ENTREVISTA


“PODERIA A CIÊNCIA ATUAL ENTENDER O INÍCIO DO UNIVERSO?”

Entrevista a Dennis Bessada


Por Thaís Cyrino de Mello Forato

(UNIFESP, Brasil)


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Possui graduação em Física pelo Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), Mestrado em Física pelo Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-UNESP), e Doutorado em Astrofísica pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), tendo realizado estágio-sanduíche no Departamento de Física da State University of New York at Buffalo. Foi bolsista de Pós- Doutorado da FAPESP no INPE. Atualmente é Professor Adjunto II da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus Diadema, e membro do corpo docente permanente do curso de pós-graduação em Astrofísica do INPE.


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Prometeica: Professor Dennis, em uma conversa recente que tivemos, fui surpreendida pelo seu comentário de que a “teoria do Big Bang” não seria completamente uma teoria! Tanto os livros didáticos, como a mídia em geral, a apresentam e divulgam como tal. Afinal, a “teoria do Big Bang” é ou não é uma teoria? Seria um modelo?


Essa é uma questão conceitual bem interessante, e está intrinsecamente associada ao desenvolvimento de nossas concepções sobre a origem e a evolução do universo. Sem entrar em definições rigorosas, podemos dizer que um modelo cosmológico envolve uma proposta simplificada de explicação para um determinado fenômeno observado no universo, e tal proposta é baseada em um conjunto de equações e princípios físicos. Já uma teoria cosmológica é mais abrangente e complexa do que um modelo, já que, além de outros fatores, deve

ser extensivamente verificada e comprovada por diversos tipos de observações, além de ser capaz de predizer fenômenos que ainda não foram observados.

Uma vez feita essa diferenciação, podemos traçar um rápido histórico desses modelos cosmológicos para entender o que é a chamada “teoria do Big Bang”.

Vamos considerar como um primeiro modelo físico cosmológico - como um conjunto de hipóteses baseadas em princípios físicos e equações matemáticas - o que foi originário da teoria da gravitação de Newton, publicada em 1687, e foi largamente aceita até o início do século XX, quando Albert Einstein deriva a primeira solução cosmológica das equações de campo gravitacionais obtidas a partir de sua teoria da relatividade geral (vale lembrar que a teoria de Newton pode ser deduzida como caso especial das equações de Einstein). Einstein pressupôs que o universo era estático, ou seja, ele não se expandia ao longo do tempo; porém, logo ele observou que tal modelo era instável, o que o invalidaria fisicamente. O próximo passo seria dado entre os anos de 1922 e 1924, através dos trabalhos do matemático russo Alexander Friedmann, e em 1927, pelos resultados do padre católico e físico teórico belga Georges Lemaître. De forma independente, ambos derivaram soluções dinâmicas para as equações de Einstein do campo gravitacional, o que equivale a dizer que o universo se expandia ao longo de sua evolução no tempo. Lemaître usou seu modelo cosmológico para explicar porque as nebulosas se afastavam da Terra, fenômeno que já havia sido observado alguns anos antes. Além disso, ele também argumentou que, como o universo se expandia, ele deveria ter sido menor no passado; assim, em um dado instante – que seria o instante inicial do universo – toda a matéria se concentraria em um único ponto, o qual ele chamou de “átomo primordial”. Com isso, o universo teria tido um início, contrariamente à concepção até então mais favorecida, de que o universo seria eterno! Afinal, postular um início para o universo implica em assumir uma questão filosófica ainda mais complexa: o que haveria antes do início?

De qualquer modo, os resultados observacionais do astrônomo americano Edwin Hubble, obtidos em 1929, vieram a dar suporte empírico aos modelos de Friedmann e Lemaître. Em 1946, esse modelo cosmológico – que é chamado de modelo de Friedmann e Lemaître (FL) – foi aperfeiçoado pelo físico russo George Gamow, que estudou a produção de núcleos leves de hidrogênio, hélio e

lítio no universo primitivo – a chamada nucleossíntese primordial (NP); além disso, em conjunto com os físicos Ralph Alpher e Robert Hermann, Gamow previu, em 1948, a formação de uma radiação “fóssil” que permearia todo o universo e que seria uma espécie de “eco” de seus primórdios: “nascia”, ao menos teoricamente, a radiação cósmica de fundo em micro-ondas (RCFM).

