https://doi.org/10.34024/prometeica.2024.30.16095
BORGES, BETWEEN SCIENCE, METAPHYSICS AND LITERATURE
BORGES, ENTRE LA CIENCIA, LA METAFÍSICA Y LA LITERATURA
Jorge Ernesto Horvath
(Universidade de São Paulo, Brasil)
Recibido: 06/01/2024
Aprobado: 06/05/2024
RESUMO
Este artigo passa revista a algumas questões científicas que são tratadas, em diversos graus de profundidade e escopo, na literatura de Jorge Luis Borges. Apresentamos nove textos comentados e esmiuçados na sua essência científica (A esfera de Pascal, A Biblioteca de Babel, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, O milagre secreto, O Aleph, Funes, o memorioso, O jardim dos caminhos que se bifurcam, A casa de Asterion e A perpétua corrida de Aquiles e a tartaruga), colocando em alguns casos novas conjecturas e observações próprias para interpretar e contextualizar estes temas dentro dos relatos borgianos, a modo de convite para outras análises aprofundadas da obra do escritor argentino. Mostramos que Borges pode ser considerado um caso singular de fusão de erudição que não separa os temas humanos os naturais, embora sua compreensão e familiaridade com estes últimos fosse bastante superficial. De forma incomum, Borges baseia boa parte da sua obra em possibilidades fantásticas a ele sugeridas tendo a Matemática, a Metafísica e as Ciências em geral como alicerces para a livre criação literária, mas de forma estruturada e num estilo que poderíamos chamar de “realidades alternativas auto consistentes”.
Palavras-chave: Jorge Luis Borges. Ciência. Metafísica. Matemática
ABSTRACT
This article considers some scientific questions addressed, with varying degrees of depth and scope, in the literature of Jorge Luis Borges. We present nine texts commented and scrutinized in their scientific essence (The fearful sphere of Pascal, The library of Babel, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, The secret miracle, The Aleph, Funes the memorious, The garden of forking paths, The house of Asterion, and The perpetual race of Achilles and the tortoise) advancing in in some cases new conjectures and observations to interpret and contextualize these subjects within the Borgean stories, as an invitation for follow-up analysis of the work of the Argentinean writer. We show that Borges can be considered a singular case of erudite fusion that does not separate human and scientific aspects, although his understanding and familiarity with the latter was actually quite shallow. In a quite uncommon fashion, Borges based a large part of his texts on fantastic possibilities suggested to him by Mathematics, Metaphysics and Sciences as the stunts for a free literary creation, within a structured form and a style we could call “self-consistent alternative realities”.
Keywords: Jorge Luis Borges. Science. Metaphysics. Literature.
RESUMEN
Este artículo considera algunas cuestiones científicas que son tratadas, en diversos grados de profundidad y contexto, en la literatura de Jorge Luis Borges. Presentamos nueve textos comentados y escudriñados en su esencia científica (La esfera de Pascal, La Biblioteca de Babel, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, El milagro secreto, El Aleph, Funes, el memorioso, El jardín de los senderos que se bifurcan, La casa de Asterión y La perpetua carrera de Aquiles y la tortuga), colocando en algunos casos nuevas conjeturas y observaciones propias para interpretar y contextualizar estos temas dentro de los relatos borgianos, a modo de invitación para otros análisis ampliadas de la obra del escritor argentino. Mostramos que Borges puede ser considerado un caso singular de fusión de erudición que no separa los temas humanos de los naturales, si bien su compresión y familiaridad con estos últimos era bastante superficial. De forma poco comun, Borges basa buena parte de su obra en posibilidades fantásticas sugeridas a él con la Matemática, la Metafísica y las Ciencias en general como fundamentos para una libre creación literaria, aunque en forma estructurada y en un estilo que podríamos denominar como “realidades alternativas auto consistentes”.
Palabras clave: Jorge Luis Borges. Ciencias. Metafísica. Literatura.
