https://doi.org/10.34024/prometeica.2024.29.16263
IDENTIDADE CORPORAL NA PROSTITUIÇÃO
UMA REFLEXÃO A PARTIR DO FILME UMA LINDA MULHER (PRETTY WOMAN)
BODY IDENTITY IN PROSTITUTION
A reflection from the film Pretty Woman
IDENTIDAD CORPORAL EN LA PROSTITUCIÓN
Una reflexión de la película Pretty Woman
(Mestrado Profissional em Práticas Institucionais em Saúde Mental
da Universidade Paulista - UNIP, Brasil)
(Mestrado Profissional em Práticas Institucionais em Saúde Mental
da Universidade Paulista - UNIP, Brasil)
selma.benzoni@docente.unip.br
Recebido: 30/01/2024
Aprovado: 20/01/2024
RESUMO
A identidade corporal e a expressão da sexualidade na cultura ocidental são marcadas por tabus, devendo ser restritas à intimidade das “quatro paredes”. Entretanto, a experiência da intimidade é construída socialmente e carrega consigo todas as marcas de um tempo histórico, no qual os corpos estão inscritos. As mulheres prostitutas que desafiam os prescritivos morais da sexualidade atrelados à reprodução e ao matrimônio e que monetizam a experiência sexual, sofrem penalidades sociais,como a exclusão. O objetivo deste trabalho é refletir, a partir do filme Uma linda mulher, o modo como a identidade corporal das mulheres profissionaisdo sexo é significado socialmente, com base na literatura brasileira. A metodologia eleita é a análise de filme, por meio das categorias temáticas: objetificação do corpo feminino, invisibilização social do corpo feminino e adestramento corporal. As vestimentas, a composição estética de uma profissional do sexo pertencente a um contexto de classe baixa, como retratado no filme pela personagem Vivian, são alvo de um estereótipo de vulgaridade e a reduz a um objeto sexual. Essas mulheres tornam-se mais vulneráveis aos diversos tipos de violência, abuso e exploração, que, além da desumanização dos corpos, promove a invisibilização e o descarte para aqueles que não alimentam o estereótipo da prostituição. Para pertencer à classe das mulheres “respeitáveis”, rendem-se ao adestramento corporal e cultural, tornando-se este o passaporte para a visibilidade social. Tal percurso ocorre no filme com a personagem Vivian, que passa por um adestramento do seu corpo, por meio da contenção de seus hábitos gestuais anteriores, a fim de performar socialmente o lugar de uma mulher moralmente respeitável, o que também pode ser entendido como violência, podendo ser considerada uma ilustração do cenário brasileiro.
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Palavras-chave: prostituição. profissional do sexo. corpos. sexualidade.
ABSTRACT
Body identity and the expression of sexuality in Western culture are marked by taboos and must be restricted to the intimacy of the “four walls”. However, the experience of intimacy is socially constructed and carries with it all the marks of a historical time, in which bodies are inscribed. Prostitute women who defy the moral prescripts of sexuality linked to reproduction and marriage and who monetize the sexual experience suffer from social penalties, such as exclusion. The objective of this work is to reflect, based on the movie A Beautiful Woman, the way in which the body identity of female sex workers is socially signified, based on Brazilian literature. The chosen methodology is film analysis, through the thematic categories: objectification of the female body, social invisibilization of the female body and body training. The clothes, the aesthetic composition of a sex worker belonging to a lower-class context, as portrayed in the film by the character Vivian, are the target of a stereotype of vulgarity and reduces her to a sexual object. These women become more vulnerable to various types of violence, abuse and exploitation, which, in addition to the dehumanization of bodies, promotes the invisibility and disposal for those who do not feed the stereotype of prostitution. To belong to the class of “respectable” women, they surrender to bodily and cultural training, which becomes the passport to social visibility. This path occurs in the film with the character Vivian, who undergoes through a training of her body and the containment of her previous gestural habits, in order to socially perform the role of a morally respectable woman, which can also be understood as violence, which can be considered an illustration of the Brazilian scenario.
Keywords: prostitution. sex worker. bodies. sexuality.
RESUMEN
La identidad corporal y la expresión de la sexualidad en la cultura occidental están marcadas por tabúes restringidos a la intimidad. Sin embargo, la experiencia de intimidad se construye socialmente y lleva consigo marcas históricas de los cuerpos que están inscritos. Las mujeres prostitutas que desafían las prescripciones morales de la sexualidad vinculadas a la reproducción y al matrimonio, monetizando la experiencia sexual, sufren sanciones sociales, como la exclusión. El objetivo de este trabajo es reflejar, a través de la película “Mujer Bonita”, la forma que la identidad corporal de las trabajadoras sexuales tiene un significado social. La metodología elegida es el análisis cinematográfico, a través de categorías temáticas: la cosificación del cuerpo femenino, la invisibilidad social del cuerpo femenino y el entrenamiento corporal. La ropa, composición estética de una trabajadora sexual perteneciente a un contexto de clase baja, tal como la retrata la película de Vivian, es objeto de un estereotipo de vulgaridad y la reduce a un objeto sexual. Estas mujeres se vuelven más vulnerables a diferentes tipos de violencia, abuso y explotación, lo que además de la deshumanización de sus cuerpos, promueve la invisibilidad y descarte de quienes no alimentan el estereotipo de la prostitución. Para pertenecer a la clase de mujeres “respetables”, se entregan a una formación corporal y cultural, obteniendo un pasaporte a la visibilidad social. Este camino ocurre en la película a través del personaje Vivian que sufre un entrenamiento de su cuerpo, a través de la contención de sus hábitos gestuales previos para desempeñar socialmente el papel de una mujer moralmente respetable, lo que puede entenderse como violencia, también en el escenario brasileño.
