimento essencial para que os jovens se insiram nas sociedades contemporâneas, tem um papel fundamental nos modos de produzir e replicar práticas de inclusão e exclusão no campo social. As tecnologias de diferenciação dos corpos são também operadas por meio da matemática somadas às relações de gênero que permitem a viabilidade do sujeito, distribuindo e elaborando condutas que qualificam [ou somos condicionados a pensar assim]51F6. (Neto; Borges; Alves, 2021, p. 186)


O uso que é feito da Matemática busca incondicionalmente determinar regras com base na lógica, desencadeando uma única forma de se produzir conhecimentos, conhecimentos esses que em sua maioria nos fazem pensar que qualificam. Nunca tinha olhado para a Matemática como ferramenta prática de inclusão e exclusão de sujeitos, e muito menos, como um ‘bicho papão’ (Oliveira, 2021) como os meus colegas da Educação Básica estavam acostumados. Mas depois de experienciar a graduação, passei a olhar para ela como um campo que em diversos momentos silenciam os corpos subalternos – que são todos os corpos que vivem à margem na sociedade (Miskolci, 2009) –. E foi nesse processo de exclusão que questionei a minha escolha profissional, pois me deparei com uma Matemática que afasta as nossas subjetividades em busca de uma suposta, de uma suposta objetividade. A escola nunca foi um espaço acolhedor para uma menina negra e, para ter uma educação “mais leve”, tive que me apoiar nos estudos para ser notada para além da cor da minha pele e da aparência física. O ambiente escolar passou a ser um espaço de resistência, e esses “espaços sociais como as escolas não são apenas locais de reprodução. São também lugares de contestação e resistência” (Valoyes-Chávez, 2018, p. 175, tradução nossa52F7).

A escola, segundo Guse e Esquincalha (2022, p. 02), “pode incluir e marginalizar pessoas e, consequentemente, corpos que escapam do padrão dominante da sociedade”, é um espaço que alimenta práticas preconceituosas na vida de pessoas que não se enquadram no padrão posto. Os grupos marginalizados têm de enfrentar cedo as ridicularizações, brincadeiras, falas que desqualificam e desumanizam determinadas comunidades e esses discursos ganham cada vez mais força em/no ambiente escolar, mas que com o passar do tempo, e não posso deixar de mencionar, que esses discursos parecem estar mudando.

É fato que a escola está estruturada sob um modelo normatizador, sempre foi e ainda é um espaço fechado, com os olhos focados numa cultura colonial, etnocêntrica, hierarquizada pautada na dominação e na exclusão. Pelo fato de, por muito tempo, ter sido considerada como espaço de ordem e disciplina a escola nunca recebeu muito bem pretos, pobres, favelados, pessoas com necessidades educacionais especiais, gays, lésbicas, entre outros tantos sujeitos que a sociedade e a escola sempre insistiram em deixar à margem dos espaços sociais e dos currículos escolares por não estarem enquadrados nos padrões deterministas da nossa sociedade conservadora. (Souza; Rodrigues; Figueiredo, 2017, p. 29)


6 Grifo das autoras.

7 No original: “Social spaces such as schools are not only sites of reproductions. They are also places for contestation and resistance”. (Valoyes-Chávez, 2018, p. 175)

O que se pode argumentar é que a escola é incapaz de lidar com a diferença e a pluralidade de corpos que ali ocupam. É importante, também, pensar a escola como uma instituição social para além de um espaço de ensino e aprendizagem, porque segundo Neto e Valero (2020):

a escola, enquanto instituição social e fonte de ação educacional desta, além de ser um local privilegiado para se avaliar, discutir e refletir as diferenças e as relações entre homens e mulheres, mostra-se também como sendo uma das principais responsáveis pela produção e reprodução das desigualdades entre eles. (Neto; Valero, 2020, p. 202-203)


A escola tem sido a primeira porta de atravessamentos que corpos subalternos enfrentam, como mecanismo de aceitação. É nesse espaço que as crianças começam a perceber que o mundo é dos brancos, que o que vai ser ensinado são culturas europeias que são vistas como superiores, e o ideal a ser seguido (Ribeiro, 2019).

