ARTÍCULOS


KANT (1747-1766): DESENVOLVIMENTO DO PROBLEMA DA RELAÇÃO ENTRE A ALMA E O CORPO

Kant (1747-1766): Development of the Problem of the Relationship between Soul and Body


ELNORA GONDIM Y OSVALDINO MARRA RODRIGUES

(UFPI, Brasil)


Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar o problema da relação entre a alma e o corpo no período pré-crítico kantiano tanto nas próprias obras de Kant quanto na análise do contexto em que o pensamento kantiano encontrava- se inserido.


Palavras-chave: alma | corpo | obras de Kant | pensamento alemão.


Abstract


The objective of this work is to analyze the problem of the relation between soul and body in Kant's pre-critical period both in Kant's own works as the analysis of the context in which the Kantian found himself inserted.


Keywords: Soul | Body | Works of Kant | German Thought.


Considerações iniciais


O objetivo deste trabalho é analisar o problema da interação entre a alma e o corpo no período pré-crítico kantiano tanto no cerne das próprias obras de Kant quanto na análise do contexto, em relação a tal tema, que o pensamento kantiano encontrava-se inserido. Referente a esse período surgem várias dificuldades, as quais levam os historiadores do kantismo a elaborarem hipóteses diferentes quanto à evolução do pensamento kantiano, de acordo com a significação que atribuem às influências de filósofos germânicos ou estrangeiros, e na sua interpretação da relação entre ciências naturais e filosofia. Enquanto alguns intérpretes estabelecem períodos precisos e distintos entre

1747 e 1781, apoiando-se nas influências ou nos temas e problemas abordados por Kant em cada momento, outros procuram traçar uma linha contínua de evolução do pensamento kantiano que culmina com a redação da primeira edição da Crítica da Razão Pura. Kuno Fischer, por exemplo, é o primeiro estudioso a dividir o pensamento de Kant entre 1747 e 1781, e o faz fortemente influenciado pela concepção hegeliana da história de que o desenvolvimento geral do espírito humano deve ser entendido como um processo triádico: passa- se da tese à antítese para acabar numa síntese, onde as duas primeiras se resolvem. Kuno Fischer demarca o período pré-crítico kantiano afirmando que esse começa com o escrito Pensamentos Sobre a Verdadeira Estimação das Forças Vivas e termina com o opúsculo O Primeiro Fundamento da Distinção dos Objetos no Espaço. Na visão desse comentador, a mudança de uma fase à outra não se dá através de uma evolução, mas por meio de uma ruptura. Fischer distingue três etapas no pensamento kantiano, nitidamente circunscritas, denominando-as: racionalismo-dogmático, empirismo-cético e criticismo. Entre 1747 e 1760, Kant trabalha sob a influência do sistema leibniz-wolffiano. Na década de 60 toma contato com o empirismo inglês e se deixa influenciar pela crítica de Hume à metafísica. Na década de 70 aparece a primeira exposição do criticismo. Assim, Kuno Fischer, ao interpretar a trajetória intelectual de Kant à luz do pensamento de Hegel, estabelece o racionalismo leibniz-wolffiano como a tese kantiana, o empirismo cético de cunho humeano como a antítese e a união do racionalismo e do empirismo no criticismo como a síntese. No entanto, acreditamos que a clarificação frente à questão da relação entre a alma e o corpo vem sendo preparada ao longo do processo de desenvolvimento do pensamento kantiano. Nos escritos de 1747 a 1766 há uma dinâmica interna sob a forma de evolução quanto à questão do comércio psicofísico. Em seu primeiro escrito, datado de 1747, Kant tenta explicar a questão acima citada, no entanto tal tentativa de explicações deu lugar a inúmeros problemas, porque a prova da relação entre a alma e o corpo era decorrente da tese de que a manifestação do modo de ação externa das substâncias era o movimento, porém Kant acha por bem, então, não determinar em que consistia o estado externo das substâncias imateriais, deixando isso, portanto, na obscuridade e não resolvendo a questão do comércio psicofísico, mas, pelo contrário, trazendo-lhes mais dificuldades. Na Monadologia Física, escrito de 1756, Kant afirma que o modo elementar da

