ARTÍCULOS

Prometeica. Revista de Filosofía y Ciencias, año IV, N. 10, verano 2015


POLÍTICA, ECONOMIA, SOCIEDADE, FILOSOFIA E CIÊNCIA:


CORRELAÇÕES HISTÓRICAS NOS OITOCENTOS


Politics, Economy, Society, Philosophy and Science:


Historical Correlations in the 1800s


FERNANDO SANTIAGO DOS SANTOS


(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, campus São Roque, Brasil)


IVY JUDENSNAIDER


(UNIP, Brasil)


Resumo


O século XIX foi um período histórico marcado por grandes transformações sociopolíticas, geográficas, filosóficas e científicas oriundas, em grande parte, dos ideais pós-revolução do século XVIII e da ascensão da burguesia. A formação dos Estados-nação europeus e a dominação imperialista do mundo por nações como Inglaterra, França, Itália, Rússia e Estados Unidos da América, associadas à crescente racionalização da ciência e aos avanços tecnológicos sem precedentes, são características indeléveis dos Oitocentos. A visão mecanicista do mundo e a tentativa de explicar os fenômenos sociais por meio dos métodos estatísticos também são fatores inerentes ao pensamento científico do período. O positivismo e as ideias revolucionárias de Charles Robert Darwin e Alfred Russel Wallace são, igualmente, marcas do século que, transformando a sociedade e a economia, também influenciaram o modo de pensar da atualidade.

Palavras-chave: século XIX | história sociopolítica | economia | ciência.


Abstract


The nineteenth century was a historical period marked with major socio- political, geographical, philosophical, and scientific changes that derived, mostly, of the post-revolutionary 18th-century ideals and the rise of the bourgeoisie. The consolidation of European Nation-States and the imperialism over the world promoted by nations such as England, France, Italy, Russia and the USA, associated with the growing scientific rationalization and technological advancements are indelible marks of the 1800s. The mechanistic view of the world elicited by Science, as well as the attempt to explain social phenomena with statistical methods are also inherent features of the period. The positivist thought and the revolutionary ideas spread by Charles Robert Darwin and Alfred Russel Wallace are, likewise, traits of such a century that, by changing society and economy, also influenced the way we think currently.

Keywords: Nineteenth century | Socio-Political History | Economy | Science.


Introdução


Os Oitocentos foram um período histórico marcado por intensas transformações geopolíticas, científicas e sociais, principalmente na Europa. O mundo pós- revoluções (com destaque para a Francesa14 e a Industrial15) vislumbrou avanços enormes na produção, com emprego cada vez mais intenso de novas tecnologias; as crises na esfera social que culminariam, mais tarde, com as drásticas mudanças políticas de início do século XX (como a Revolução Russa16, por exemplo), pareciam quase insignificantes, ao menos no início dos

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  1. Esta revolução compreende o período da história francesa entre a abertura dos Estados Gerais (1789) e o golpe de estado promovido por Napoleão Bonaparte (1799). O principal mote da revolução foi “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, colocado como mola propulsora do progresso e do desenvolvimento do capitalismo (veja mais em Bertaud, 1989).


  2. Tradicionalmente, considera-se que esta revolução estendeu-se de aproximadamente 1760 até 1820-1840 (período de transição para novos sistemas manufatureiros; ver Hobsbawm, 1962).


  3. Sob este epíteto, denominam-se diversos levantes ocorridos na Rússia em 1917, culminando com a tomada do poder (antes realizado pela autocracia czarista) pelos bolcheviques (comunistas). Recomendamos duas produções cinematográficas que retratam os acontecimentos: Anastácia (direção de Don Bluth e Gary Goldman, 1997) e Doutor Jivago (direção de David Lean, 1965; filme baseado na famosa obra de mesmo nome escrita por Boris Pasternak).


    Oitocentos. Na França, a burguesia triunfou após a Revolução Francesa; em diversos países europeus, como Holanda, Dinamarca e Bélgica, atividades industriais expandiram-se sobremaneira; aos poucos, as atividades manufatureiras substituíram as antigas formas de trabalho essencialmente ligadas à agricultura. Mudanças na postura frente à pesquisa científica também foram sentidas, tendo sido celebrados contratos em fábricas e universidades em diversas regiões europeias, particularmente na recém-unificada Alemanha: imperadores e governantes percebiam no desenvolvimento tecnológico uma arma para o crescimento econômico e para o aumento do poder político.