53F

“A Educação Básica se resume a isso, há muita segregação, muita violência velada, muito silenciamento, muito constrangimento dentro do ambiente escolar!” 8

9

E dentro desses moldes a Matemática tem sido fundamental para fortalecer (n)esse processo. E ir bem nas aulas de Matemática, mas não apenas nelas, fez com que meus colegas me quisessem por perto, pois “ser a melhor aluna da turma é uma forma de responder às representações e posicionamentos pejorativos” (Valoyes-Chávez, 2018, p. 186, tradução nossa54F ). Ou seja, aprender Matemática equivale tornar-se progressivamente capaz de reproduzir conhecimentos hegemônicos (Rosa; Giraldo, 2023). O ensino e a aprendizagem, em especial o da matemática, servem para sustentar hierarquias que oprimem, e em alguns momentos eles fazem com que estudantes escapem das normas, passem despercebidos, devido a proteção que esse conhecimento fornece. Ou seja, a Matemática que é ensinada nas escolas é ‘branca e masculina’ – uma ‘Matemática branca e masculina’ (Rosa; Giraldo, 2023).

55F

Djamila Ribeiro (2018), apesar de não falar explicitamente da Matemática, narra que ser CDF 10 evitou que ela “fosse xingada algumas vezes, mas nunca a protegeu de verdade. Descobriu que podia fazer com que os outros alunos, que até então só riam dela, precisassem dela” (Ribeiro, 2018, p. 13). Lélia Gonzalez (2020) também narra, que a única solução que encontrou para enfrentar a discriminação racial no ambiente escolar foi ser a primeira aluna da sala, e ainda afirma “é aquela história, ‘ela é pretinha mas é inteligente’” (Gonzalez, 2020, p. 319). E nisso, a minha trajetória está de acordo com as delas, a partir do momento em que passei a ser destaque na escola e a ajudar os colegas nas aulas de Matemática, os preconceitos que antes sofria pareciam ter desaparecido devido ao “sucesso” na disciplina que era/é odiada por boa parte dos alunos. Utilizei das minhas habilidades com os saberes/conhecimentos matemáticos, como instrumento de proteção no decorrer das minhas vivências escolares, e isso hoje me faz (re)lembrar, mais que isso, aprender que instituições como a escola tem como marca a construção das nossas identidades sociais.

Assim que comecei a estudar sobre o meu processo de formação percebi que havia feito da Matemática um escudo frente ao racismo que sofria nessa etapa. Acreditava que essa experiência marcava apenas o meu corpo negro, e que essas violências não interseccionariam outros corpos considerados subalternos. Foi uma surpresa, que carrega uma dualidade de não ser a única, enquanto uma mulher negra, a vivenciar essas opressões e ao mesmo tempo o sentimento de raiva por outras pessoas experienciarem elas, quando a me deparei com o excerto da narrativa: “as habilidades com os conhecimentos matemáticos me possibilitaram ser visto naquele espaço para além do menino gay, e me tornei o ‘menino bom em matemática...”. Foi com esse trecho que percebi que a Matemática tinha sido uma ferramenta de abrigo e proteção para outros corpos, que não só os negros como eu imaginava.


8 Fala da Ticiane (Guse; Esquincalha, 2022, p. 09)

9 No original: “Being the best student of her class is a way to respond to the pejorative representations and positioning”. (Valoyes-Chávez, 2018, p. 186)

10 A etimologia da sigla CDF tem origem das expressões “cabeça de ferro” e/ou “crânio de ferro”. O que pode significar que uma pessoa que é considerada muito inteligente, sendo geralmente o/a melhor estudante da sala.

Me fiz acreditar que quando se refere ao universo da comunidade LGBTQIA+ as “máscaras” que invisibilizam as identidades de sexualidade e gênero desse grupo são “fáceis” de serem incorporadas. Por mais violento e opressor que sejam esses processos e os ataques a essa parcela da sociedade, algumas características e performances apagam/silenciam os modos de se viver e se expressar desse povo. Não estou dizendo que o processo não seja tão violento quanto as invisibilizações das identidades negras, cada um desses grupos carrega em si suas subjetividades/singularidades/particularidades, o que configuram processos distintos de opressões. O que digo é que antes de começar a estudar essas temáticas me parecia certo acreditar que as máscaras que a comunidade LGBTQIA+ são forçadas a colocar, são de alguma maneira imperceptível as cosmovisões da cis heteronormatividade. Ou seja, eu acreditava que essas pessoas tinham maiores passabilidades, pois em alguns momentos de suas vidas performam a heteronormatividade. O que, em contrapartida, não ocorre com corpos negros, que independente do que façam não tem como mascarar a raça e os fenótipos que demarcam a comunidade negra.