Alguns argumentos perseguiram-me ao longo do tempo; sou, decididamente, monótono.…
J.L. Borges, Prólogo do O Informe de Brodie
A análise e discussão da obra do escritor argentino Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (1899-1986) está hoje entre a que chamaríamos de clássicos do século 20. Borges é um escritor fundamental, para muitos uma espécie de compendium da cultura Ocidental e Oriental, que resgata vários elementos da cultura popular para elevá-los à categoria de relatos atemporais, com fortes conexões históricas e filosóficas. Suas escolhas no campo da literatura e cultura eruditas são bem conhecidas, já que há contínuas referências e reelaborações de autores como Conrad, Samuel Johnson, Coleridge, Stevenson e muitos outros. Por outro lado, seu interesse no Oriente e no que chamaríamos do fluxo da cultura é notório ao longo de sua obra. Foi autodidata em assuntos tais como o Budismo, e nos seus relatos é muito comum achar os mais diversos tipos de temas, tais como os mercados de Bagdá, pensadores e seitas orientais e outros elementos que seriam normais em um escritor familiarizado com o Oriente, mas que em Borges também contém uma grande dose de invenção e extrapolação, embora os faz aparecer muitas vezes como fidedignos.

Fig. 1. Borges circa 1960, em Buenos Aires
(imagem de domínio público)
Um olhar atento da sua obra completa revela com clareza que para Borges a Ciência é indissoluvelmente parte da Cultura, como demonstrado pelos relatos onde argumentos físicos e matemáticos entram de forma central. Isto é muito incomum, mais ainda em um autor que não era cientista. Pelas suas próprias palavras, o exercício de escrever na Argentina contra Leopoldo Lugones (autor do livro Las fuerzas extrañas, muito marcante para a jovem geração de escritores argentinos nas primeiras décadas do século
20) teve um papel importante para modelar esta postura, com um pé na literatura e outro no mundo físico-matemático-metafísico. De fato, pode ser conferido que os escritos de Borges, em geral, utilizam algum fato ou observação científica como ponto de partida para a criação literária (Corry, 2003 ; Mosher, 1992). Mas Borges sequer se preocupa pela exatidão das afirmações, nem precisa entender a fundo o assunto. Basta que a faísca seja acesa para que os textos criativos se desenrolem fluidamente, com ampla liberdade mas sempre mantendo até o fim um viés de verossemelhança que respeita os postulados centrais. Isto é, Borges não constroi relatos surrealistas, dadaístas ou delirantes, sua prosa é sujeita a uma lógica interna, e suas histórias poderiam ser chamadas de “realidades alternativas auto-consistentes”.
Estas constatações nos levam diretamente a pensar em outro importante tema do século 20, o reconhecimento da divergência entre Ciências e Humanidades. Em seu livro As Duas Culturas, C.P. Snow (1995) discute este distanciamento progressivo, que somente se aprofundou nas décadas seguintes. Neste contexto cultural, Borges é bastante singular, e mais próximo de autores e artistas como Lewis Carroll, Escher e o próprio Lugones, isentos de qualquer característica "separatista" do mundo das Humanidades e o das Ciências, e que com diversos graus de profundidade e perspectiva enxergavam e praticavam uma unidade indissolúvel entre os dois campos.
A conexão entre a Literatura de Borges e as Ciências foi discutida e analisada ao longo dos anos, desde várias perspectivas que incluem às dos cientistas. O nosso objetivo aqui segue a mesma linha, mas está longe de pretender qualquer abrangência. Vamos nos referir a um conjunto limitado de relatos que resultam particularmente significativos, com a intenção de iluminar essas relações, algumas já conhecidas e outras originais, desde a perspectiva de um cientista leitor de Borges que encontra na sua obra motivo perpétuo para a reflexão.