Apesar de explicar os resultados obtidos por Hubble de forma consistente, o modelo FL aperfeiçoado por Gamow e colaboradores não convencia a totalidade dos físicos. Afinal, a ideia de um “átomo primordial” que concentraria toda a matéria do universo desconcertava muitos físicos: de acordo com o modelo, nesse estado inicial – que chamamos tecnicamente de singularidade – grandezas físicas como temperatura e densidade seriam infinitos! Em uma singularidade as leis físicas não podem ser aplicadas, portanto, não se é possível dar nenhuma resposta sobre o que teria acontecido exatamente no “início”. Essa resistência ao modelo FL gerou um comentário ácido de um de seus principais opositores, o astrônomo Fred Hoyle, que em uma transmissão radiofônica no ano de 1949 descreveu esse modelo cosmológico como análogo à “ideia de uma grande explosão (Big Bang)”. Essa ironia de Hoyle foi prontamente difundida pela comunidade dos físicos, que passaram a chamar o modelo FL de “modelo do Big Bang”. Não havia mais a elegante ideia de um átomo primordial, mas sim o chiste de uma grande explosão! O chamado “Big Bang” seria, então, essa singularidade inicial do universo.

O próprio Hoyle desenvolveu, em conjunto com alguns colaboradores, um modelo alternativo ao do Big Bang, o chamado modelo de universo estacionário, o qual atraiu a atenção de muitos físicos que estudavam a cosmologia. Porém, a descoberta da RCFM, realizada em 1964 pelos físicos Arno Penzias e Robert Wilson, sepultou as ideias de Hoyle, e o até então modelo do Big Bang passou a se firmar como o melhor cenário para se descrever a estrutura e evolução do universo em larga escala.

Pois bem Thaís, após essa introdução histórica eu posso agora ser mais preciso em relação à questão da “teoria do Big Bang”. Note que a ideia de átomo primordial não passava de um modelo inicialmente, já que era constituída apenas por algumas hipóteses e equações matemáticas. O primeiro suporte observacional fora dado pelos resultados obtidos por Hubble; porém, a práxis

científica mostra que dois ou mais modelos distintos podem ser propostos e cuidadosamente “afinados” para reproduzir dados observacionais. Para a consolidação do modelo, faz-se necessária a confirmação por dados oriundos de outros tipos de observação; além disso, o modelo tem de ser capaz de fornecer predições verificáveis. Assim, foi somente com a complementação e aperfeiçoamento de Gamow que o modelo pôde se tornar uma teoria, e a confirmação da predição da RCFM foi a segunda prova empírica para estabelecer a validade do modelo! Posso adicionar ainda que as observações das abundâncias dos elementos hidrogênio e hélio no cosmos confirmaram com boa precisão as predições da NP; com isso, são três os pilares empíricos que sustentam a ideia do Big Bang, sendo que dois deles foram preditos antes de serem descobertos. Diante desses fatos, podemos dizer corretamente que o Big Bang é, de fato, uma teoria, mesmo com a persistência do problema da singularidade inicial. Onde está, então, o problema que lhe surpreendeu, Thaís?

A resposta está exatamente na eficácia da teoria ao longo da história evolutiva do universo. Se considerarmos t = 0 como o instante “inicial” do universo, podemos dizer que a teoria é eficaz antes de t = 1s, aproximadamente, já que fornece a base teórica para explicar dois fenômenos observáveis, que são a NP e a RCFM, como vimos. Antes desse instante, porém, a teoria apresenta algumas importantes falhas; faz-se necessária, portanto, uma complementação da teoria do Big Bang para que seja eficaz na descrição do universo primordial (ou seja, do universo em frações de segundo após o instante t = 0). É nesse ponto que os modelos desempenham um importante papel. No tocante ao universo primordial, há variegadas propostas, como os modelos de universo inflacionário, de universo eterno com ricochete, modelo ekpirótico, dentre tantos outros; em conjunto com a teoria do Big Bang, todos eles reproduzem, de um modo ou de outro, os dados observacionais disponíveis até o momento.

Além dessa problemática do universo primordial, há também o problema associado ao universo atual. Segundo a teoria do Big Bang, na presente fase do universo seria dominado por matéria (aqui incluída a misteriosa matéria escura, necessária para se explicar alguns importantes fenômenos cosmológicos), o que implicaria em uma desaceleração da taxa de expansão do universo (ou seja, o universo se expandiria a uma taxa cada vez menor); porém,

os dados das observações de supernovas distantes, em 1998, mostrou exatamente o contrário: o universo estaria acelerando sua expansão! Para contornar esse problema postulou-se a existência de uma nova forma de energia, a chamada energia escura (EE), cuja natureza ainda nos é desconhecida. Assim como ocorre no caso do universo primordial, vários modelos de EE foram propostos para se explicar a aceleração presente do universo.

