ARTÍCULOS

Prometeica. Revista de Filosofía y Ciencias, año IV, N. 10, verano 2015



JULGAR PRIMEIRO E CONHECER DEPOIS:


KANT E REPRESENTAÇÃO NAS CIÊNCIAS


First judging then knowing:


Kant and the Representation in Sciences


MAICOL MARTINS DE LÓPEZ COELHO


(UNIFESP, Brasil)


Resumo


Este artigo trabalha com a representação do orgânico: iniciará tendo como proposta explicitar que, dentro da Crítica, a representação da forma orgânica, diferente da representação da forma que nos compraz como bela, constitui um símbolo na experiência que implica, para seu conhecimento, que a razão lhe anteponha uma causa final externa a ela, razão; esta anteposição tem um preço e, como preço, tal representação tornará inconjugáveis o conhecimento da coisa como objeto técnico e o seu juízo como produto natural. Como este preço é cobrado? Em busca de resposta, colocarei a diferença kantiana entre o juízo estético e o juízo teleológico; mostrarei, a seguir, que a forma orgânica não pode ser pensada pela razão valendo-se de uma concepção apenas mecanicista da natureza; perante a forma orgânica a razão terá necessidade de estabelecer, a priori, uma finalidade objetiva na representação desta forma. Uma vez percorrido este caminho, darei início ao movimento final deste texto, ao apresentar duas propostas contemporâneas de abordagem sobre o orgânico que contemplam, na verdade, duas formas diferentes de a razão se colocar perante a representação do organismo. O preço cobrado está, então, pago.

Palavras chave: razão | representação | juízo orgânico.


Abstract


This article works with the representation of organic: starting with the proposal to explain clearly that, inside of Critics, the representation of organic form, different of the representation of form that give pleasure to us with beauty, constituting a symbol in the experience that implies, to his knowledge, the reason that putting before a final external cause to it, reason. This fronting has a price and, as a price, such representation will become not conjugable the knowledge of thing as technical object and his judgment as a natural product. How is this price charged? In search of an answer, will be put the difference between aesthetic judgment and theological judgment; will show, then, that the organic form cannot be thought by reason making use of only a mechanistic view of nature; towards the organic form, the reason will need to establish, a priori, an objective purpose in representing this way. Once covered this path, will start the final movement of this article, in presenting two contemporary proposals to approach the organic that truly come to two different forms of reason to put towards the representation of the organism. The price charged is, thus, paid.

Keywords: Reason | Representation | Organic Judgment.


  1. Tema e conceito


    O professor Rubens Rodrigues Torres Filho, em seu texto “Dogmatismo e antidogmatismo: Kant na sala de aula”, ensina a interrogar conceitualmente, e não tematicamente, a materialidade de um texto: “não se procurará saber o que ele diz – muito menos o que o autor quis dizer – mas como ele funciona; não os conhecimentos ou informações de que ele seria “veículo” – eventualmente, a respeito do “pensamento do autor” – mas o que acontece nele” [Torres Filho, 2001: 138-9]. Posteriormente, segue o professor, discutir-se-ão as ideias construídas pelo texto e, delas, as implicações. Tenhamos isto em conta e a Crítica da faculdade de julgar (nas citações seguintes, apenas Crítica) de Kant, em mãos: pensemos que, tematicamente, como bem nos lembra Lebrun no prefácio de Kant e o fim da metafísica, poderíamos esperar da Crítica da faculdade de julgar “uma revelação que ali seria feita sobre a essência do belo ou sobre a essência do biológico”. Poderíamos esperar, ali, “a teoria de domínios até então não explicitados ou mal explicitados” [Lebrun, 2002: 5]. Mas, antes, Lebrun avisara que tal espera é um erro a não ser cometido: a Crítica não tem


    “como tarefa munir-nos de convicções novas, mas sim fazer-nos colocar em questão o modo que tínhamos de ser convencidos” – a Crítica, conclui, “nos ensina a pensar de outra maneira” [Lebrun, 2002: 5].

    Caberá apartar então estes temas, o belo e o orgânico: este artigo dedicar- se-á à busca de consequências de outra maneira de pensar. Mas não apartar de todo, não ainda. A Crítica transita em meio àqueles temas; assim iniciarei.