Na Antiguidade Clássica, e particularmente depois da obra de Aristóteles, que atravessou séculos e foi restaurada por Santo Tomás de Aquino como alicerce da doutrina da Igreja, o convencimento de que o Cosmos era espacialmente finito, com final na última esfera de cristal que sustentava as estrelas fixas, era generalizado. A crença num mundo sublunar composto por matéria ordinária, e outro supralunar constituído por uma substância denominada quintessência criou uma barreira intransponível para o pensamento humano por quase 20 séculos, no sentido de ser inacessível à compreensão racional e impossível de ser experimentado. A visão aristotélica foi elevada à condição de Lei Divina, impossível de ser questionada.
Notoriamente, em 1400 Nicolau de Cusa abandonou a doutrina de Aristóteles e considerou um Universo espacialmente infinito. De fato, ele aderiu a uma imagem metafórica que vinha sendo colocada desde tempos bem anteriores, por Xenôfanes, Parmênides e Empédocles dentre outros filósofos. O próprio Nicolau de Cusa parece ter sido o responsável pela substituição o "Deus" da metáfora original pelo "Universo" (Harries, 1975), formulação que Borges também coloca na boca de Blaise Pascal em torno do ano 1650:
O Universo é uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circunferência em parte nenhuma
Blaise Pascal
Borges observa que para Giordano Bruno, na saga da ruptura de Nicolau de Cusa, a infinitude do Universo foi uma espécie de liberação das amarras das concepções antigas e medievais, contudo, para Pascal, essa imagem constituía uma preocupação bastante séria, um fator de desconcerto e inquietude.
Note-se aqui que as cosmologias científicas contemporâneas, baseadas nos modelos matemáticos e um grande conjunto de observações, sustentam hoje a infinitude espacial do Universo, não de forma metafórica, mas inserida no contexto realista da Ciência e baseada nas medidas empíricas. É curioso que Borges nunca efetuou uma conexão entre a ideia da circunferência de Pascal como metáfora da infinitude do Universo, e a descrição posterior a Hubble e demais cientistas dos começos do século 20, para quem a noção do infinito nada tem de metafórica, nem mesmo da possibilidade de vivermos em uma geometria não-euclidiana, o chamado Universo hiperbólico que também é espacialmente infinito: não há menção a estas possibilidades na literatura de Borges.
Para finalizar esta reflexão, sabemos que Pascal estava muito influenciado pelas doutrinas Jansenianas, que condenavam com dureza a jactancia do conhecimento. Isto deve ter contribuído bastante para sua inquietação intelectual, e, seguramente, morreu apavorado pela ideia do que encontraria no além.
Borges inventa uma vasta biblioteca ilimitada y periódica, onde todas as possibilidades da escrita com um número finito de caracteres são realizadas. Este cenário provoca estranhamentos na personagem que relata e revisa volumes e mais volumes absurdos desde um ponto de vista convencional, mas perfeitamente lógicos se consideradas todas as possibilidades hipotéticas da escrita (Noguera Vivancos, 2010).
O embasamento deste relato já foi discutido por F. Merrell (1991) e L. Moledo (1999) entre outros autores. Georg Cantor descobriu diferenças entre conjuntos numeráveis e não-numeráveis com infinitos elementos, que poderiamos parafrasear de forma coloquial como "há (conjuntos) infinitos que são mais infinitos que outros", ou mais precisamente, que a potência (a grosso modo, o tamanho) dos conjuntos infinitos não é idêntica. Borges aproveita esta ideia e desenvolve o seu relato nessas linhas. Um desenvolvimento notório adicional a respeito da biblioteca, devido a L. Moledo (1999), é o cálculo do número de volumes que a biblioteca abrigaria. Depois de notar que Galileu ministrou uma palestra na Accademia del Lincei no fim do século 16, onde se referiu às dimensões físicas do Inferno de Dante, Moledo construiu uma estimativa análoga para o tamanho da biblioteca, com o resultado notável que sugere a presença de , um número inconcebível, mas finito. Estes livros, como notou Boido (2014), ocupariam uma esfera de tamanho muito maior que o chamado raio de Hubble, limite do Universo conhecido.