Palabras clave: prostitución. trabajadora sexual. cuerpos. sexualidad.
Este artigo, entre suas contribuições, busca destacar a aproximação e o diálogo entre os campos de estudo das mulheres e o cinema, permitindo analisar, por meio de um produto artístico e cultural como é o cinema, fenômenos sociais relacionados às temáticas da prostituição com as histórias das mulheres e a sociedade do patriarcado. A prostituição feminina carrega em si a máxima de ser uma das profissões mais antiga da humanidade, entretanto, essa expressão assume a conotação de jargão em discursos viciados e preconceituosos que ecoam condenações às mulheres profanas, destituídas de valor moral e de caráter forjável: as “putas”.
Em consonância com o caráter histórico, social e político dessa temática, recorrer a uma produção cinematográfica, clássica, como pano de fundo viabiliza a ilustração das complexas questões acerca da identidade corporal das mulheres que exercem a prostituição. Sabe-se que os filmes, em especial os hollywoodianos, exercem grande influência sobre o imaginário social por meio de suas tramas imperativas que congregam as relações de gênero, poder, moralidade e estética (Novaes, 2022). O filme eleito neste artigo foi Uma linda mulher (Pretty Woman), uma produção dirigida por Garry Marshall, na década de 1990. O longa-metragem está ambientado na cidade de Los Angeles, no bairro Hollywood Boulevard, conhecido e demarcado pela prostituição periférica, local onde a personagem Vivian, interpretada pela atriz Julia Roberts, trabalha como prostituta. Richard Gere interpreta o personagem Edward Lewis, rico empresário que está de passagem pela cidade e hospedado no bairro nobre de Beverly Hills, em um hotel cinco estrelas cuja condição para permanecer hospedado é dispender uma grande quantia financeira e se apresentar com vestimentas e comportamentos considerados adequados às camadas sociais mais elitizadas. A divisão geográfica contextualiza o enredo e as relações entre os protagonistas. O corpo e a identidade corporal da personagem Vivian assumem, no enredo, a conotação de ponte, elementos de acesso às áreas nobres de Los Angeles (Zampier & Farias, 2019).
O presente artigo anseia abordar os processos aos quais essa “ponte” é submetida, a fim de sobrepor as divisões geográficas e sociais; em outras palavras, refletir sobre quais condições são impostas à identidade corporal das profissionais do sexo para que tenham um espaço social além do periférico. A produção cinematográfica, em 2023, marcador temporal deste artigo, completa 33 anos de reedições, seja na reprodução icônica de sua trilha sonora “Oh, Pretty Woman”, de Roy Orbison, seja nos figurinos dos personagens ou, ainda, na produção de musicais. Nos meses de setembro a novembro de 2023, no Brasil, está em cartaz o musical Uma linda mulher, dedicado à obra em questão, que estreou em 2018 na Broadway e fez sucesso por lá e em outros lugares do mundo, como Alemanha, Itália, Espanha, Estados Unidos e Reino Unido. No Brasil, fazem parte do elenco 25 atores, entre eles os protagonistas Jarbas Homem de Mello, interpretando Edward Lewis, e Thais Piza, como Vivian Ward, além de uma orquestra de dez músicos (G1, 2023).
Diante desses aspectos sociopolíticos, faz-se necessária a análise crítica sobre o filme, visto as suas reedições tanto no contexto cinematográfico quanto no teatro e no cotidiano. É preciso superar os limites do senso comum, que alimentam um imaginário social repleto de estereótipos, para realizar as correlações entre o filme e a questão da identidade corporal das mulheres profissionais do sexo no contexto do Brasil. Para tal, será abordado o conceito de prostituição e apresentado um breve panorâmico histórico em terras brasileiras.
A prostituição configura-se como uma atividade laboral em que a experiência sexual é ofertada em caráter de prestação de serviço. Desse modo, há um deslocamento social que prescreve as relações sexuais no âmbito da afetividade e até mesmo em acordos civis e religiosos como o casamento (Brito et al., 2019). Apesar de tal atividade acompanhar os primórdios da história, no Brasil, apenas em 2002 os serviços sexuais remunerados passaram a compor a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sem regulamentação no âmbito social e dos direitos trabalhistas, de modo que essas profissionais estão desamparadas juridicamente e expostas ao estigma e à marginalização. Portanto, o reconhecimento legal é deficitário e incompleto. Para este artigo, será dada ênfase na prostituição feminina e suas condições histórico-sociais marcadas pelo patriarcado.
O marcador histórico no Brasil mostra a violência sexual praticada com as mulheres dos povos originários e com as mulheres negras escravizadas. A prática era coercitiva e violenta, realizada pelos colonizadores portugueses que aqui se apossaram da terra e de tudo o que nela continha, inclusive as pessoas, havendo uma hierarquia de poder. Com a vinda dos portugueses, muitas mulheres europeias (denominadas escravas brancas) foram trazidas por meio do tráfico internacional com a finalidade da prostituição compulsória (Pereira, 2005). O mercado de exploração e violência sexual é uma mácula na América Latina colonizada, na qual emerge o conceito de objetificação dos corpos femininos, isto é, a desqualificação de mulheres quanto à humanidade e aos direitos, que as tornam vulneráveis e desprotegidas dentro de uma estrutura patriarcal. Tal violência torna-se uma herança amarga que resiste até os dias atuais, embora tenha sofrido reedições (Roby et al., 2021).