  2. Modos de julgar


António Marques, na introdução de sua obra Organismo e sistema em Kant, em certo momento cuida de discutir o juízo estético e o juízo teleológico, alertando- nos que, tanto face a um quanto face a outro, “é afinal uma e mesma natureza representada como arte, ainda que decerto o conceito de finalidade sofra uma inflexão quando se passa do plano estético para o teleológico” [Marques, 1987: 40]. Tal inflexão é determinante quanto à representação que se fará da forma apreendida pela experiência. No caso do juízo estético, Kant coloca que “o juízo de gosto é um juízo estético2 [Kant, 2012: 136-8], isto é, que se baseia sobre fundamentos subjetivos e cujo fundamento de determinação não pode ser nenhum conceito, por conseguinte tampouco o de um fim determinado” [Kant, 2012: 68], de forma que


a própria crítica do gosto é somente subjetiva com respeito à representação pela qual o objeto nos é dado; ou seja, ela é a arte ou ciência de submeter a regras a relação recíproca do entendimento e da sensibilidade na representação dada (sem referência a sensação ou conceitos precedentes), por conseguinte a unanimidade ou não unanimidade de ambos, e de determiná-los com respeito às suas condições [Kant, 2012: 139].



  1. Para Kant, o nome reservado à faculdade de juízo estética é gosto, por ser sempre proferido como um juízo singular sobre o objeto; como tal, ele não é absolutamente determinável por argumentos.


    Quando tais relações recíprocas do entendimento e da sensibilidade na representação dada mostram que o que percebo está adequado a uma finalidade subjetiva, colocada por mim face à forma representada, ou seja, uma vez que o meu entendimento, frente à finalidade subjetiva que atribuo a certa forma, concorda com a representação desta forma dada na experiência por meio da sensibilidade, esta forma me comprazerá. Mas torno a destacar – para tanto, a representação dada por minha experiência deve estar adequada à finalidade subjetiva que coloco frente a tal representação. Ora, isto colocado, o próximo passo deste texto será mostrar que a representação de uma forma orgânica exigirá, sim, o conceito de um fim determinado, trabalhado na faculdade de juízo teleológico. A ele.

    Tomemos uma figura geométrica: a conformidade a fins a que se presta, por exemplo, uma elipse, por meio de suas propriedades geométricas, não pode ser simplesmente subjetiva e estética, ensina Kant [Kant, 2012: 226-8], mas objetiva e intelectual, uma vez que a figura se presta à produção, conhecida pela razão, de muitas formas finais – as propriedades desta elipse, conhecidas por geômetras gregos de outrora, também atendem a fins de representação da gravitação universal newtoniana, por exemplo. Logo, ela é conforme a fins objetivos, porém não exige, para si, um fim como fundamento. Mas, permanecendo com o tema geométrico, vamos deslocar um pouco a discussão, abordando o famoso exemplo do hexágono na areia apresentado por Kant:


    Se alguém, numa terra que lhe apareça desabitada, percebesse desenhada na areia uma figura geométrica, por exemplo, um hexágono regular, então quando muito a sua reflexão captaria por meio da razão, na medida em que trabalhasse, um conceito daquela mesma figura, a unidade do princípio da produção da mesma, ainda que de modo obscuro, e não ajuizaria, segundo esta unidade, a areia, o vizinho mar, os ventos ou também os animais com as pegadas que ele conhece, ou ainda outra qualquer causa desprovida de razão, como um fundamento da possibilidade de tal figura [Kant, 2012: 235].


    Não é possível encontrar, em uma natureza restrita a leis mecânicas, lei que possibilite a existência contingente do hexágono desenhado na areia; a razão pode, sim, considerar sua causalidade, uma vez que ela pode dar o conceito de tal objeto, considerando-o como um fim, mas não como um fim natural. Marques explora este exemplo: “o que Kant tem em vista é explicar como certos objetos, pela forma que neles representamos na experiência, são problemáticos quanto ao princípio da sua própria possibilidade”, em função de disposições internas ou configurações exteriores, que, por suas peculiaridades, escapam ao conceito de experiência; faz-se necessário, então, meditar sobre a possibilidade de tais formas [Marques, 1987: 187-8].