ação externa é a impenetrabilidade. Isto faz com que aconteça uma separação necessária da alma do corpo, porque se atribui à alma a característica da impenetrabilidade, nega-se o seu caráter imaterial e, caso se recuse tal característica, torna-se inexplicável a possibilidade do comércio psicofísico. Em 1755, na História Geral da Natureza e Teoria do Céu, Kant objetivava evidenciar através da experiência, a relação entre a alma e o corpo. Para isso basta observar que o esforço mental tem uma relação imediata com o cansaço físico. Dessa forma, a alma e o corpo se encontram em ação recíproca real. Sendo a corporalidade a causa das imperfeições e limitações do homem. Na Nova Dilucidatio, escrito de 1755, Kant desenvolve a tese contida na História Geral da Natureza e Teoria do Céu de que a ação recíproca entre as substâncias não se funda na essência delas, e sim, em um princípio exterior. Dessa forma, o espírito em 1755 era tratado com as mesmas categorias do mundo físico. Em 1764, nas Investigações sobre a Evidência da Teologia Natural e Moral, Kant descarta qualquer possibilidade da alma ser uma substância extensa ou ser o produto delas. Ele aceita a caracterização da alma como substância simples derivada da unidade da apercepção e afirma a não-compreensibilidade de como uma substância pode estar em um espaço sem ocupá-lo. Essa é, também, a conclusão que Kant chega nos Träume (1766). Dessa investigação decorre uma nova concepção para a metafísica: ela passa a ser a ciência dos limites da razão humana. O centro teórico do pensamento kantiano agora são os problemas fundamentais da Ética. A missão da filosofia é a de circunscrever a órbita do destino moral e necessário do homem.


  1. O problema do comércio psicofísico na filosofia alemã do seculo XVIII


    1. A posição de Wolff


      Wolff faz uma releitura da filosofia de Leibniz e, com a intenção de elaborar um "corpus" filosófico sistemático, modifica alguns de seus pontos centrais. Abandona a tese da representação como estado interno da mônada, porque ele acredita que, embora os elementos materiais sejam pontos metafísicos, estes

      não possuem uma força representativa. Reduz, ainda, o princípio de razão suficiente ao princípio de contradição. Finalmente, quanto à tese da harmonia preestabelecida, prefere fornecer-lhe apenas o caráter de uma hipótese provável. Entre 1720 e 1724, parecia que a tese da harmonia preestabelecida, sob a forma wolffiana, iria se impor nos círculos acadêmicos; porém, em 1724, a situação muda e a teoria do influxo físico se impõe. Nesta teoria, em termos gerais, é afirmado que os entes corpóreos relacionam-se com outra classe de seres que são os espíritos e encontram-se influenciados por eles. O motivo pelo qual a teoria do influxo físico se impôs foi a oposição do pietismo à harmonia preestabelecida, que considerava a alma como uma máquina, com suas representações e volições dando-se de forma previsível como os movimentos mecânicos. Segundo as convicções pietistas, a tese da harmonia preestabelecida conduz ao fatalismo, porque ao considerar o curso da vida como previamente fixado, nega a liberdade.


    2. Tese de Knutzen sobre o Comércio Psicofísico


      As idéias desenvolvidas por Knutzen têm como proposta uma fundamentação da tese do comércio psicofísico e um ataque à harmonia preestabelecida wolffiana. Ele pretende demonstrar como, a partir da teoria monadológica de Leibniz, se pode derivar a teoria do influxo físico. Knutzen propõe uma teoria monadológica da matéria na qual concede às mônadas a capacidade de representação como modo de sua atividade interna. O espaço é então considerado como produto da ação real entre elas. A explicação de como ocorre o comércio psicofísico reduz-se a elucidar como é possível uma ação das mônadas entre si. A relação entre a alma e o corpo encontra-se fundamentada na possibilidade de ação recíproca dos objetos em geral. Knutzen atribui ao movimento e à representação uma origem comum.