    Sem nos determos detalhadamente sobre as revoluções que influenciaram os Oitocentos, nosso artigo procura discutir as possíveis relações existentes entre o contexto político e socioeconômico e as correntes do pensamento científico e filosófico vigentes no século XIX de nossa era.


    Século XIX: economia, política e sociedade


    Diversas características podem ser atribuídas aos Oitocentos, porém apontaremos duas: taxas intensas de crescimento demográfico e acelerada industrialização europeia e de outros continentes. Em função da tremenda explosão econômica (embora ela tenha ocorrido de maneira desigual entre os países europeus), surgiram duas classes sociais bem definidas17. Esta dicotomia de classes não afetou somente a economia: intensas mudanças na paisagem e na geografia geopolítica do Velho Mundo foram resultado direto da ação dos trabalhadores (operários e proletários) e da burguesia (comerciantes, proprietários de terras, entre outros).

    Os movimentos nacionalistas dominaram a política europeia oitocentista. Povos unidos por uma língua comum e dialetos correlatos (alemães e italianos, principalmente) tentavam formar o que hoje se denomina Estado-nação



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  4. Estas classes eram a burguesia e o proletariado. Para maiores detalhes, recomendamos a leitura de Rubel & Crump (1987).


    autônomo; outros povos, tais como húngaros, irlandeses e tchecos, buscavam independência, uma vez que eram dominados por estrangeiros.

    A crença em progresso e mudanças, disseminada largamente nas ciências e na literatura (DRUCKER, 2002), motivou muitos indivíduos ao desenvolvimento de uma cultura industrial que pretendia alcançar novos e promissores mercados. Para operários de fábricas e agricultores, entretanto, as condições de trabalho eram precárias e, para os primeiros, os salários eram baixos e a qualidade de vida aviltante.

    A grande revolução de finais do século XVIII e primeira metade do século seguinte foram um trunfo para a indústria capitalista e, por extensão, da classe mais abastada (i.e., membros da sociedade burguesa dita liberal). Pode-se afirmar, também, que, economicamente, estes ganhos foram capitalizados não pela economia do mundo moderno, mas por alguns países europeus e pelos Estados Unidos da América (HOBSBAWM, 2010). Em relação a este último, a industrialização ocorreu de forma mais incisiva após a Guerra Civil Americana (1861-1865), também conhecida como Guerra da Secessão, tendo sido um dos maiores responsáveis pelo crescimento da economia norte-americana desde então.

    O capitalismo de cunho monopolista e, de certa forma, imperialista (e que resultou na hegemonia econômica e no domínio de países como Inglaterra, França, Bélgica, Holanda, Alemanha e EUA sobre África, Ásia e Américas) marcou o século XIX do ponto de vista econômico e geopolítico, modificando fronteiras e alterando a organização das sociedades. A busca por novos mercados para além dos muros europeus e norte-americanos a fim de expandir os negócios e buscar matérias-primas fez com que o mapa-múndi dos Oitocentos fosse praticamente dominado pelas potências europeias, a Rússia e os Estados Unidos. A África (Figura 1) foi praticamente dividida em sua totalidade pelas nações europeias, com destaque para a Inglaterra e a França. Na Ásia, Índia, Hong Kong, Cingapura, Austrália e Nova Zelândia foram importantes territórios conquistados pela Inglaterra, que, grosso modo, pode ser considerada a ‘dona do mundo’ oitocentista18. A Rússia conquistou regiões


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  5. Outra importante ex-colônia inglesa (dividida com a França) foi o Canadá.


    caucasianas e travou batalhas contra a Inglaterra por territórios no Afeganistão e na Pérsia. Em relação ao domínio dos EUA, o Alasca foi comprado da Rússia, o Texas foi comprado do México, o Havaí foi anexado como mais um estado, além de várias ilhas da Polinésia.


    Século XIX: filosofia e ciência


    Em termos de ciência, as pesquisas em voga à época voltavam-se, primariamente, a questões relacionadas à matéria, imprimindo-lhes um caráter mecanicista, com o uso da lógica e da matemática para tentar explicar os fenômenos da natureza e da própria sociedade. Esta tendência mecanicista foi, em parte, derivada das ideias iluministas setecentistas19. As ideias de progresso e de um futuro promissor para a humanidade pautavam os pensadores da época que, de certa forma, mantinham-se alheios a tantas guerras, revoltas, greves e miséria que se espalhavam pelo mundo.