    Voltemos o olhar para a forma orgânica: à semelhança do hexágono, as leis mecânicas parecem, e são, incapazes de dar conta da representação de tais formas, tanto em se tratando ou de uma forma orgânica singular ou da natureza. Quanto à primeira, pensá-la em analogia com uma máquina implica reduzi-la a uma articulação entre as partes – sim, partes organizadas entre si – que não são capazes de, por si, operarem um rearranjo interno a tal organização; e, ainda que obedeçam à determinação das forças e leis que regulam um universo mecânico newtoniano, a organização que é imposta à máquina é contingente, uma entre tantas possíveis, e adequada ao fim que lhe pensa o artesão que a cria. Quanto à segunda, quanto à natureza, a tentativa de abarcar a sua totalidade sob uma perspectiva de inspiração mecânica culminará com categorizações sistemáticas que são contingentes dentro da determinação a leis newtonianas – a contingência sempre presente. Tal determinação é, claro, respeitada, afinal, em geral não se encontram “quebras” das leis mecânicas da física – porém, dentro de uma conformação que seria uma entre muitas possíveis, paga-se o preço de que conhecer a experiência que temos da natureza como um agregado de fenômenos, ainda que passíveis de determinação pela razão, não faz dela um sistema. A natureza permanece contingente; como frente ao hexágono que encontramos na areia, falta-nos ainda algo, que será trabalhar a finalidade objetiva interna à natureza que nos permite pensar a experiência como articulação de representações segundo um fim. Como bem sintetiza Lebrun, “no momento em que se multiplicam os autômatos, surge um domínio orgânico que esses “organismos” são incapazes de imitar” [Lebrun, 2002: 347].


    Uma máquina não é sua causa e efeito; a organização de suas partes exige que, na representação de sua forma, esteja intuída também a presença de um artesão que a constituiu, que não apenas lhe dê finalidade, como que eventualmente lhe restitua uma peça que venha a lhe faltar, dado que a ela não é possível fazê-lo. Tomemos este último aspecto: um corpo orgânico o faz, um corpo orgânico se regenera, característica que por si basta para distanciar o modo de operar natural do modo de operar técnico [Marques, 1987: 195]. Perante um corpo orgânico, estamos perante um ser organizado do qual se pode esperar que, pelos seus próprios meios, substitua ou corrija partes que lhe são retiradas ou faltam, e que

    é por isso não somente uma máquina: esta possui apenas força motora <bewegende>; ele, pelo contrário, possui em si força formadora <bildende> e na verdade uma tal força que ele comunica aos materiais que não a possuem3 (ela organiza). Trata-se pois de uma força formadora que se propaga a si própria, a qual não é explicável só através da faculdade motora (o mecanismo) [Kant, 2012: 240].


    Uma vez que se valha desta força formante, fica aberta a possibilidade: cada forma orgânica é representada perante a razão como causa e efeito de si, tanto as partes de seu corpo quanto ao corpo todo, como também é esta a relação deste corpo com o todo da natureza; todavia, repito, a menos que o juízo reflexivo teleológico leve a razão a atribuir, a priori, uma conformidade da forma orgânica a fins externos à própria razão, não será possível representá-la como conforme a esses fins e, por isso, como parte do sistema da totalidade da natureza. De modo a possibilitar essa representação, um produto da natureza deve conter, em si e na sua necessidade interna, a citada relação a fins, sendo possível somente como fim e sem a causalidade de seres racionais a ele externos [Kant, 2012: 238], e deve atender a duas condições, sendo necessário que as partes dessa coisa, a saber: só sejam possíveis através de sua relação com o todo; e que “se liguem para a unidade de um todo e que sejam reciprocamente causa e efeito de sua forma” [Kant, 2012: 238-9]. Tais requisitos permitirão ao juízo

  2. Por exemplo, uma muda de jequitibá-rei que, ao crescer, se apropria de carbono atmosférico, material que não possui tal força formante, mas que, uma vez organizada pelo jequitibá e nele assimilada, passará a ter também tal capacidade.


reflexivo teleológico4, explica Marques [Marques, 1987: 189-90], ser o responsável pela apreensão conjunta que nos dá uma coisa da natureza como “uma representação de um algo como um todo e dum algo como partes desse todo” [Marques, 1987: 189-90]. Portanto, é a atribuição que o juízo reflexivo teleológico dá, à experiência do orgânico, de uma conformidade a fins5 desse orgânico, que me permitirá tomar a forma orgânica como um símbolo da totalidade da natureza.