Alinhados com os dados históricos descritos, Herrera e Macuer (2020) argumentam ser a prostituição um modo de escravidão humana nos tempos atuais, como pode ser observado na expressão utilizada para se referir às profissionais do sexo – “puta” –, já que a linguagem carrega consigo inúmeros significados; aqui, há um valor moral de condenação e redução de toda a existência humana à condição de um objeto expresso pelo corpo nu. Os autores defendem ser a nudez característica da prostituição, deslocada dos espaços de intimidade, um ativador neurológico que desperta no outro a leitura de um objeto. Entretanto, sustentar essa hipótese desponta uma controvérsia, pois o questionamento acerca da linguagem busca considerar o caráter humano das mulheres para além da prostituição. Todavia, a nudez como disparador para sua objetificação significa responsabilizar a mulher pelo preconceito do qual é alvo, relacionando o fato de as mulheres pudicas terem que cobrir seu corpo e as desejáveis mostrarem o corpo sexualizado, provocando o desejo do macho, fomentando a visão do patriarcado, no qual o homem-macho é valorizado por não conter seus impulsos sexuais, enquanto a mulher tem o dever de controlar os impulsos sexuais masculinos, não “provocando-os” com seu corpo desnudo e, quando se apresenta com parte do corpo descoberto, há o imperativo moral da intencionalidade sexual, isto é, instigar o desejo do macho-homem.
A prostituição involuntária era a ferramenta de manutenção das instituições poderosas, como a igreja católica, e da estrutura social governada pelos homens brancos europeus que em suas caravelas lusitanas desembarcaram nas Américas com olhares erotizados e repreensores à nudez dos povos indígenas. Os hábitos europeus escondiam os corpos sob extensas camadas de tecido, em especial os corpos femininos, que até mesmo nas circunstâncias de intimidade sexual não eram autorizados moralmente a serem despidos por completo, afinal, o catolicismo impôs condutas às relações sociais e sexuais. O sexo tinha como finalidade apenas a procriação, o prazer era altamente tolhido sob o julgo do pecado e da condenação, especialmente para as mulheres, que eram educadas para o casamento ou para a vida religiosa. Manter as tentações da carne sob controle necessitava, portanto, manter os corpos escondidos. Em terras de Vera Cruz, a nudez dos corpos indígenas, em público, foi radicalmente repreendida, já que eram vistos como corpos suscetíveis ao pecado do prazer. As indígenas, com suas “intimidades” à mostra, e o modo de vida natural e livre remontava às alegorias bíblicas de Adão e Eva diante do fruto proibido – parafraseando Rita Lee: “Uma erva venenosa, pior do que cobra cascavel”. A figura feminina nua era lida pelas lentes morais, o que explicita a gênese dos desdobramentos históricos, pois construir um estereótipo de libertinagem sexual ao modo de vida dos nativos encobria a perversão sexual do colonizador que invadia os corpos indígenas e disseminava infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), ou seja, o povo invadido deveria ser salvo por aqueles que gozavam violentamente de seus corpos (Cantalice, 2011).
A prostituição, no século XIX, era composta por um cenário complexo de escravidão, exploração infantil e trabalho doméstico. A vida dessas mulheres e crianças tem conotação monetária, a dignidade da pessoa humana é saqueada e a elas resta o fardo da imoralidade na tessitura social.
Assim como o verdugo, por repugnante que seja, ocupa um posto necessário na sociedade, assim, as prostitutas e seus similares, por mercenárias, vis e imundas que pareçam, são também necessárias e indispensáveis na ordem social. Retirai as prostitutas da vida humana e chegareis ao mundo da luxúria. (Santo Agostinho, conforme citado por Carmo, 2011, p. 72)
Nesse contexto, não houve consenso entre os interesses econômicos, as relações de trabalho e a corte portuguesa. As ideias antagônicas de abolição e regulamentação vindas da Europa não foram suficientes e deram espaço às ideias higienistas, justificadas pela tese de melhores condições de vida e saúde para a população. As intervenções hegemônicas de limpeza, em especial a social, varreram do campo de visão tudo e todos que desviavam das normas de boa conduta. As mulheres prostitutas foram contidas por meio da força policial para não comprometerem os ares de “pureza” que se buscavam (Pereira, 2005; Rebolho, 2015). A violência e a discriminação, principalmente masculinas, ancoradas no poder policial e político contra essas mulheres, atravessaram o século e foram endossadas por inúmeras justificativas higienistas, por exemplo, no final do século XX, a epidemia de HIV/aids foi associada à prostituição e à homoafetividade, em especial a masculina. Diante de tal panorama histórico, eram urgentes os movimentos e a organização das minorias sociais para garantir seus direitos sociais e humanos (Bedin et al., 2020; Rodrigues, 2009).
Gerações estas que foram influenciadas, no final do século XX, pelo surgimento da aids. O vírus HIV (aids), no início de sua disseminação, de acordo com Simão (2008), transformou a enfermidade em uma verdadeira epidemia. Houve a necessidade de o Estado intervir no controle e prevenção da doença, visto que a mesma atingiu níveis de epidemia no final do século XX e início do XXI, quando parte considerável com comportamento de risco veio a falecer. Desse modo, o sexo passou a merecer atenção pública, principalmente pelo fato de as prostitutas, em muitos casos, recusarem-se a usar preservativos. (Rebolho, 2015, p. 176)
No final do século XX, o tema da prostituição passou a ter espaços para diálogo e reflexões, endossado pelos movimentos feministas que lutam contra as estruturas de poder e as desigualdades de gênero e propõem a ressignificação acerca da sexualidade, para que os estigmas e as opressões deem lugar a diversidade e liberdade dos valores sexuais. O termo “profissionais do sexo” foi cunhado no Brasil, na década de 1970, como bandeira da luta de prostitutas que reivindicavam o reconhecimento da profissão, com seus direitos e deveres, além da legitimidade como cidadãs (Rebolho, 2015; Rodrigues, 2009).