E essa invisibilidade/violência/opressão que acomete os corpos subalternizados, independente dos marcadores sociais, em determinados espaços operam de maneira imperceptível a depender das habilidades que demarcam e marcam os seus corpos. E nesse caso a Matemática foi uma aliada, um abrigo, uma proteção, para que essas invisibilidades não sejam os nossos definidores sociais. Na fala do João: “a matemática, de certa forma, me salvou ao longo da educação básica porque ela foi o que me permitiu ser visto, né. Ser um representante...”, explicita bem essa necessidade de serem vistos/percebidos para além dos marcadores que definem os nossos lugares de opressão e violência.

É importante salientar que problematizar a relação de amor e ódio em que a disciplina de Matemática opera nas relações de ensino e aprendizagem das(os) estudantes, não entrará em discussão nesse artigo, mas é importante ressaltar que essa relação contribui para qualificar corpos que terão êxito quando falamos de conhecimentos matemáticos. Pois, o que pretendemos apresentar nesse artigo é como utilizamos o saber matemático como instrumento de proteção e abrigo, como um ato insubordinado.

A matemática é uma disciplina amada e odiada ao mesmo tempo. Amada por ser desafiadora e muito necessária. Odiada porque, ao longo dos tempos, criou-se um mito de que a mesma só seria absorvida por pessoas com genialidade e dedicação extrema. Odiada também pelo fato de que muitos dos que a transmitem tendem a dificultar o seu entendimento e manter a expectativa de que os acessos aos conhecimentos matemáticos são infinitamente complexos. (Almeida; Pereira Neto; Silva Neto, 2011 apud Pereira Neto; Silva Neto; Quirino; Pereira, 2020, p.40)


A suposta genialidade e dedicação que essa disciplina exige, me fez questionar quais são os corpos que teriam essas “qualidades”. Então, percebi que para alguns ao meu redor, parecia impossível uma menina negra ir bem em uma disciplina escolar que nesse espaço que exigia abstração, formalismo, objetividade, rigor, técnica e raciocínio lógico. Ou seja, a Matemática é conhecida pelo seu discurso masculino e com isso as mulheres sempre precisam fazer mais para que sejam reconhecidas como boas em matemática (Guse; Esquincalha, 2022). Discursos esses que afirmam que homens tem mais facilidade e propensão a esse conhecimento, do que as mulheres. E muitos professores da Educação Básica pareciam não acreditar que os corpos subalternos da sociedade teriam as qualificações para ir bem nas aulas de Matemática, pois os “estudantes de minorias raciais são vistos por seus professores de matemática como carentes dos atributos e dispositivos necessários para o sucesso no aprendizado da matemática” (Valoyes-Chávez, 2017, p. 137, tradução nossa56F 11). Ou seja, saber Matemática também influencia na relação professor(a)/aluno(a) para além da relação entre colegas.

[...] a “matemática é produzida historicamente pele ‘inspiração isolada de gênios inatos’” e isso faz com que “seu entendimento só [...] [seja] acessível a pessoas com ‘talento inato’. Ou seja, em um ordenamento de certo e do errado, aqueles que não nascem com ‘talento matemático’ nunca serão considerados ‘bons’” em Matemática. (Rosa; Giraldo, 2023, p. 8)


11 No original: “estudiantes de minorías raciales son vistos por sus maestros de matemáticas como carentes de los atributos y disposiciones necesarias para el éxito en el aprendizaje de esta disciplina”. (Valoyes-Chávez, 2017, p. 137)