Desta forma, vemos que existe também um corolário inquietante: se o Universo for finito, embora gigantesco (tal como as possibilidades da escrita), a doutrina metafísica do Eterno Retorno, tal como apresentada pelo filósofo Friedrich Nietzche, é julgada inevitável, embora o tempo necessário até a mesma configuração acontecer de novo pode ser incalculavelmente grande. Nem Nietzche nem qualquer outro pensador parece ter discutido que a certeza do Retorno só é valida para um Universo finito, mas eterno, que não limita o tempo para a repetência. Porém, se este Universo for dinâmico, um recolapso e posterior expansão não garantem sequer essa repetência das configurações. Esta é precisamente a situação de muitas cosmologias contemporâneas, no caso de que a parte espacial do Universo seja finita, em geral sua duração também o será, e isto sugere que pode não haver suficiente tempo disponível para nenhum Eterno Retorno. Mas existem outros aspectos importantes que Nietzche não discutiu, principalmente pela sua conhecida rejeição ao conceito de átomo. Um destes aspectos relevantes é que não basta com considerar a combinatória das partículas do Universo: ao tratarmos de processos naturais (por definição), somos levados à ideia de entropia de Clausis, Boltmann e outros. O Universo evolui até um estado de máxima entropia e poderia finalizar na chamada morte térmica: não poderia abrigar mudanças posteriores ao seu estado de entropia máxima, e não conhecemos como reverter esse estado fazendo com que a entropia diminua. Assim, desde um ponto de vista diferente, o da irreversibilidade dos processos reais baseada na Segunda Lei da Termodinâmica, Borges refuta o Eterno Retorno no ensaio A doutrina dos ciclos (Borges, 2010), de forma bastante sintética, mas mostrando uma diversidade
de enfoques a respeito deste problema e uma compreensão superior àquela que o próprio Nietzche atingiu (vide Marson, 2018).
Estas reflexões são decorrências da ideia central da Biblioteca de Babel, o relato borgiano que como evento do pensamento humano e obra literária estética, tem um interesse e uma capacidade de assombro intelectual notáveis.
Este relato é (na opinião subjetiva deste autor) o melhor executado, e talvez o mais interessante da literatura borgiana. Por sinal, o próprio Borges o escolheu para formar parte da Antología de la Literatura Fantástica (2008). Descreve como uma seita consegue criar um mundo baseado no Idealismo de Berkeley, e substitui paulatinamente o mundo “real” por aquele, utilizando como veículo indutivo os volumes de uma Enciclopédia de um pais imaginário que são revelados pouco a pouco, como se fossem uma novela diária de televisão.
Com o avanço do texto, percebemos como seria extraordinário e estranho um mundo onde os objetos e eventos fossem apenas mentais, e não reais, isto é, produtos da matéria. No relato de Borges, a Enciclopédia de Tlön transforma tudo, e desloca a percepção humana para colocá-la no papel central, criador, do Idealismo de Berkeley. Todos os objetos e eventos do mundo acabam sendo invenções psicológicas, e qualquer afirmação objetiva e impossível.
As doutrinas idealistas têm sido discutidas e criticadas por mais de três séculos, já que levam a sérios problemas lógicos (uma discussão sintética pode ser consultada em Russell, 2021) e pareciam descartadas. Mas é notável que o desenvolvimento da Mecânica Quântica, em particular, a chamada interpretação que deve assinar sentido físico ao formalismo matemático, trouxe de volta prima facie um bom grau de Idealismo a ser considerado. A insistência de Bohr na ideia de que um objeto não tem propriedades definidas até ser medido trouxe como corolário o questionamento de toda a realidade anterior ao ato da medição. É conhecida a rejeição que Einstein sentia por esta postura, chegando a questionar a um colega de Princeton se falava sério ao sugerir, por exemplo, que Lua não está aí quando ninguém olha para ela. Borges nunca se referiu a este aspecto contemporâneo bastante perturbador, e seu relato está centrado na realização fantástica do Idealismo filosófico do século XVIII.