Na década de 1990, a participação de pessoas homossexuais e de profissionais do sexo foi ativa na construção de programas de prevenção contra ISTs/aids do Ministério da Saúde; ressalva-se que esse modelo é reconhecido internacionalmente por ampliar os métodos de prevenção não somente para as populações mais vulneráveis, mas a todos com uma vida sexualmente ativa (Santos & Botazzo, 2021).
As profissionais do sexo mostram atitudes mais conscientes, resultando em ganho de espaço na sociedade. O papel de Gabriela Leite foi muito importante nessa luta, ela estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e foi autora do livro Filha, mãe, avó e puta: história de uma mulher que decidiu ser prostituta (2009).
A construção de programas e políticas públicas acerca das ISTs com participação ativa das profissionais do sexo e das pessoas homossexuais é de suma importância, entretanto, ainda assim não abarca a complexidade da existência e a integralidade daqueles que historicamente são postos à margem da sociedade.
Norteadas pelo anseio de ampliar as considerações acerca dessas mulheres, nos dedicaremos a abordar a identidade corporal das mulheres profissionais do sexo. A cultura ocidental carrega inúmeros tabus acerca dos corpos e da sexualidade, isto é, compreende que essa temática deve ser restrita à intimidade das “quatro paredes”. Entretanto, a experiência da intimidade por meio da sexualidade é construída socialmente e carrega consigo todas as marcas de um tempo histórico no qual os corpos estão inscritos. A cultura estabelece não apenas os critérios biológicos da norma, mas também um conjunto performático das identidades. A naturalidade social é compreendida pelos comportamentos de gênero binário: homem e mulher. O contexto social de um tempo determina os padrões de normatividade e a exclusão de tudo aquilo que desvia dessa “naturalidade”.
O gênero e a sexualidade têm o corpo como estrutura concreta para suas manifestações, logo, a concretude assume o valor determinado da biologia, ou seja, suas características, em especial, o sexo biológico. Entretanto, o corpo, como estrutura, está exposto a contínuas mudanças, seja pelas fases do
desenvolvimento, seja por todas as interferências tecnológicas, adoecimento e mudanças sociais. Assim, o corpo não traz a previsibilidade das identidades e da sexualidade, mas sim a abertura para as possibilidades por meio da subjetividade que lhe compõe (Louro,2000).Para este trabalho será abordada a discussão sobre a mulher cisgênero, já que ao abordar a mulher transgênero seria necessário ampliar o foco e não há extensão no presente artigo para desenvolver em profundidade a temática, apesar de sua urgência e relevância.
O corpo físico não se restringe à sua dimensão biológica, sendo constituído também de valores, crenças e ideologias que norteiam as relações sexuais no contexto social. Além disso, as diferenças entre homens e mulheres contemplam um conjunto de representações do imaginário social sobre o feminino e o masculino e prescrevem o desenvolvimento de ambos ao longo da vida (Leite, 2017). Corroborando tal ideia, segundo Butler (2021, p. 227), “o que constitui o limite do corpo nunca é meramente material, mas que a superfície, a pele, é sistematicamente significada por tabus e transgressões antecipadas”. Desse modo, os contornos do corpo estão associados à sexualidade. Ainda segundo Butler (2021):
A construção de contornos corporais estáveis repousa sobre lugares fixos de permeabilidade e impermeabilidade corporais. As práticas sexuais que abrem ou fecham superfícies ou orifícios à significação erótica em ambos os contextos, homossexual e heterossexual, reinscrevem efetivamente as fronteiras do corpo em conformidade com as novas linhas culturais. (p. 229)Os corpos que se opõem às convicções naturalistas e designam sexo biológico ao gênero e afrontam os limites rígidos impostos pela religião acerca da sexualidade, em especial as mulheres, têm uma luta secular em busca de seus direitos como cidadãs, pois o fundamentalismo perpassa a esfera política que mantém a desigualdade de gênero e, portanto, os invisibiliza (Sívori et al., 2017).
Corpos polimórficos e polissêmicos, produzidos para fazer circular múltiplos efeitos de sentido; moldados em diferentes regimes de poderes onde tomam proporções, formas e significados, conferindo até uma nova personalidade dentro da cultura na qual está inserido. O corpo se torna um paradigma político, ora de normalização de costumes, ora de rebeldia e subversão. (Santos, 2019, p. 20)
As mulheres prostitutas que desafiam os prescritivos morais da sexualidade atrelados à reprodução e ao matrimônio e têm o corpo como instrumento de trabalho por meio do qual o sexo é uma atividade laboral, têm inúmeras penalidades sociais, como a segregação social. Parafraseando Rita Lee em sua canção “Amor e sexo” (2003), todos os versos demonstram esse paradoxo moral, que pode ser sintetizado no verso “amor é cristão, sexo é pagão”. Aquela que banca a liberdade de seu corpo paga o alto custo de transgredir a regra e perde o lugar social de mulher casta, de respeito, bem como o direito de o seu discurso ser em primeira pessoa.