Entendi da pior maneira possível que raça, classe, etnia e gênero, ou seja, as identidades sociais funcionam como “indicador da natureza desigual da escola e a capacidade de antecipar quais estudantes terão sucesso na aprendizagem da matemática” (Valoyes-Chávez, 2017, p. 131, tradução nossa57F12), contribuindo nos processos de construção, reafirmação e reconstrução de identidades matemáticas. A Matemática é um espaço racializado, pois ideologias raciais moldam as interações dos tipos de matemática(s) que os alunos e alunas podem vir a experienciar durante os seus processos de formação. Mas por que essas identidades são necessárias? Se o ambiente escolar é para todos, por que esconder suas singularidades? E o que acontece com os corpos que desejam performar sua singularidade livremente? O que acontece com os corpos que não mostram habilidades em Matemática? Porque a Matemática é identificada como “uma ‘disciplina difícil’, ‘acessível a poucos’, que seriam dotados de um suposto ‘talento inato’” (Rosa; Giraldo, 2023, p. 9).

Nesse campo precisamos reconhecer nosso papel político em contribuir nos processos de dominação nas sociedades (Valoyes-Chávez, 2017). A Matemática contribuiu fortemente para que eu não me descobrisse negra e com o apagamento da minha negritude (Ribeiro, 2019), pois durante a escolarização fui acusada de ser negra. Estamos tão condicionados a viver em uma sociedade que performa a branquitude que crianças, que vivem em seu seio familiar ensinamentos das comunidades negras, quando experienciam o mundo padronizado fora da bolha de suas casas, no caso aqui a escola, temos como um dos mais violentos processos de racismo, que é forma violenta que somos acusados de nossa negritude, visto que ela se difere do que está posto fora de suas bolhas. E assim, como Djamila Ribeiro (2018), eu me imaginava fora das situações cotidianas para não enfrentar a realidade racista que me cercava. Esses momentos ajudavam um pouco, mesmo assim ainda permanecia o sentimento de inadequação e não pertencimento naquele espaço.

Intimamente vinculado à ideia de classificação, enquadramento, destacamos a branquitude, como percepção psicossocial patológica do “ser branco”, a partir da invenção, pelo próprio branco, da categoria “raça” como forma de hierarquização de corpos. Assim, a branquitude se baseia no estabelecimento de um padrão de “normalidade” e na desqualificação daquilo que diverge deste. [...] A branquitude, historicamente construída, não é percebida, ou assumida e, muitas vezes, “passa em branco” ou até mesmo é renegada. (Rosa; Giraldo, 2023, p. 8)


58F

Desse modo, ir bem nas aulas de Matemática me possibilitou um espaço com um falso acolhimento que me fez mascarar o racismo e os preconceitos que me cercavam, ou seja, fica escuro que a “matemática nas escolas como parte do currículo não é apenas uma questão de ensinar às crianças os conceitos de matemática. É também uma questão de fazer tipos de pessoas” (Valero, 2018, p. 129, tradução nossa 13). Mas, também é importante mencionar que o saber matemático construído e impõem a sua representatividade na história e na ciência, colocando posições sociais de subalternização e de dominação sobre outros conhecimentos de outros grupos étnico. Segundo Guse e Esquincalha (2022) eles entendem as matemática(s), e concordo com eles, como:

prática social definida pelas histórias que contamos sobre ela, podendo ser tão poderosas a ponto de afetar a forma como pensamos e podemos agir sobre ela [...] podemos inferir que a matemática é produzida por práticas discursivas, entendendo essas práticas não como realidade, mas como formas de criá-la e modifica- la. (Guse; Esquincalha, 2022, p. 15)


E, de acordo com Lélia Gonzalez (2020) o sistema de ensino destila em termos de racismo e apontam para um processo de lavagem cerebral de tal violência que a criança que continua os estudos, e que por acaso chega no Ensino Superior, não se reconhece mais como negra pois calaram a sua existência, ou seja, “a medida que eu me aprofundava em meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais a minha condição de negra” (Gonzalez, 2020, p. 286). Falo isso pois, acredito, e Rosa e Giraldo (2023) corroboram, que a Matemática é enviesada pelo racismo estrutural que está intrínseco nas sociedades brasileiras. Ou seja, os conhecimentos dos europeus são impostos e determinados como os padrões na


12 No original: “indicador del caráter inequitativo de la escuela es la capacidade para anticipar cuáles estudiantes tendrán éxito en el aprendizaje de las matemáticas”. (Valoyes-Chávez, 2017, p. 131)

13 No original: “it becomes clear that math in schools as part of the curriculum is not just a matter of teaching children the concepts of mathematics It is also a matter of making types of people”. (Valero, 2018, p. 129)

nossa sociedade que é diversa e plural. Que outras lentes podem ser utilizadas para operar com/a matemática?