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  6. Também conhecida como a Idade da Razão, o Iluminismo foi um período compreendido entre meados do século XVII e finais do século posterior. Forças culturais e intelectuais enfatizavam a razão e a análise em detrimento de linhas tradicionais de autoritarismo (KOSELLECK, 1988). Personagens influentes da época incluem, entre tantos outros, Bacon, Voltaire, Kant, Descartes e Newton.


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    Figura 1. Domínio imperialista na África do século XIX por países europeus20.


    Esse raciocínio lógico-matemático pretendia conhecer a realidade e interpretá-la, utilizando um método científico infalível e livre de visões parciais. O pano de fundo de tal pensamento alinhava-se com os desenvolvimentos técnicos que melhoravam as condições de vida dos homens, não havendo espaço, portanto, para sistemas metafísicos ou crenças supersticiosas – afinal de contas, a razão deveria ser enfatizada por meio da experiência e do empirismo (VERGEZ & HUISMAN, 1984).

    As ciências estatísticas foram impulsionadas de forma marcante, notadamente na tentativa de elucidação dos fenômenos sociais. Os recenseamentos, cálculos administrativos, contábeis e econômicos foram mecanismos utilizados por franceses, alemães e ingleses com o uso das ferramentas de análise matemática. Para Judensnaider (2012), os dados censitários e estatísticos, tais como os relacionados a doenças, preços, pessoas


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  7. Fonte da ilustração: <http://revistaescola.abril.com.br/img/historia/216-africa- colonizacao.gif>; acesso em: 19 jan. 2015.


    condenadas, mortes, nascimentos, entre outros, estavam disponíveis para serem analisados e quantificados.

    A ciência apresenta-se, portanto, como um corpus metodológico preciso que fazia uso intenso e irrefutável da observação, dedução, comparação e testes. A inteligibilidade da realidade circundante só poderia ser feita, portanto, por meio de pressupostos científicos (leis, postulados etc.). A analogia das ciências da natureza (ditas ‘exatas’, tais como as ciências físicas, químicas e biológicas) foi, paulatinamente, aplicada às ciências sociais para que fosse possível interpretar as leis que regiam a sociedade. Esse ambiente motivaria o surgimento das sociedades científicas oitocentistas, cujo escopo principal era o desenvolvimento de pesquisas nas áreas de ciências sociais e humanas (BOCK et al., 2001).

    A burguesia, vitoriosa desde o século XVIII com a queda do chamado Antigo Regime21, parecia imperar sobre todos os campos da vida político-social. Será a partir deste contexto de progresso e de avanços que buscaremos compreender uma corrente de pensamento tipicamente oitocentista: o positivismo.

    Definir o positivismo em linhas gerais não é tarefa fácil. Vergez & Huisman (1984) o definem como sendo uma doutrina filosófica pela qual somente podemos adquirir conhecimento das coisas que experimentamos por meio dos sentidos. Richardson (1999) complementa esta definição ao admitir que o positivismo é uma forma poderosa de empirismo que rejeita a metafísica e a teologia, procurando o conhecimento além do escopo da experiência; o pensamento positivista fundamenta-se na investigação experimental e na observação como as únicas fontes de conhecimento substancial. Kremer- Marietti (2007) aponta Auguste Comte (1798-1857) e John Stuart Mill (1806- 1873) como os principais idealizadores do positivismo (que passou a ganhar força maior a partir de meados do século XIX).


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  8. Este termo é aplicado ao modo de vida tipicamente encontrado entre as populações da Europa entre os séculos XVI e XVIII. Monarquias absolutas e capitalismo social são, respectivamente, as características políticas e econômicas marcantes desse período histórico (TOCQUEVILLE, 2010).


    O pano de fundo sobre o qual o positivismo se desenvolveu inclui as perspectivas sobre a construção do conhecimento que, desde Galileu Galilei (final do século XVI), apoiaram-se em uma ciência experimental. Esta ciência experimental – associada a maiores graus de certeza e validade – pretendia explicar a natureza de forma eficaz e objetiva, tornando-a, por sua vez, útil à vida humana. A experimentação e o uso da lógica e da matemática para explanar fenômenos naturais atingem, durante o século XVII, patamares tremendos, principalmente com o físico, filósofo natural, astrônomo e alquimista sir Isaac Newton (1642-1727) 22. Com as ideias iluministas do século XVIII, dogmas antigos foram sendo questionados à luz das ‘novas’ explicações da natureza.