Para que uma mulher, profissional do sexo possa transitar pela sociedade, faz-se necessário que ela passe pelo processo de adestramento corporal, a fim de esconder sua real identidade, para que componha a ordem hegemônica imposta. Será abordado nas linhas seguintes o processo de adestramento corporal, que consiste em performar posturas corporais, de estética e de vestimenta, ou seja, dominar os códigos culturais do universo no qual não pertence, por exemplo, uma pessoa de classe social baixa transitar em espaços de classes superiores. Render-se a tal condicionamento viabiliza o acesso e o reconhecimento como parte desse contexto, mas se mostra insuficiente, pois há o estigma da profissão e o delineamento rígido dos estereótipos sociais inerentes ao ser prostituta (Zampier & Farias, 2019).
O modo de produção capitalista tem como gênese a ideia de que é possível mudar de classe social por meio do trabalho, ascender economicamente e pertencer a uma classe mais elevada, o que é considerado o marco do sucesso e, por vezes, o objetivo de vida de muitas pessoas. Entretanto, esse valor moral não é atribuído ao gênero e à sexualidade (Louro, 2000; Rebolho, 2015).
A partir desse cenário, recorremos à filósofa Judith Butler, que propõe pensar que os corpos são constituídos de forma social e interdependente e, de algum modo, estão todos ameaçados: “a condição compartilhada de precariedade conduz não ao reconhecimento recíproco, mas sim a uma exploração
específica de população-alvo, de vidas que não são exatamente vidas, que são consideradas ‘destrutíveis’ e ‘não passíveis de luto’. Essas populações são ‘perdíveis’” (Butler, 2015, p. 53).
As vidas perdíveis, o não reconhecimento das identidades sociais, estão amparadas na ideia de sobrevivência e competição, neste trabalho em questão, as mulheres que vivem da prostituição pela lente moral são estatísticasde infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e tenham seus corpos objetificados. Diante do exposto acima, lançar um olhar compreensivo acerca de como essas mulheres significam a própria existência enquanto pessoas, além do predicado: profissionais do sexo. Tal reflexão sobre o filme eleito tem como motivação ser um recurso de combate ao estigma acerca da prostituição, por meio da ampliação dos predicativos existenciais da considerada apenas “Uma linda mulher”, e do reconhecimento daquelas mulheres profissionais do sexo que se tornam sujeitos ocultos por não pertencerem aos padrões de beleza normativos.
Desse modo, o objetivo deste artigo é refletir, a partir do filme Uma linda mulher, sobre o modo como a identidade corporal das mulheres profissionais do sexo é significada socialmente, com base na literatura brasileira.
A arte, em suas diferentes expressões, constitui uma forma de representação social que oportuniza o intercâmbio teórico e metodológico entre diversas áreas do conhecimento. Por isso, adotou-se como método de pesquisa a análise fílmica (Vanoye & Goliot-Lété, 1994, conforme citado por Scherdien et al., 2018). O cinema é um campo de análise dos fenômenos sociais, considerado uma grande lupa que torna visíveis problemas e tabus que a sociedade tem dificuldade de enfrentar. A aproximação entre teorias de diferentes campos de estudo, como o cinema e as relações com a prostituição da mulher cisgênero, permite ampliar e diversificar o olhar sobre determinados fenômenos.
A análise fílmica se constrói a partir de dois momentos que se alternam de maneira anárquica e caótica: a decomposição do filme em seus elementos constitutivos e o reestabelecimento dos elos entre esses elementos, sob a perspectiva do analista. Nesse sentido, o método exige averiguações sistemáticas, idas e vindas à obra, que permitem identificar detalhes inicialmente despercebidos. (Scherdien et al., 2018, pp. 146-147)
A partir do filme, surgiram os insights que deram origem aos temas escolhidos para a análise, de modo a associar as ações narrativas com a teorização. Assim, surgem as três categorias de análise temáticas: objetificação do corpo feminino, invisibilização do corpo feminino e adestramento corporal. Foram utilizadas cenas do filme para ilustrar cada uma das categorias.
A objetificação do corpo feminino
A objetificação do corpo feminino, que significa destituir o outro de sua condição humana, isento de vontades, desejos e autonomia de escolha, a inanimação objetável é terreno fértil para abusos e violências, pois o controle sobre os corpos se dá por meio do poder social sobre aqueles que estão abaixo das camadas elevadas, bem como a assimetria de gênero dentro de uma estrutura patriarcal e histórica que assenta o poder masculino sobre os corpos femininos (Tilio et al., 2021).
No filme Uma linda mulher, a condição das profissionais do sexo, tanto no título como na trilha sonora, reforça e centraliza o aspecto da beleza da protagonista, Vivian, como primordial para que toda a trama aconteça. O contrato de uma semana de serviços ofertado por Lewis para Vivian foi motivado pela ideia de ter uma acompanhante de beleza “deslumbrante” para as reuniões de negócios que teria na cidade, o que poderia encantar os outros homens nos encontros e o clima de descontração e sedução facilitaria as negociações. Vivian, por meio desse contrato, assume um papel de “acessório” de um homem de poder
aquisitivo elevado e sua totalidade é reduzida ao seu papel estético, a uma companhia bela e sedutora. No senso comum, as mulheres que estão em espaços majoritariamente masculinos, como os corporativos, ouvem constantemente a frase: “Você é flor de nosso jardim”. Aos olhares desatentos, isso pode ser compreendido como um singelo elogio, entretanto, ao aprofundarmos o sentido contido na expressão, é notória sua característica de objetificação do corpo feminino, que somente está no espaço em uma condição de dar beleza, divertir e harmonizar, a postos para ser admirada como uma flor; mas, como bem se sabe, uma flor não toma decisões, não tem voz ativa e não participa dos processos decisivos de um “jardim”. A objetificação emudece as mulheres.