  1. Modos contemporâneos: fins externos e fins internos à coisa julgada


    Uma vez apresentada a finalidade na representação da forma orgânica, e com o intuito de iniciar o movimento que levará este artigo a seu final, apresento dois aspectos da percepção contemporânea do orgânico, confrontando a físico- química e a biologia, retomando Newton versus o corpo orgânico. Ao primeiro: o químico Ilya Prigogine discute, em seu livro A nova aliança, a ciência do complexo, em especial a termodinâmica do desequilíbrio. Em certa altura de sua obra, Prigogine aborda a questão da morfogênese: diante da complexidade do problema embriológico, questão ainda distante de resolução, ele defende que cada célula “reconhecerá” sua posição no campo morfogenético por meio de gradientes que se estabelecem como consequência da quebra de uma simetria além do limiar de estabilidade químico. “Uma vez estabelecido, um gradiente químico pode, com efeito, fornecer a cada célula um ambiente químico diferente e, portanto, induzir cada uma delas a sintetizar uma gama específica de proteínas” [Prigogine & Stengers, 1997: 125]. Assim, no lugar que couber a dada parte, cada célula constituirá esta particular dada parte de um embrião. Logo, e frente a esta colocação de Prigogine, é possível pensar o que seria a força formante de Kant como forças físico-químicas de caráter, por que não,

  2. Tal juízo estabelece correlações entre o todo e as partes e a forma interna com a possibilidade de existência.


  3. Após apresentar a necessidade da conformidade a fins para a representação da forma orgânica, Kant a seguirá trabalhando na Crítica, uma vez que a razão não nos dá a conhecer a natureza, mas sim algo de si, que é a necessidade de pensar conforme a fins.


mecânico, ainda que matematicamente muito mais complexas do que a mecânica propriamente dita.

Mas, na contemporaneidade, é possível adotar outra posição frente ao orgânico: em A lógica da vida o biólogo François Jacob, por sua vez, discordará de Prigogine, e o fará em uma passagem breve, que destaco: tanto tempo como aritmética

negam que a evolução se deva exclusivamente a uma sucessão de microacontecimentos e a mutações acontecidas ao acaso. Para extrair de uma roleta, uma após a outra, subunidade por subunidade, cada uma das quase 100.000 cadeias protéicas que podem compor o corpo de um mamífero, é preciso um tempo muito superior à duração do sistema solar [Jacob, 2001: 307-8].


Esta alegação, de grande simplicidade, nos permite conjeturar que a possibilidade da evolução da forma orgânica não basta em um arranjo apenas mecânico – simplesmente, e a despeito de que não há tempo para tanto, as quase cem mil cadeias protéicas estão aí; então é-nos possível pensar, se o queremos, que tal possibilidade de evoluir se deve a algo além das determinações físicas de natureza, quiçá a um fim interno da natureza.

Prigogine e Jacob discordam em sua representação do orgânico; pode-se imputar tal discordância à representação, por parte da razão, da forma orgânica conforme a fins externos à natureza, no primeiro caso, e temos o ponto de vista do físico-químico, ou internos, no segundo, conforme o ponto de vista do biólogo. Mas tal discordância não faz mais do que, face ao trabalho de Kant, confirmar a advertência lançada por Lebrun: “a partir do momento em que a finalidade é mais do que uma hipótese de trabalho e está inscrita em meu juízo sobre a coisa, senão na própria coisa, não se tem mais o direito de conjugá-la com a explicação pelas causas eficientes: a mesma coisa não poderia ser ao mesmo tempo conhecida como objeto físico e “julgada” como produto técnico. [Lebrun, 2002: 601]”. Bem, parece que a contemporaneidade assim o demonstra.


Bibliografía


JACOB, F. A lógica da vida: uma história da hereditariedade. Tradução de Ângela Loureiro de Souza. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

LEBRUN, G. Kant e o fim da metafísica. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

MARQUES, A. Organismo e sistema em Kant: ensaio sobre o sistema crítico kantiano. Lisboa: Presença, 1987.

PRIGOGINE, I. e I. Stengers. A nova aliança: metamorfose da ciência. Tradução de Miguel Faria e Maria Joaquina Machado Trincheira. 3ª ed. Brasília: UNB, 1997.

TORRES FILHO, R. R. “Dogmatismo e antidogmatismo: Kant na sala de aula”.In Cadernos de filosofia alemã. São Paulo, 7, agosto de 2001.