    É inegável que o sentimento de progresso e evolução imprimia ritmo novo às ideias científico-filosóficas dos Oitocentos. No âmbito das ciências naturais, as ideias de evolução e seleção natural dos organismos vivos defendidas por Charles Robert Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913) praticamente de forma paralela (embora a figura de Darwin costume ser mais rotineiramente proeminente) trouxeram questionamentos aos paradigmas vigentes, de forma mais incisiva às ideias criacionistas (WILSON, 2000). Assim, Darwin e Wallace propunham uma teoria de certa forma positivista ao inferirem que as espécies evoluíam no tempo histórico e no espaço físico, a partir da seleção natural e da sobrevivência dos mais aptos: estava sendo colocada em cheque, portanto, a crença na existência de um ser superior, criador de tudo e todos23.


    O legado comteano e o Curso de Filosofia Positiva



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  9. A data de nascimento de Newton é, segundo o calendário Juliano, 1642; no calendário Gregoriano, é 1643. Erroneamente considerado o ‘pai’ da revolução científica, Newton interessava-se por assuntos menos científicos, tais como interpretação da Cabala judaica, exegese bíblica (profecias do Antigo Testamento como as de Daniel, por exemplo) e experimentação alquímica. Sobre esta visão mais ampla de Newton, sugerimos a leitura de Forato (2003).


  10. Para leitura mais aprofundada sobre o papel desempenhado por estes dois naturalistas, sugerimos Bannister (1989), Bowler (2003) e Bowler & Morus (2005).


    Atingir as leis que explicariam o mundo físico e a regência do universo era uma meta necessária no ideário oitocentista, uma vez que se partia de dois princípios básicos: os seres vivos (portanto, a espécie humana inclusa) estavam sujeitos à evolução e a humanidade progredia enormemente, como nunca antes fora presenciado.

    Pois bem: foi neste cenário de certa forma paradoxal (o progresso do capitalismo transformava a paisagem urbana, introduzindo novos hábitos e costumes, ao passo que o proletariado, explorado de forma cruel, iniciava movimentos grevistas para que suas reivindicações fossem ouvidas24) que Comte desenvolveu suas ideias. O positivismo comteano encontrara terreno fértil em um mundo de contrastes cada vez mais intensificados. Como resolver as questões da miséria e da pobreza em meio a tamanha fartura e crescimento econômico? O ideal de progresso e ordem social25 tentaria estabelecer parâmetros para tratar das questões que envolviam as ondas de fome endêmicas e doenças que se espalhavam pelo mundo e, acentuadamente, entre a classe operária por meio da ciência e da tecnologia, as quais dispunham de ferramentas capazes de sanar tais problemas da humanidade. Para Comte, filho de um fiscal de impostos francês cuja vida familiar parece ter sido turbulenta e instável, a ordem poderia ser uma condição sine qua non para que a humanidade pudesse progredir (COMTE, 1978).

    O conceito de “positivo” envolvia diferentes conotações:


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    Considerada de início em sua acepção mais antiga e comum, a palavra positivo designa real, em oposição a quimérico. Desta ótica, convém plenamente ao novo espírito filosófico, caracterizado segundo sua constante dedicação a pesquisas verdadeiramente acessíveis à nossa inteligência, com exclusão permanente dos impenetráveis


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  11. Vale lembrar que os direitos políticos da burguesia haviam sido conquistados a partir da supressão das monarquias absolutas de finais do século XVIII, adicionando, assim, um ingrediente a mais neste contexto sociopolítico complexo dos Oitocentos (PICKERING, 2009).


  12. No Brasil, o positivismo teve grande repercussão junto à elite que ansiava por explicações científicas no recém-liberto Brasil pós-1822. Entretanto, muito da filosofia original de Comte foi sendo, paulatinamente, desvirtuada. O lema da bandeira nacional do Brasil, “Ordem e Progresso”, é inteiramente fundamentada no positivismo comteano (LINS, 1967).