    3. A posição de Crusius


      Crusius afirma a imaterialidade da alma. Ele diz que a alma deve encontrar-se em contato com o corpo, em ação recíproca real, embora sejam substâncias heterogêneas. A explicação de como isto é possível ocorre tomando como base o

      conceito de existência. Este compreende as ideias de espaço e de tempo. O espaço e o tempo permanecem, mesmo se as substâncias que estão neles forem eliminadas. A alma e o corpo estão no espaço e no tempo. Todavia, apesar de terem isto em comum, diferem porque a alma tem a capacidade de pensamento e o corpo, por sua vez, tem a capacidade de movimento. Ocupar um espaço é ter a característica da impenetrabilidade. Ser impenetrável é ter a capacidade de exercer e sofrer forças. A alma humana, embora imaterial, também possui a característica de impenetrabilidade. Ela é capaz de efetuar ações reais com os corpos.


    4. A posição de Mendelssohn


      Para Mendelssohn é possível provar, de forma racional, que a alma é uma substância espiritual diferente do corpo. Como a alma tem a capacidade de desenvolver pensamentos, ela só pode ser uma substância simples, pois pensar é reunir o múltiplo em um uno. Os corpos, ao contrário disto, são infinitamente divisíveis. Logo, a característica da simplicidade não pode ser encontrada neles. Sendo assim, a heterogeneidade da alma e do corpo torna incompreensível o comércio psicofísico. No entanto, esta incompreensibilidade não significa impossibilidade. O que é impossível, para Mendelssohn, é apontar um lugar para a alma no corpo.


    5. A posição de Baumgarten


      Baumgarten explica a relação entre a alma e o corpo através da tese da harmonia preestabelecida. Para ele a realidade se compõe de mônadas simples, inextensas, que possuem a capacidade de representação. A relação entre a alma e o corpo é um caso de relações entre substâncias em geral. A alma, devido à sua simplicidade, é incorruptível. A incorruptibilidade é prova da existência de uma vida futura, isto é, da continuidade de uma pessoa, dando-se através da memória e significando, mesmo com a morte, a capacidade do homem adquirir novas representações, sendo estas mais claras e distintas, ocorrendo, assim, um aumento da racionalidade. O homem não é o único espírito finito. Existem outros tipos, como as plantas e os a animais, cuja característica comum é

      encontrarem-se vinculados entre si, constituindo um reino denominado pneumático e moral.


    6. A posição de Euler


    Euler afirma que os seres materiais relacionam-se com outra classe de seres que são os espíritos. Nas Cartas a uma Princesa Alemã, Euler pergunta se a matéria tem a capacidade de pensar, afirmando, logo após, que ela é inerte. Os entes corpóreos não se modificam por si mesmos. Eles, através da inércia, somente se opõem às forças externas. O pensar é diferente da força de inércia. Logo, nenhum corpo é por si mesmo, dotado de pensamento. O que diferencia o espírito do corpo é a capacidade de mudar por si mesmo e a simplicidade. O corpo é composto, tendo como características a impenetrabilidade e a inércia. O espírito, por sua vez, é simples e tem a liberdade como essência. A liberdade é uma atividade intrínseca que influencia o movimento dos corpos. Estes seres que têm a liberdade como princípio são os seres imateriais, dividindo-se em espíritos e almas. À alma corresponde um só corpo. Ela não tem o poder de controle sobre ele, somente controla as últimas extremidades dos nervos, os quais se reúnem em uma parte desconhecida do cérebro. Euler explicita como se produz a visão na alma, afirmando que o objeto contemplado pelo espírito não é diretamente a imagem captada pelo olho, nem aquela refratada através dele e distribuída na superfície da retina. Esta imagem somente excita as últimas extremidades das terminações nervosas que se encontram no fundo ocular e, através do nervo óptico, transmitem sinais ao cérebro, que é o lugar em que a alma obtém a percepção. Esta é a prova de que a alma é uma espécie de espírito, porque o corpo não pode, por si só, ter ideias nem efetuar reflexos. Ele só fornece sensações simples. O Ser Supremo estabelece a união entre a alma e o corpo e fornece ao corpo a capacidade de pensar. O pensamento advém de Deus e não do corpo. Contudo, a maneira como ocorre esta união é algo inexplicável. A alma reside no corpo, porém, não tem sentido perguntar pelo lugar específico em que ela se localiza. Que a alma se encontra no corpo é algo evidente. Ela atua nele, mas não se identifica com ele, nem se situa em um ponto determinado. A propriedade essencial do espírito é a liberdade. Ela é o seu atributo mais elevado. A gênese sensorial das representações é a causa que impede considerar