Em diversas outras cenas, Philip, o advogado de Edward Lewis, interpretado pelo ator Jason Alexander, ao saber de sua profissão, assedia Vivian moral e sexualmente em um evento no clube do hotel em que estavam hospedados. Novamente, há um assédio moral e sexual contra a personagem dizendo que ela deve atendê-lo, pois tem dinheiro para pagar por seus serviços, ocorrendo a violência de gênero e de vulnerabilidade da profissão, na qual vale-se da ideia de livre acesso ao corpo feminino, subordinado aos desejos e impetuosas vontades masculinas (Tilio et al., 2021).
Pode-se perceber que o filme, apesar de ser norte-americano, retrata a vivência de muitas profissionais do sexo e a história da prostituição no Brasil – com a chegada dos portugueses, todos acreditavam que poderiam ter a posse das mulheres indígenas, já que elas estavam nuas e provocavam os instintos sexuais masculinos (Rebolho, 2015) –, como pode ser observado na Figura 1.
Figura 1: Momento em que Vivian chega ao hotel e suas vestimentas mostram parte do seu corpo descoberto

Fonte: Filme uma linda mulher (1990)
A Figura 1 mostra o imaginário social referente às vestimentas padrão de uma mulher que não frequenta um hotel cinco estrelas, tida como vulgar, mas que poderá ser confundida com tais mulheres se modificar suas roupas, já que apresenta características corporais (magra, alta, bonita) que possibilitam a ponte entre o vulgar/profano e o sagrado. Como nos diz Butler (2021), os corpos são contornos sociais.
Para que Vivian esteja minimamente “adequada” para adentrar o espaço do hotel, Edward pede a ela que coloque o sobretudo dele, com o objetivo de “neutralizar” o estereótipo da prostituição evidente em suas vestimentas. Entretanto, Vivian é alvo de falas preconceituosas e olhares de condenação de hóspedes que estão do hall dos elevadores. Nota-se que Lewis se mantém alheio à situação constrangedora na qual sua acompanhante é submetida e Vivian, por meio de gestos sensuais e provocantes, reage de forma transgressora contra os olhares de desdém da mulher que aguarda o elevador com seu marido, como observado na Figura 2.
Segundo Zampier e Farias (2019), as expressões corporais e a maneira de lidar com o corpo são produto da cultura e do meio no qual a pessoa está inserida, desse modo, a apresentação de Vivian pode ser lida como apelativa e inadequada aos códigos posturais da elite de Los Angeles. Por ser constantemente alvo de abusos e violências, Vivian usa seu corpo e sua postura como instrumentos de ação, um mecanismo
de defesa, diante do poder opressor da elite. Essa cena é um entre tantos exemplos vividos pelas minorias sociais, como pessoas LGBTQIAPP+, pessoas com deficiência e, nesse caso, profissionais do sexo, que têm sua existência lida pelos estereótipos da luxúria, o corpo estando a serviço do “pecado”. Portanto, a objetificação do corpo feminino da prostituta desemboca no apagamento de sua identidade, visto que, socialmente, se tem a imagem de uma vítima, sem capacidade de tomar decisões assertivas, devendo ser orientada e salva do seu modo de vida. Talvez isso explique o grande sucesso de Uma linda mulher, pois representada e legitima a ideia que povoa o imaginário brasileiro acerca da prostituição: um homem que resgata uma mulher perdida em seu destino profano (Skackauskas, 2017).

Fonte: Filme uma linda mulher (1990)
Invisibilização dos corpos femininos
A produção cinematográfica, que é o fio condutor desta reflexão, suscita a questão dos corpos invisibilizados, isto é, Vivian é uma mulher branca, com traços norte-americanos, de alta estatura e de corpo magro, correspondente ao padrão social de beleza (como visto na Figura 1). Embora ambientado nos Estados Unidos, a normatividade de beleza é um forte instrumento econômico, portanto, tem caráter global e consequências graves, principalmente abaixo da “linha do Equador”, no Brasil. Segundo Novaes (2022), há uma relação histórica entre mulher, beleza e seu corpo. Ancorada na psicanálise, a autora defende que a mulher enquanto uma criança caracteriza-se como alguém que busca constantemente o olhar atento como uma forma de compensação por não ser portadora da genitália masculina: o falo. Desse modo, o feminino tem por objetivo capturar o olhar do outro, ser desejada por meio da estética alinhada às normas de seu tempo, o que compensaria a ausência do falo. Em outras palavras, o conceito de belo tem íntima ligação com a sexualidade. Mediante tal panorama, é evidente que a existência feminina, a legitimidade de sua beleza e o lugar social orbitam sob os olhares condicionados, em especial, os masculinos (Zanello, 2018). O que resta aos corpos que não encantam os homens como as folclóricas sereias? Os corpos femininos negros, gordos, que não estão contemplados na norma padrão, ocupam qual lugar social? Ainda segundo Novaes (2022), os corpos gordos representam o excesso, o feminino desmedido, moralmente lido como desleixo, preguiça e descuido, incapaz de capturar os olhares do desejo.
Historicamente, no Brasil, as mulheres negras foram escravizadas e violentamente abusadas sexualmente. A herança amarga da escravidão ressoa até os dias atuais, com a objetificação dos corpos negros, expresso no fetiche “corpo da cor do pecado” ou na expressão “mulata”, que significa mistura, mestiçagem inadequada – expressões de cunho racista que endossam a violência e a opressão que destituem a humanidade dessas mulheres (Malcher & Rial, 2019).