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    mistérios de que se ocupava, sobretudo em sua infância. Num segundo sentido, muito vizinho do precedente, embora distinto, esse termo fundamental indica o contraste entre útil e ocioso. Lembra então, em filosofia, o destino necessário de todas as nossas especulações sadias para aperfeiçoamento contínuo de nossa verdadeira condição individual ou coletiva, em lugar da vã satisfação duma curiosidade estéril. Segundo uma terceira significação usual, essa feliz expressão é frequentemente empregada para qualificar a oposição entre a certeza e a indecisão. Indica assim a aptidão característica de tal filosofia para constituir espontaneamente a harmonia lógica no indivíduo, e a comunhão espiritual na espécie inteira, em lugar dessas dúvidas indefinidas e desses debates intermináveis que devia suscitar o antigo regime mental. Uma quarta acepção ordinária, muitas vezes confundida com a precedente, consiste em opor o preciso ao vago. Este sentido lembra a tendência constante do verdadeiro espírito filosófico a obter em toda parte o grau de precisão compatível com a natureza dos fenômenos e conforme às exigências de nossas verdadeiras necessidades; enquanto a antiga maneira de filosofar conduzia necessariamente a opiniões vagas, comportando apenas uma indispensável disciplina, baseada numa repressão permanente e apoiada numa autoridade sobrenatural. É preciso, enfim, observar especialmente uma quinta aplicação, menos usada que as outras, embora igualmente universal, quando se emprega a palavra positivo como contrária a negativo. Sob esse aspecto, indica uma das mais eminentes propriedades da verdadeira filosofia moderna, mostrando-a destinada sobretudo, por sua própria natureza, não a destruir, mas a organizar (COMTE, 1978, p. 61).


    Ainda jovem, Comte estudou na Escola Politécnica de Paris (EPP), onde importantes figuras do pensamento filosófico-intelectual encontravam-se ativas. Este convívio certamente deve ter imprimido em Comte forte predileção pelo rigor do método científico, especialmente após ter saído da EPP e lido os pensamentos de Adam Smith (1723-1790), David Hume (1711-1776) e, em especial, Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, mais conhecido como Marquês de Condorcet (1743-1794). Este último autor inspirou em Comte a ideia de associação entre genialidade científica e avanço da humanidade, combinação


    essa responsável por conduzir o ser humano à extrema organização social e política iluminada pela Razão (CARITAT, 1993).

    Além desses pensadores, o filósofo e economista francês Claude-Henri de Rouvroy, conhecido como Conde de Saint-Simon26 (1760-1825), também foi uma influência importante na vida de Comte. A vida de Saint-Simon foi um misto de utopias, aventuras transnacionais, estudos enciclopédicos, fortunas, misérias, tentativa de suicídio e criação de uma religião própria. Heilbroner & Milberg (2008) discutem que a Igreja Saint-Simoneana (com igrejas na França e filiais alemãs e inglesas), fundada após a morte de Saint-Simon, era mais aparentada a uma irmandade do que uma institucional eclesiástica propriamente dita27.

    Após o contato com estes diversos pensadores, Comte iniciou uma atividade profissional como professor de matemática e filosofia, ainda casado com Caroline Massin, com quem permaneceu durante 17 anos. Após o rompimento com Massin, apaixonou-se por Clotilde de Vaux, embora não tenha contraído matrimônio com ela28.

    O principal trabalho de Comte é, indubitavelmente, seu Curso de Filosofia Positiva, escrito entre 1830 e 1842, em seis volumes, posteriormente renomeado para Sistema de Filosofia Positiva. A confecção deste material ocasionou a perda de seu cargo como Examinador na EPP: seus ataques incisivos à abstração matemática e seus pressupostos de que as ciências biológicas e sociológicas eram as únicas e fidedignas ciências ao se apoiarem em métodos experimentais não agradaram aos diretores da instituição.

    Comte assumia três postulados gerais: a) sua filosofia positiva (pensamento positivo) deveria imperar entre os homens por meio de estudo da filosofia histórica; b) uma proposta de taxonomia das ciências (de acordo com níveis crescentes de complexidade e generalização) com fundamentação na filosofia positiva (Figura 2); e, c) a possibilidade de reforma prática das instituições sociais por meio de um pensamento sociológico que pudesse determinar a estrutura e os processos de modificação da sociedade.


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  13. Conhecido, também, como um dos fundadores do socialismo moderno e estudioso do socialismo utópico (TAYLOR, 1975).


  14. O impacto destas ideias sobre o pensamento de Comte ainda não foi completamente elucidado.


  15. Comte parece ter tido, de acordo com seus biógrafos, diversos episódios de colapsos nervosos, muitos deles relacionados a instabilidades no relacionamento conjugal. Separou-se de Massin em 1842. Clotilde de Vaux morreu de tuberculose em 1846 (MUGLIONI, 1995). Este episódio parece ter perturbado sobremaneira a vida do pensador, uma vez que passou a cogitar, cada vez mais, a inauguração de uma nova religião. No Brasil, este ideal religioso de Comte é expresso concretamente por meio da Igreja Positivista do Brasil (CASA DE OSWALDO CRUZ, 1995).