    o pensamento como o atributo mais elevado do espírito. A liberdade encontra-se em um patamar superior ao pensamento. Ela nasce da reflexão da alma sobre sua própria atividade. Liberdade e sentimento de liberdade encontram-se profundamente vinculados, tornando-se inseparáveis. A liberdade possibilita uma intuição pura, isto é, uma reflexão da alma sobre sua própria atividade, na qual sujeito e objeto formam uma unidade. O homem, como espírito finito, encontra-se composto de alma e corpo. Pela relação necessária do homem com o mundo físico, a liberdade não se dá plenamente. Mas ela é a prova de evidência da existência dos espíritos, embora Euler afirme nada saber sobre esta existência.


  2. O desenvolvimento do problema do comércio psicofísico nas obras de Kant (1747-1766)


  1. Pensamentos sobre a Verdadeira Estimação das Forças Vivas


    No primeiro capítulo do Pensamentos Sobre a Verdadeira Estimação das Forças Vivas, Kant começa afirmando que cada corpo tem uma força essencial, que Leibniz chama de "força ativa". Porém, esta noção leibniziana foi modificada nos sistemas metafísicos subsequentes que denominam a mesma como força motriz, acreditando-se, assim, que o corpo só produz movimentos. Esta ideia, segundo Kant, é errônea. O movimento é o fenômeno externo de um corpo que se esforça por atuar. Todavia, esse corpo atua, também, quando perde sua atividade por causa de um obstáculo e fica em estado de repouso. Por este motivo, a força fundamental de um corpo é "vis activam", não "vis motricem", sendo o movimento um derivado da força ativa. Através dela, as mônadas efetuam ações recíprocas, das quais resulta o espaço e, através dele, a possibilidade do movimento. Partindo dessa concepção, Kant indaga-se como a alma pode atuar sobre outros seres e produzir mudanças. E ele responde: ela atua fora de si e produz mudanças, porque a "vis activam" a possibilita, significando isto que as substâncias encontram-se em interações recíprocas reais. A pergunta sobre como é possível que a matéria, que só causa movimentos, possa imprimir na alma representações e imagens, também não

    encontra dificuldades. Isto ocorre porque as substâncias materiais, quando estão em ação recíproca, atuam sobre tudo o que se relaciona com elas no espaço e, como a alma ocupa um lugar, as substâncias materiais atuam nela, modificando o seu estado interno, isto é, suas representações e seus conceitos. Kant, então, pergunta-se como é possível que a matéria, que somente produz movimentos, tenha uma força que engendra ideias e representações e, por outra parte, como a alma pode por a matéria em movimento. As dificuldades, segundo ele, desaparecem quando se enfatiza a ação das partes elementares da matéria relacionando-as a outras substâncias. Na medida em que a alma se relaciona com o exterior, seu estado interno é modificado pela ação das partes elementares da matéria, resultando disto a percepção. Uma substância pode ou não se relacionar com outra substância desenvolvendo uma ação exterior, pois, por conterem dentro de si a fonte de suas determinações, não precisam, necessariamente, se relacionar com outras substâncias para garantirem sua existência. No entanto, em tal caso, não podemos dizer que esta substância se encontra no espaço. Ser espacial é encontrar-se em ações recíprocas com outras substâncias. Logo, assim como a alma ocupa um lugar, deriva-se daí a prova do comércio psicofísico. Nota-se que Kant aborda a questão das forças metafisicamente, isto é, busca aplicar este conceito a todos os corpos em geral, e

    - serve-se disto para estabelecer as condições de possibilidade de todos os tipos de interações, inclusive aquelas entre os corpos e substâncias não corpóreas. A consideração metafísica da força permite uma maior compreensão da natureza e de toda realidade. Kant, com sua doutrina da "vis activam", acredita encontrar o caminho para explicar a ação entre as substâncias e, sobretudo, entre o corpo e a alma.