Retomando a trama de Uma linda mulher a partir do exposto, Vivian atrai os olhares masculinos, torna- se visível até mesmo para aqueles que não pertencem à mesma classe social que a sua e, portanto, pode
transitar por outros espaços sociais. Ressalva-se que esse trânsito não é de passagem livre, inúmeras imputações são feitas – as mulheres que não atendem ou, ainda, que não “performam” a feminilidade e a beleza da norma, são invisíveis socialmente, logo, não poderiam ocupar os espaços públicos como Vivian ocupou. Mostrando a invisibilidade discutida por Sívori et al. (2017), amplia-se o debate acerca dos corpos fora do padrão. Segundo Cantalice (2011),
O corpo pode ser fonte de status ou depreciação, pode facilitar ou negar aos sujeitos o acesso a determinados ambientes ou círculos sociais. Porém, quando distintos estilos de corpo entram em contato, fazendo ressaltar suas diferenças, os sujeitos, contrariando aqueles que apostariam num distanciamento e numa evitação com base em medidas discriminatórias, podem se sentir atraídos e impelidos a empreender trocas. (p. 78)
A partir do exposto, suscita-se o questionamento: qual a extensão dessa troca? A atração que o diferente desperta está amparada em quê? Ao pensarmos sobre a questão da mulher negra no Brasil, em especial, as mulheres profissionais do sexo, muitos marcadores devem ser levados em conta, com destaque para o racismo e para a estrutura patriarcal na qual a sociedade está assentada desde seu status de colônia. A população negra em terras brasileiras, historicamente, é alvo de subordinação e violência racial, enquanto o topo da pirâmide hierárquica pertence aos brancos, em especial aos homens e toda sua cultura imperativa. A mulher negra está exposta às duras marcas do racismo, endossado pelo machismo patriarcal que estabelece mais um degrau abaixo: o gênero. A prostituição compulsória das mulheres negras escravizadas no Brasil, engendrada pela violência do estupro, valeu-se das perversas justificativas da voluptuosidade dos corpos negros, do erotismo das curvas femininas e da expressão fogosa dos trópicos espelhados em suas peles “queimadas”. Apesar do tom poético que as linhas anteriores aparentam, elas guardam o machismo que se escancara em: “brancas são para casar, mulata para transar e preta para trabalhar”. O Brasil, há mais de 200 anos independente de sua metrópole portuguesa, não está liberto de suas dolorosas chagas racistas e da mão pesada do machismo. Logo, ao considerarmos esse marcador cultural no questionamento anterior, a atração pelo diferente, nesse caso, a mulher negra, pejorativamente descrita como mulata, disponível, com apetite sexual insaciável, hipersexualizada em seus gestos “mal-intencionados”, está cunhada no sexo casual ou, ainda, pago, no espaço marginal e profano, sem possibilidade de trânsito pelas relações afetivas e pelos espaços sociais (Mizael et al., 2021) como feito e vivido pela protagonista do filme. A herança cultural do Brasil invisibiliza a mulher prostituta negra e/ou gorda de forma acentuada, mas também as profissionais do sexo brancas e magras em sua totalidade como cidadãs, vendo-as no modo utilitário.
Adestramento corporal
Conforme descrito anteriormente, para que Vivian pudesse cumprir o contrato que lhe foi proposto, de ser acompanhante de Lewis por uma semana, seria necessário “abandonar” o estereótipo da prostituição periférica, expresso pela peruca loira, vestido curto, justo e com recortes, botas de cano longo de material sintético de brilho verniz, batom vermelho, maquiagem forte e bolsa lateral pequena, além dos gestos como sentar-se de pernas abertas e não ter habilidades com os talheres correspondentes em um jantar em formato de banquete.
Ao fechar o contrato com Vivian, Lewis dispõe de um cartão para que ela possa comprar roupas “adequadas” às ocasiões e aos espaços que irão. Em diversos momentos ele impõe a contenção de sua identidade de profissional do sexo ao dizer que prefere ela sem a peruca loira e ao solicitar que ela pare de rebolar ao andar. A protagonista concorda com o adestramento corporal e de vestimenta que lhe cabe para a ocasião; no momento, ela está fazendo uma performance que o trabalho lhe solicita, não necessariamente se deixando adestrar até então. Essas mudanças de vestimenta podem ser vistas nas Figuras 3 e 4.

Fonte: Filme uma linda mulher (1990)
Na Figura 3, ela está vestida para o dia, com um vestido de estampa de poá, de cores neutras, brinco de pérolas, decote alto, um penteado no qual os cabelos estão presos, moldados e um olhar vago, mostrando uma mulher que se deixa conduzir por um homem que tem a tutela do seu corpo, pelo seu poder econômico e social, o que pode ocorrer com muitas profissionais do sexo e que ocorreu ao longo da história. Na Figura 4, ela está vestida para a noite.
Na Figura 4, observa-se uma mulher com vestido vermelho, decotado na medida, com cabelos alinhados e desejável para os outros homens, e o empresário a exibe como um objeto de posse, mostrando o poder sobre ela. Essa manobra também pode ser observada com outras mulheres, não profissionais do sexo, demonstrando o poder do masculino sobre o feminino, no qual há o imperativo da beleza e do poder (Zanello, 2018).