Além disto há no conto uma notável intrusão assimilável à moderna Teoria Geral da Relatividade: Borges escreve que em Tlön "a geometria desconhece as paralelas e declara que o homem que se desloca modifica as formas que o rodeiam”, em claro paralelismo com a concepção de Einstein que propõe que a presença de matéria/energia deforma o espaço em torno, e que a gravitação é precisamente sua consequência. Boido (2014) aponta que Borges certamente conhecia pelo menos as obras mais populares de Einstein e Russell, e esta afirmação seria consequência direta do que aprendeu ou imaginou daquelas, embora não existam outros indícios claros no resto da sua obra.
E Deus o fez morrer cem anos e depois o reanimou e lhe disse: Quanto tempo tens estado aquí? Um dia ou parte de um dia- respondeu.
Alcorão, II, 261
No relato, o protagonista Jaromir Hladík está prestes a ser fusilado, e ele pede a Deus mais um ano para completar seu poema mestre antes de morrer. Deus atende o pedido, e o ano transcorre para ele de forma que consegue completar sua obra, mas isto acontece objetivamente (como revelado no final) no curto intervalo entre a formação do pelotão e a descarga que o matou no local do fusilamento. Protagonista e
soldados encontram-se no mesmo lugar ao mesmo tempo, mas o tempo, para cada um deles, é diferente, e aqui cabe uma reflexão a respeito do desfecho do relato.
Uma primeira possibilidade seria a de pensar que Borges apresenta um conceito de tempo “relativístico”. A Teoria da Relatividade Restrita e a Geral justificam tempos diferentes da forma seguinte: na primeira, cada observador pode ocupar um sistema que se movimenta em relação ao outro, isto é, um deles com uma velocidade próxima à da luz, e, a segunda, sob influência de um campo gravitacional (ou aceleração equivalente) que distorce o tempo. Em ambos os casos os tempos resultariam muito diferentes. Mas a observação anterior de que o protagonista e os soldados estão no mesmo sistema elimina um possível embasamento relativísitico como motivação do conto. Borges parece estar se referindo assim ao conceito de tempo de Henri Bergson, filósofo francês que formulou uma série de ideias e considerações diferentes a respeito. Bergson preferia o nome de duração para seu "tempo", que resulta muito diferente do tempo físico da Teoria da Relatividade. Enquanto na última o tempo é uma quantidade objetiva, em pé de igualdade com as dimensões espaciais, para Bergson o tempo deve ser subjetivo e não sequencial (ou seja, fora da categorização Kantiana), nem quantitativo. Antes o tempo é holístico, um Todo indivisível e de natureza diferente do espaço (Bergson, 2014).
Vemos aqui a semente do relato de Borges, plasmado na história do protagonista, e mais precisamente na sua percepção da duração, a qual é intervenida pela divinidade que permite a completeza do poema. Embora pareça assim uma questão alheia à Ciência, a descrição do tempo como variável quantitativa é uma questão central em todos os desenvolvimentos modernos desta. Borges e outros autores como Bergson tinham pouco interesse na descrição cintífica do tempo (isto é, uma variável dependente do sistema de referência objetiva e relativamente trivial), enquanto suas ideias de enternidade, infinito e outras semelhantes cassam melhor com o tempo holístico bergsoniano. Daí que resulte difícil atrelar uma fundamentação científica a vários relatos que presupõem aquela concepção subjetiva do tempo.
O Aleph é um objeto fantástico que contém a visão de todo o Universo simultaneamente, para um dado tempo. Borges monta um relato da sua relação romántica nunca consumada com Beatriz Viterbo, dona do casarão onde o Aleph se encontra num porão. Esta presença do objeto fantástico é revelada pelo primo de Beatriz, o aspirante a escritor Carlos Argentino Daneri, quem resulta um personagem medonho e irritante para Borges, e que tão somente suporta suas impertinências pela proximidade de sangue com a mulher de seus desejos, já falecida quando o personagem de Borges é conduzido por Daneri para contemplar o Aleph.