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Figura 2. Hierarquia das Ciências de acordo com o pensamento de Comte. Para ele, a matemática era a ciência menos complexa e menos generalista, oposta das ciências sociais, com suas inúmeras complexidades e enorme generalização.

Nenhuma ciência era superior à outra: a sociologia servia tão somente para relacionar as demais ciências para o entendimento completo da história do homem (adaptado de PRIYA, 2015).


As ciências naturais foram dicotomizadas por Comte em abstratas e gerais (responsáveis pela descoberta das leis que regiam as classes fenomenológicas) e em concretas e descritivas (representando a aplicação das leis formuladas pelas abstratas com o intuito de compreender a história da vida). Da hierarquia das grandes áreas do conhecimento retratadas na Figura 2, Comte apontava, também, a primazia das ciências gerais sobre as concretas: assim, estudos em química deveriam preceder aqueles em mineralogia, e investigações sobre bioquímica deveriam ser anteriores aos estudos de zoologia, por exemplo. Este raciocínio fundamentava-se na ideia de que, havendo uma sequência lógica e sucessiva do encadeamento das ciências naturais, seria mais fácil compreender a interdependência entre elas (COMTE, 1978).

O pensamento positivista de Comte, do ponto de vista ontológico, caracterizava a realidade como sendo algo totalmente apreensível; sua epistemologia partia do princípio de que os fatos e os achados eram verdadeiros e sua metodologia era experimental e manipulativa. Ainda, sujeito e objeto eram encarados como entidades independentes, não influenciáveis entre si no processo de conhecimento (GUBA, LINCOLN, 1994). Comte buscou, assim, uma síntese do que fora elaborado pelas ciências físicas, químicas e biológicas para a elaboração de seu método ‘seguro’ de obtenção do conhecimento.


Rossi (2000) pontua as ideias comteanas como sendo defensoras da perfeição e da felicidade do gênero humano, adquiridas por meio de etapas (graus) que seguiam uma lei presente na própria história da humanidade. Analogamente, admite que Comte aforava a ciência e a técnica como principal fonte de progresso “(...) político e moral, constituindo a confirmação de tal progresso” (ROSSI, 2000, p. 96).

O âmago do pensamento comteano reside no fato de que a reforma do intelecto humano deve ser pré-requisito para quaisquer mudanças na sociedade. As possibilidades técnico-científicas disponíveis para a sociedade seriam a alavanca para que uma ‘nova forma de pensar’ pudesse edificar os patamares de uma Nova Ordem Mundial. A saída para esta estratégia, portanto, parece residir em um caráter “religioso” de sua filosofia: Comte admite que a sociedade perfeita, sine macula, poderia ser alcançada somente por meio da ciência desenvolvida naquele período.

A filosofia positiva de Comte admitia, também, que a sociologia (“Física Social”) era o derradeiro estágio do desenvolvimento científico; desta forma, Comte raciocinava que o intelecto do homem também poderia ser categorizado em uma taxonomia tríade de estágios: a fase inicial ou teológica, a intermediária ou metafísica e a real ou positiva.


Considerações finais


O século XIX foi, sem dúvida, um período histórico de grande turbulência nas esferas que sustentam as sociedades modernas: economia, política e progresso científico-tecnológico. Como discutido, o legado de liberdade, igualdade e fraternidade, tão freneticamente pregado pela Revolução Francesa de finais do século XVIII, aos poucos toma corpo na filosofia das ciências, consolidando-se nos ideais capitalistas e modificando o mundo de forma nunca antes vista.

No âmbito científico, as ideias revolucionárias que colocavam em cheque a criação das espécies por um ser divino desde o início do mundo encontram respaldo na filosofia positiva de Comte, apontado aqui como um dos maiores


ícones dos Oitocentos. Apresentado como forma de perceber o mundo, o positivismo tornou-se a doutrina que permitia aos burgueses a manutenção da ordem, condição necessária para o progresso da sociedade.

Esgotar este tema é tarefa impossível. Pretendemos, com este ensaio, trazer ao leitor um apanhado geral sobre o cenário do século XIX em que se inter- relacionam aspectos político-econômicos e filosófico-científico-tecnológicos em uma sociedade que estava, constantemente, sujeita a mudanças em seu modo de pensar e viver.


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