Diante do exposto, a teoria do Big Bang, sozinha, não fornece um substrato teórico suficiente para descrever a evolução do universo em desde seus primórdios até o presente; para isso, devemos formular um modelo cosmológico, que é composto por:

modelo cosmológico: modelo de universo primitivo + Big Bang + modelo de EE.

Com isso, a teoria do Big Bang é apenas uma componente de um modelo cosmológico. O mais aceito atualmente é o chamado modelo cosmológico padrão (MCP), que envolve um modelo inflacionário e mais a constante cosmológica como representante da EE.


Na ultima década, temos visto muita divulgação sobre a investigação do momento primordial no LHC (Large Hadrons Collider)1, e a versão bastante propagada afirma que a partir da colisão de dois núcleos atômicos, busca-se reproduzir um “mini Big Bang”, para estudar como teria sido esse momento primordial. Mas, ao fazerem isso, não se está admitindo que havia algo antes do momento primordial?



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1 The Large Hadron Collider (LHC) is the world’s largest and most powerful particle accelerator. It first started up on 10 September 2008, and remains the latest addition to CERN’s accelerator complex. The LHC consists of a 27-kilometre ring of superconducting magnets with a number of accelerating structures to boost the energy of the particles along the way. Veja em http://home.web.cern.ch/topics/large-hadron-collider


As escalas de energia do universo primordial são irreprodutíveis em laboratório. O que se procura é entender o comportamento das partículas elementares mediante altíssimos níveis de energia (porém, bem inferiores aos do Big Bang). Isso poderia sim nos dar excelentes pistas sobre o comportamento das partículas elementares nos primórdios do universo, e como elas poderiam ter sido produzidas.

Em relação ao momento primordial, essa é uma pergunta que somente poderia ser respondida mediante uma teoria de gravitação quântica (TGQ). Antes de explicar o que é a TGQ, é necessário fazer alguns esclarecimentos. O mundo microscópico das partículas elementares é descrito pela teoria quântica de campos (TQC), que é oriunda da mecânica quântica no domínio da relatividade especial. Já a teoria da gravitação que descreve o comportamento do universo baseia-se na teoria da relatividade geral de Einstein (TRG). No domínio microscópico a interação gravitacional é desprezível, do mesmo modo que, na escala macroscópica, os efeitos quânticos podem ser desprezados. Com isso, temos duas boas teorias que descrevem muito bem tanto o micro quanto o macrocosmo, separadamente. O problema reside quando tentamos fundir ambas as teorias: elas se revelam incompatíveis! A TGQ seria exatamente essa teoria de unificação da TQC com a TRG. Mas, por que precisamos de uma teoria dessas para estudar o universo primitivo?

A resposta reside exatamente nos instantes infinitesimais após o momento inicial. Nessa situação, a densidade das partículas elementares é tão alta que mesmo elas passariam a sofrer efeitos gravitacionais. Com isso, apenas uma teoria que englobasse tanto os efeitos quânticos quanto os gravitacionais poderia explicar e descrever esse estado inicial! Deste modo, uma cosmologia derivada de uma TGQ seria muito mais eficaz do que nosso presente MCP para a descrição da origem e a evolução do universo.

Há alguns modelos alternativos de GQ, como a teoria de branas e a teoria da gravitação quântica com laços. Essas teorias são incompletas, e as respostas dadas por elas são apenas parciais. Com isso, dado nosso conhecimento teórico disponível, não podemos nem afirmar o que ocorreu no momento inicial do universo, e muito menos responder o que teria havido antes; podemos apenas

formular modelos aproximados, como aqueles que visam descrever o universo primordial já citados anteriormente.


Podemos, então, considerar que há imprecisões na divulgação científica que vem sendo realizada sobre a reprodução do momento primordial em laboratório, em um sentido que iria além de uma simples simplificação e adaptação da linguagem? Por outro lado, esbarramos em conteúdos altamente especializados...


Sim, eu creio que, na tentativa de se simplificar a linguagem para abarcar um público maior, muitas imprecisões e “licenças” acabam cometidas. As escalas de energia envolvidas são altíssimas, algo impensável para se executar na Terra. O objetivo desses experimentos é entender cada vez melhor os processos físicos associados às colisões de partículas elementares a altíssimas energias, o que contribuiria para elucidar ainda mais nosso conhecimento sobre a TQC. Por outro lado, esse cenário experimental guardaria semelhanças com o do universo primordial (em uma escala bem inferior de energias, é claro), e isso seria uma ferramenta essencial para conhecermos o que aconteceu antes do primeiro segundo do universo com maior precisão.