O Aleph é descrito através da visão das coisas que mostra vertiginosamente, como se estivesse em rotação acelerada. O símbolo "Aleph" do hebraico (
) foi utilizado por Georg Cantor para denominar a cardinalidade dos números. É assim um nome adequado para descrever o objeto fantástico que mostra o Universo inteiro de uma só vez. Mas existe uma segunda característica interessante neste relato: na Teoria da Relatividade, existem sistemas de referência nos quais o observador tem acesso a todos os eventos do espaço para um tempo dado, arbitrário (por exemplo, o presente). Esta propriedade singular, inicialmente intuida por Boécio, em sua obra A consolação da Filosofia, escrita em A.D. 524, passou a ser conhecida como "God-like", ou "tipo Deus" pois poderiamos dizer que eternidade e onisciência se juntam. Vucetich (1999) observa que O Aleph e otras obras de Borges deconstroem o espaço para converté-lo em "...uma substância mental que, como os hrönir de Tlön, pode ser modelada à vontade do artista.” (tradução nossa)
Notamos assim que não basta que o Aleph contenha um número infinito de objetos, também é importante que os que o observam sejam capazes de ser transportados ao sistema "God-like" (fato que é implícito no texto de Borges). Este fato não parece ter sido notado na literatura, que se concentrou principalmente na infinitude dos objetos mostrados pelo Aleph, mas não na simultaneidade vertiginosa da sua observação. É claro que desde uma posição Idealista como a sustentada em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, esta condição de simultaneidade proposta perde sentido, já que corresponde a um marco racionalista e
materialista científico. Não haveria nada de estranho assim num mundo Idealista. Ambas as posições, porém, não deixam de ser condicionadas pela estrutura cognitiva do cérebro, como observa Gil (2013).
O personagem de Borges neste relato, Funes, é um rapaz que tem uma memória perfeita. O paradoxo é que não consegue pensar, precisamente por lembrar de todos os detalhes com perfeição. Não há espaço para o pensamento como abstração e relação de ideias e eventos diferentes, já que a memória está totalmente preenchida. Na visão moderna das Neurociências, atribue-se um papel importante ao sono noturno, que permite limpar numerosos "resíduos" mentais que de outra forma atrapalhariam a mente (Kandel et al., 2012). Borges escreve que Funes
Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.
J.L. Borges, Funes, o Memorioso (Ficções, 1944)
Paira nesta história como corolário que é o esquecimento enquanto força ativa o que nos permite aprender e seguir vivendo. A corporização da condição de Funes já foi constatada em casos reais, e denominada hipertimesia (Parker, Cahill & McGaugh, 2006), uma raríssima condição neurológica que confirma, pelo menos parcialmente, as suspeitas borgianas. Uma interessante discussão da obra de Borges com referências ao funcionamento do cérebro humano pode ser consultada no artigo de J. M. Gil (2013).
Apontamos finalmente que as lembranças e o esquecimento formam a base de uma instigante teoria da História de Borges que aparece em outros relatos: a ideia de que os fatos históricos são recoleções parciais e viesadas dos fatos reais, e que socialmente falando, são somente os primeiros que importam, não a mera realidade do que aconteceu. Borges parece assim renunciar a objetividade completa e a completeza dos eventos históricos, para definir a História como um relato parcialmente reconstruído e bastante subjetivo, permeado de interesses de grupos e indivíduos, que permanece como a verdade histórica.
Um relato policial entre espiões serve de desculpa para Borges discutir a possibilidade de que cada evento bifurque o Universo em dois, e assim sucessivamente, conforme o resultado de cada um dos eventos anteriores. Esta discussão é pura metafísica no relato borgiano, mas doze anos após a publicação, Hugh Everett III propôs uma interpretação da Mecânica Quântica quase idêntica em essência (Everett, 1957).