Fonte: Filme uma linda mulher (1990)
Porém, para que Vivian se torne uma linda mulher, ela precisou se apaixonar por Lewis, deixando de ser uma profissional do sexo para ser uma mulher apaixonada e que quer viver um amor, como se durante toda a sua vida profissional ela esperasse por isso, isto é, que um homem com alto poder aquisitivo pudesse lhe oferecer a abolição, como ocorreu com as mulheres negras e brancas escravizadas no Brasil (Bedin et al., 2020; Rodrigues, 2009).
Entretanto, sabe-se que a abolição da escravidão no Brasil não ofereceu subsídios para a construção de uma vida digna aos alforriados. A assinatura de Lei Áurea mudou um regime, mas não estabeleceu novos parâmetros. Valendo-se desse capítulo histórico como uma analogia acerca da abolição que Lewis poderia oferecer à Vivian diante de sua condição econômica e seu poder como homem branco, a proposta foi apenas de um novo contrato, com uma pauta principal: a exclusividade. Em outras palavras, o poder financeiro chancela a posse sobre a protagonista, pois ela usufruiria de um apartamento, carro e todos os aparatos necessários para performar na sociedade, como figurinos, acessórios e serviços de manutenção dos códigos morais de uma mulher respeitável. Vivian recusa e mostra indignação com o acordo proposto por Edward, por ter se apaixonado ao longo dos dias em que estiveram juntos, o que pode ser evidenciado pelo beijo que aconteceu entre eles (desde o início, a protagonista impõe a condição de não beijar seu cliente como um marcador da relação profissional estabelecida).
Sousa et al. (2017) evidenciaram que o uso de preservativos está vinculado apenas ao exercício profissional da prostituição, enquanto essas mulheres, em suas relações afetivas-sexuais, não fazem uso de preservativos com seus companheiros por sentirem-se protegidas pelo vínculo amoroso e pela estrutura social prescritiva de família, o que confere à relação uma assepsia acerca dos riscos de HIV/aids e, consequentemente, a segurança emocional. Embora o filme não abarque o tema do uso de preservativos, o beijo é um símbolo, para a personagem, de uma transformação na relação profissional para a afetiva. Vivian relata seu sonho infantojuvenil de ser resgatada como uma princesa em uma torre e viver uma história de amor e, portanto, um novo contrato não contempla seu desejo. Lewis, ao longo de toda a trama, não deixa claro o lugar ofertado a ela, e embora promova e deseje que ela performe os gestos e códigos da elite, não verbaliza o pedido e a intenção de que ela seja sua namorada ou esposa, mas alimenta e encerra o filme encenando a busca por ela ao subir as escadas de seu apartamento para “resgatá-la”.
Ao final, quais acordos são firmados a partir de então? O final do filme alimenta o imaginário social do felizes para sempre e a mensagem subliminar de que Vivian não seria mais uma profissional do sexo. Entretanto, as diferenças econômicas e sociais entre ambos e a desigualdade de gênero viabilizariam uma relação equiparada? Ou a prostituição sofreria novas reedições? Clarindo et al. (2021) trazem à tona discussões sobre a obra O segundo sexo, de Beauvoir (2016), e fazem uma analogia do casamento com a prostituição: em ambos, as mulheres são convocadas a cumprir as obrigações de um contrato por meio do sexo, seja conjugal, seja como prestação de um serviço pago, a diferença é que a mulher casada socialmente tem seu lugar garantido como cidadã, enquanto a prostituta tem os direitos da pessoa humana negados severamente.
Uma linda mulher nos possibilita imaginar e descrever para além do beijo do felizes para sempre. Valendo-se do papel de roteiristas, propomos uma continuação para a trama – Vivian sendo pedida em casamento, na condição de uma mulher profissional do sexo, cujo novo contrato civil não traz garantias de uma cidadania plena devido ao estigma, que escreve em letras garrafais no verso de sua certidão de casamento: ela é puta! (Leite, 2009).
A encenação cinematográfica daquilo que se vive em um determinado tempo e espaço não tem apenas essa relação direta e passiva da cópia, mas arte e vida se entrelaçam em uma relação dialética à medida que nos colocamos em reflexão crítica daquilo que estamos produzindo e consumindo. O filme Uma linda mulher nos convoca a repensar sobre o gênero que o descreve como um romance (comédia romântica) e, portanto, compreender que há uma naturalização e romantização de inúmeras violências
sociais e morais, como a objetificação do corpo feminino, a invisibilização de corpos que carregam os prescritivos estéticos para o condicionamento social da classe dominante. A mulher profissional do sexo, lida e destinada a ser uma linda mulher, pertencente a um homem rico, é descrita na sinopse como protagonista da trama, mas seu papel social é coadjuvante, confuso e subordinado à figura masculina, que é salvadora, desejável e respeitada socialmente; os holofotes do poder cegam a liberdade daquelas mulheres condenáveis socialmente, as prostitutas. Aqui, abre-se uma lacuna para compreender o que sentem as profissionais do sexo sobre a sua condição humana? Pesquisas posteriores podem contemplar a visão delas sobre o filme e sobre a vida, o que faria com que políticas públicas pudessem ser pensadas a partir da voz dada a elas, sendo uma limitação deste artigo ter a reflexão de duas mulheres brancas e não profissionais do sexo.
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Uma linda mulher. (27 Julho 1990) Direção: Garry Marshall. Produção: Arnon Milchan. Escritor: J. F. Lawton. Interpretes: Richard Gere, Julia Roberts, Hector Elizondo, Ralph Bellamy e Jason Alexander. 1 fita de vídeo (119 min), son, color, 12 mm.
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