Considerações Finais de uma Discussão Inicial

Há um tempo estamos preocupadas com o modo que olhamos para a Matemática e para a Educação Matemática. Sempre as enxergamos, e isso tem mudado, como áreas difíceis, seletivas, que são para poucos e não para todos. Mas uma Matemática e uma Educação Matemática para todos é uma necessidade que não pode ser adiada (Valero, 2018). Usar a ideia de “matemática para todos”, é muito mais que uma educação com igualdade e equidade, é também uma questão de moldar tipos de pessoas.

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A declaração matemática é para todos atuou como um dispositivo discursivo operando em exclusões. Matemática para todos não se trata apenas de expressar o desejo e criar a necessidade de uma educação melhor para todos; trata-se também de classificar os indivíduos e as populações de acordo com quem está mais apto para o tipo de ordem econômica para a qual as habilidades matemáticas pretendem contribuir. (Valero, 2018, p. 129, tradução nossa59F )


Esses discursos têm feito com que a Matemática fique em um pedestal e a torne ausente para algumas discussões, pois são considerados dois universos diferentes e sem conexão (Oliveira, 2018), pois a Matemática não é neutra. A falsa neutralidade desse campo oferece e propaga diferentes modos de opressão. Essa área se constituiu com um status de superioridade (Guse; Esquincalha, 2022) em que muitas vezes a Matemática é considerada superior a outras áreas, o que corrobora para que detenha privilégios e seja considerada como sinônimo de inteligência. Martin (2009) fala que existe uma hierarquia linear fixa de habilidade Matemática que são estereotipadas.

E foi tal imagem que inventou, desnecessariamente, o método de provar lógico-verbalmente a verdade de uma proposição matemática, sem se fazer referência aos fatos praxeológicos com os quais ela sempre está envolvida. Penso ter sido a invenção ideológica da prova lógica que acabou excluindo arbitrariamente, do domínio das matemáticas, as matemáticas tecnologicamente praticadas em todas as formas culturais de vida, desde tempos remotos. (Miguel, 2024, p. 15)


A Matemática tem sido considerada uma ciência neutra que não pode ser afetada pelo campo social, pois está muito envolvida com sua lógica, rigor, definições, para se envolver com questões para além dessas demandas. Segundo Duarte (2012), penso que é preciso olhar para as matemática(s) “como uma lente, uma possibilidade, uma linguagem que não é o reflexo do mundo, mas que, ao ‘dizer sobre o mundo’, acaba por construí-lo e o faz de uma maneira bastante peculiar” (p. 173-174). Apesar de acreditarem que esse campo não sofre e não tem influência no desenvolvimento da sociedade, não se pode negar que falas tem sido ditas para que possamos pensar na quebra dessa falsa neutralidade que a cerca.

A neutralidade e a universalidade estabelecem diferenças; constroem hierarquias e produzem identidades no interior de processos de significação. Mas se constituíram “em asserções que se tornaram tão ‘verdadeiras’ que é difícil ver precisamente o que pode haver nelas de questionável”. (Duarte, 2012, p. 178)


Ao longo da produção deste texto, percebemos que a matemática produz identidades que estabelecem diferenças, sempre que falamos dessa disciplina a verdade inquestionável que aparece é a sua contribuição nos processos de exclusão de corpos subalternos. Alguns dizem que a matemática descreve realidades, mas na verdade ela não “descreve realidades, na verdade a produz” (Guse; Esquincalha, 2022, p. 16). Mas esse diálogo aqui apresentado, possibilitou pensarmos esse campo para além da área seletiva e opressora, e passamos a vê-la como um lugar de abrigo, conforto e aceitação dos que estão ao redor. Dito isso, temos que pensar no poder que as matemática(s) tem de trazer sujeitos subalternos para lugares e espaços que proporcionam visibilidade e assim, abrir novos caminhos para tais compreensões,


14 No original: “The statement math is for all has acted as a discursive device operating in(exclusions). Math for all is not only a matter of expressing the desire and creating the necessity of better education for all; it is also a matter of clas-sifying individuals and populations according to who is more apt for the type of economic order to which math skills are envisioned to contribute”. (Valero, 2018, p. 129)

reivindicando a sua existência. O que leva uma pessoa, pertencente a grupos subalternos, a escolher um curso que é excludente? E, fica mais uma questão: Quais cursos não são excludentes?