A interpretação dos múltiplos mundos enxerga as probabilidades de cada resultado, que estão contidos na função de onda Ψ, como uma medida de cada possível desfecho nas bifurcações no tempo em cada evento. Everett sugere assim que há inúmeros Universos possíveis, cada um seguindo seu próprio caminho lado a lado, e que são reais, não uma metáfora ou artifício matemático. Depois de cada encruzilhada, cada Universo não mais “vê” o resto, já que fica disjunto no tempo. Borges foi perguntado a respeito muitos anos depois, e declarou que não sabia nada de Mecânica Quântica. Everett, por sua vez, disse que nunca tinha lido nem ouvido falar de Borges (Rojo, 2011).

Fig. 2. Representação pictórica do processo de bifurcações sucessivas que possibilitam a construção de realidades paralelas que não mais se misturam, exemplificadas com a história de um encontro que toma diferentes rumos.
Figura preparada pelo autor.
Embora esta interpretação de Everett não é favorecida pelos físicos contemporâneos, que a encontram fantástica demais e possívelmente indemonstrável, tal juízo não a descarta em absoluto. Borges antecipa este desenvolvimento intuitivamente, ao inventar uma história que aproveita a especulação filosófica a respeito da unicidade/multiplicidade do Universo, sem suspeitar que as ideias de Everett emparelhariam seu relato com as pesquisas do mundo quântico. Rojo (2011) afirma que é um caso único onde a Arte antecipa a Ciência, mas um exame mais cuidadoso pode revelar surpresas a respeito (Horvath, 2024).
É conhecido que Asterion é o nome do Minotauro em grego. Borges relata a existência do Minotauro no labirinto de Creta, com relato seguindo o pensamento dele próprio, quem é apresentado como um ser à procura da redenção, e que não resistirá seu latente destino de morte nas mãos de Teseu. Mas isto somente é compreendido pelo leitor no final do relato, antes a descrição apresenta um personagem solitário encerrado em uma casa, que se comporta de forma errática e até risonha, no espaço que identifica como "o mundo" (seu mundo), vivendo uma existência insuportável. Somente depois percebe- se quem é realmente este personagem, que revela sua identidade de forma progressiva quando seus pensamentos fluem no texto.
Um momento interessante é quando o protagonista diz que, vagando pelos corridores, chegou a beira e viu o Templo dos Machados (Knossos) e o mar, mas que não os entendeu. O paralelismo com a Caverna de Platão é evidente, nesse sentido, o Minotauro não consegue fugir do seu mundo nem enxergar realmente a realidade exterior.
As simetrias dos labirintos são recorrentes na obra de Borges, e já houve quem até as relacionou com os arquétipos de Jung. O certo é que os labirintos de Borges nem sempre são literais, às vezes constituem uma metáfora da existência humana, e, outras vezes são lugares reais, mas que detém a essência do infinito, do sacro e do secreto. Em outros relatos Borges considera labirintos no tempo, não no espaço, propondo assim um caráter não-linear do mesmo, consistente aliás com a interpretação bergsoniana que expressamos na Seção 5 (Boido, 2014)
Borges aborda neste curto ensaio um dos chamados paradoxos da Escola Eleática contra o movimento, a famosa corrida de Aquiles vs. a tartaruga.

Fig. 3. Aquiles e a tartaruga no desafio da corrida eleática. Figura preparada pelo autor.