Aqui há uma questão bem interessante: em cosmologia assumimos que a Física que é válida no tempo atual seria válida, também, nos primórdios do universo. Note que essa é uma prerrogativa puramente filosófica: não há uma prova cabal de que a Física não se modificou ao longo das eras, portanto tal fato é assumido como uma hipótese. Aliás, muitas das hipóteses assumidas em Física são como “postulados”, ou axiomas, já que não são passiveis de verificação.


Pela sua descrição, não podemos afirmar se houve um começo nem o que haveria antes; então, o universo poderia ser eterno? Se sim, de onde teria surgido a matéria?

Sim, o universo poderia ser eterno. Há modelos em que o universo presente seria oriundo de outro universo preexistente, que teria colapsado (contraído); então, por algum mecanismo físico (há várias propostas possíveis), esse colapso seria revertido em um dado momento, e então o universo passaria a se expandir e se comportar exatamente como a teoria do Big Bang prediz. Esse modelo tem a vantagem de remover a singularidade, e a matéria, a radiação e a energia escura observadas no universo seria uma espécie de “reprocessamento” do conteúdo do universo “anterior”.


Dennis, você é um cientista que acredita em Deus. É muito comum encontrarmos defesas apaixonadas sobre um conflito entre a ciência e religião, e a questão da criação do universo vem sendo tomada como um exemplo, para algumas pessoas, de que a idéia do Big Bang excluiria a necessidade de um criador. Alguns rebatem tal idéia, perguntado como teria surgido a matéria primordial. Afinal, acreditar em um Universo que poderia ter sempre existido, ou acreditar que a matéria primordial poderia ter surgido por um mero acaso, excluiria a necessidade de um Criador?


Thaís, eu penso que ciência e religião não são excludentes. Sem querer entrar em detalhes filosóficos, a meu ver a questão do embate gira em torno da confusão em relação ao domínio de validade de ambas. A ciência é uma construção humana antes de tudo, é uma representação da realidade segundo critérios estabelecidos por princípios lógicos e matemáticos. E, como tal, é limitada. Afinal, encontramos diversos exemplos onde não conseguimos solucionar um problema de forma completa, mas apenas aproximada; um exemplo disso em Física é o problema de três corpos, que é insolúvel analiticamente, e podemos apenas trata-lo por meio de aproximações. Outro exemplo se refere ao átomo de hidrogênio: possuímos uma teoria com soluções exatas apenas para esse caso, todos os demais átomos são tratados por meio de aproximações, e assim por diante. Restringi-me ao campo da Física, mas situações análogas também surgem em outras áreas da ciência.

Pois bem, se possuímos um conhecimento limitado, como então a ciência poderia conceber um ser ilimitado, onipotente e onisciente? Não me parece

logicamente possível. Ademais, se Deus possui uma “matéria”, como um intelecto finito como o humano poderia compreender algo de absoluta transcendência? Enfim, poderia eu enumerar outros questionamentos aqui, mas creio que esses dois já servem para apontar o seguinte fato: não há nada na ciência que permita excluir a ideia de Deus. Portanto, uma alegação da espécie “o Big Bang excluiria a necessidade de um Criador” não passa de uma mera especulação, baseada em argumentos que não são demonstráveis.

Por outro lado, usar a questão da “matéria primordial” como alegação da existência de um Criador não prova nem a existência, nem mostra a necessidade de Deus para a ciência. Afinal, a ciência não pode se basear na presença de um Criador. Isso, pois não seria teoricamente demonstrável e nem reprodutível em laboratório a presença ou ação de Deus, critério esse necessário para que uma teoria se consolide!

Portanto, independentemente de qual seja a nossa concepção física do universo, Deus não terá seu lugar nele. A ciência precisa ser neutra. Isso não impede, contudo, que o cientista creia e busque Deus; afinal, não é nem na natureza, e nem no exterior que Deus deve ser buscado. Segundo os místicos, Deus somente pode ser encontrado no interior do homem. A Doutora Mística da Igreja, Santa Teresa d’Ávila, dá a melhor definição do contato entre Deus e o homem, em minha opinião; ela compara a alma humana a um castelo com diversas moradas, e diz que “no centro, no meio de todas está a principal, onde se passam as coisas mais secretas entre Deus e alma”. Não há então, a meu ver, nenhum conflito entre a religião e a ciência, já que a primeira trata (ou deveria, ao menos) dos aspectos interiores, ou metafísicos, do homem, ao passo que a segunda trata dos aspectos físicos do homem e da natureza! Se esses limites ficarem claros, e não forem confundidos, a conciliação entre o saber científico e a práxis religiosa é perfeitamente image