Porém, ao mesmo tempo que esse conhecimento pode possibilitar espaços outros para corpos subordinados, que estão à margem na sociedade, ele também marca a vida daqueles que não os tem como uma de suas habilidades. O que acaba gerando hierarquizações e algumas relações outras de excludência no espaço educacional, o que também gera discursos que validam a narrativa de que o conhecimento matemático é superior e para poucos. É importante pontuar que ao trazer essa temática de “matemática como abrigo”, não é de maneira alguma uma forma de destacar e evidenciar que essa área é importante na vida dos alunos, tampouco evidenciar a superioridade dela. Mas uma maneira de evidenciar que a matemática está interseccionada com as trajetórias de vida de corpos em que ela mesma ajuda inviabilizar e silenciar. Nosso papel nessa produção, é questionar os outros modos de se olhar para a matemática sem deixar de criticar os moldes em que ela opera.

Outra demanda que precisamos explicitar é que a mobilização do conhecimento matemático no ambiente escolar, não impossibilitou os sujeitos de experienciarem os preconceitos que a sociedade propaga. Isso não implica que suas vivências não foram marcadas por discriminações. E que por conta disso, a matemática deixou de silenciar e oprimir esses corpos marginalizados. O queremos explicitar é que essa área é marcada e afeta por questões históricas, sociais, políticas e culturais (Guse; Esquincalha, 2022, p. 18). Ou seja, ela opera de forma a disciplinar e ser disciplinadora.

A cultura matemática escolar disciplinar e disciplinadora é estruturalmente colonizadora, misógina, racista, anti-praxiológica, anti-naturalista e anti-ambientalista, porque ela exclui ou coloca no plano de invisibilidade e anonimato exatamente os reais produtores dessa cultura. (Miguel, 2024, p. 26-27)


Dito isso, temos nos questionado a partir da narrativa de uma das autoras e das falas que deram início a esse artigo, sobre as infinitas possibilidades que a matemática pode ofertar no desenvolvimento daqueles que, de algum modo, sofrem com os processos de silenciamento pois, “todo ato de exclusão/inclusão é violento, pois tira-se do outro o poder de sua linguagem, ele é silenciado” (Oliveira, 2018, p. 219). Acreditamos que a Matemática é uma forte ferramenta para qualificar e desqualificar os preconceitos que cercam todos os corpos subalternizados que vivem na sociedade, e que estão à margem. Essa “sopa de letras” foi uma maneira de mostrar os outros moldes que esse campo ocupa na sociedade para além de ser visto como ditador de identidades “bem-sucedidas”.

E para finalizar queremos explicitar que muito ainda precisa ser desenvolvido nessa temática, pois temos que explorar as inúmeras maneiras que a Matemática opera nos corpos subalternizados. Apresentamos aqui um excerto inicial que está sendo desenvolvido em uma dissertação de Mestrado, em que as autoras nutrem uma relação de orientanda e orientadora. Por último, esperamos que você, leitor, desnaturalize a língua naturalizada, e assim como diz Larrosa (2020) ela seja ativa na fala e na escuta. Porque não escrevemos para convencê-los de nada – já que a única coisa que temos são perguntas – nem para explicar nada – pois o que dizemos na certa já sabiam (Larrosa, 2020). Mas escrevemos para ver se somos capazes de dizer algo que valha pena pensar. Precisamos pensar em matemática(s) que buscam reflexões sobre o que nos é apresentado como dado, para assim (re)inventar processos de vida. Assim esses processos de vida se intercruzam e produzem matemática(s) outras. Dito isso, gostaríamos de conversar com você: Que outras lentes podem ser utilizadas para operar a (ou outras) matemática(s)?


Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Com o apoio da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e a Pró Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. E pela comissão de Apoio Financeiro MÊS 12 – Mathematics Education and Society Conference.

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