O célebre paradoxo de Zenão descreve uma corrida entre o herói grego Aquiles e uma tartaruga. O animal é reconhecidamente mais lento, e por isso Aquiles da para ele uma vantagem, a de começar à frente (digamos, 1 quilômetro). Mas o raciocínio grego conduz a algo surpreendente: dividamos o intervalo espacial até a meta em segmentos de comprimento cada um metade do anterior (Fig.3). Como cada vez que Aquiles avança um segmento, a tartaruga também percorre uma distância, muito menor, mas ainda assim sempre à frente, estará sempre um pouco à frente, e assim por diante. Os gregos observavam que a soma de distâncias por ela percorrida continha espaços ou trechos cada vez menores, mas essencialmente infinitos em número. Assim, para os gregos Eleáticos, o paradoxo demonstrava racionalmente que o movimento é impossível, uma mera ilusão, ao contrário do que viam os sentidos. Surge, assim, a possibilidade de uma série de abstrações racionais, um mundo metafísico e sustentável racionalmente bastante distinto do mundo dos sentidos (Domingues dos Santos, 2013).
Agora bem, depois do Cálculo de Newton e Leibniz, o raciocínio grego a respeito das frações percorridas para cada intervalo permite escrever matematicamente o tempo que Aquiles leva para alcançar a tartaruga como (Simonyi, 2012):

Temos aqui outra prova da metodologia literaria: Borges envereda numa discussão dialética, algo bizantina, onde se refere a John Stuart Mill, Henri Bergson e Bertrand Russell, mas sem enxergar uma solução sintética e direta, a de somar a série matemática, que certamente teria sido a utilizada por um cientista. Isto reforça a afirmação geral de que Borges sequer ia a fundo na questão formalmente colocada (no caso, a soma de uma série infinita), e se concentrava em um olhar bastante próprio e diferente. A Matemática resulta algo como mais uma ferramenta Metafísica na literatura borgiana, embora Maria Kodama declarou, em repetidas ocasiões que as Matemáticas eram as disciplinas mais
afins ao pensamento de Borges. Mas isto não implica que se aprofundasse ou sequer que comprendesse totalmente os aspectos envolvidos.
Depois de termos apresentado brevemente os contos escolhidos, e apontado o cerne de algumas ideias que Borges utiliza para desenvolver seus relatos, podemos sintetizar a discussão desenvolvida por meio de quatro afirmações gerais
Borges detém uma Literatura sui generis, onde usa com frequência a Ciência como ponto de partida para inventar histórias variadas, às vezes até de forma pioneira e inadvertida. A questão da invenção e pionerismo borgianos em assuntos que são hoje parte integral do pensamento científico é sutil, mais parece um processo de convergência de ideias independentemente formuladas que foram formalizadas pelos cientistas, antes ou depois dos escritos de Borges, sem que o escritor se aprofundasse nelas.
Como apontamos na Introdução, o caráter ecuménico da obra de Borges o coloca como um exemplo de como é possível enxergar Ciências e Humanidades de forma conjunta e entremeada. Boges não é somente um humanista, sua percepção está aberta para aspectos lógicos, exatos e naturais que formam a realidade fisica e mental que nos rodeia. Em certa forma, é um expoente do tipo de pensador que C.P. Snow julgava em processo de desaparição. Talvez exista um fio de esperanza para que a divergência das “duas culturas” seja revertida ou pelo menos minimisada.
Borges era um escritor capaz de “reinventar” argumentos seculares e enxergar conexões escondidas, colocando-as para o leitor como um tesouro a ser descoberto, hábito confesso em entrevistas a ele feitas em seus anos tardios. De fato, é importante destacar que o misticismo, a magia e outros vertentes não racionalistas também serveram frequentemente como pontos de partida para a invenção na literatura borgiana, embora não as discutimos aqui.
Sendo Borges um escritor muito complexo e incomúm, sua obra não pode ser abordada sem uma atitude inquisidora e preparo para identificar e esmiuçar as inúmeras referências culturais colocadas propositalmente, o que faz dos leitores verdadeiros cúmplices da fantasia literária.
Não há como parar de ler Borges. Sua literatura, ancorada na Ciência e desenvolvida no campo fantástico, é infinita, ao menos no tempo das sucessivas leituras dos leitores humanos, condenados que estamos a uma existência finita.
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