  2. Nova Dilucidatio - 1755


    Na seção III da Nova Dilucidatio, Kant se preocupa com os princípios de sucessão e de coexistência, afirmando uma concepção de movimento derivada das relações entre as substâncias. Ele afirma que as mudanças dos estados internos das mônadas são decorrentes da existência de uma ação externa real. As substâncias têm que se submeter às ações externas para terem mudanças de estado. Por conseguinte, da mudança dos estados internos da mônada deriva-se

    a realidade do comércio psicofísico. Todo espírito que apresenta alterações internas tem que estar unido a um corpo. A dependência das mudanças dos estados internos às ações externas implica que é colocado um papel importante no dado sensível para o conhecimento. Em suma, Kant afirma, nos princípios de sucessão e de coexistência, que as mudanças são possíveis por causa da relação e da dependência mútua das mônadas. Como as mudanças existem e são reais, estas relações e esta dependência mútua existem e são reais também. Elas são harmoniosas e têm como fundamento um princípio comum, que é Deus.


  3. História Geral e Teoria do Céu - 1755


    Nesta obra de 1755, Kant aborda o tema do comércio psicofísico diferentemente do escrito sobre as "forças vivas". Ele não se preocupa em explicar como ocorre a relação entre a alma e o corpo, porque já fez isto anteriormente. O centro de inte¬resse kantiano, neste momento, é evidenciar o comércio psicofísico na experiência, afirmando que a ação recíproca entre a alma e o corpo manifesta-se nela. Para cumprir isto, basta observar que, diminuindo as forças corporais, diminuem-se as capacidades intelectuais. Se existe no homem uma estreita relação entre a alma e o corpo, daí se supõe que algo semelhante ocorre com todo ser espiritual encarnado e, em consequência, surge a possibilidade de conhecer estes seres espirituais a partir da matéria à qual estão unidos. Como a matéria que compõe os planetas tem variações conforme estes se encontram mais perto ou mais distante do sol, seria razoável supor que há uma hierarquia nos espíritos e aqueles habitantes que se encontram mais distantes do sol têm uma constituição mais perfeita do que os outros que se encontram mais próximos dele. Essas considerações anteriores oferecem a Kant a possibilidade de esboçar uma prova da imortalidade da alma. Ele afirma que todas as potencialidades do homem estão vinculadas a um corpo, sendo esta a causa de suas imperfeições morais e intelectuais. É a necessidade de dissolver a contradição que há entre o corpo e a alma que torna necessário o pensamento da imortalidade e, por causa disto, o da imaterialidade.

  4. Monadologia Física - 1756


    No seu escrito de 1756 Kant trata da sua teoria da matéria ou, mais precisamente, das mônadas, definindo-as como unidades que compõem os corpos e fazendo uma síntese das teses de Newton e Leibniz em relação à questão do espaço. Afirma ele que, para acontecer um estudo frutífero das coisas naturais, deve haver uma síntese entre a metafísica e a geometria. Nesta síntese a metafísica e a geometria fornecem um caráter necessário e universal aos conhecimentos alcançados pela via experimental. Essa justificativa tem subjacente a conciliação da demonstração newtoniana da infinita divisibilidade do espaço com a afirmação leibniziana da composição do mesmo por substâncias simples. Kant aceita a divisibilidade do espaço e aceita, também, que no espaço, compondo-o, existem elementos que são indivisíveis. Na primeira seção do escrito de 1756, Kant define a mônada como uma substância simples, afirmando que todos os corpos são compostos de partes primitivas, absolutamente simples, isto é, de mônadas . Logo após, Kant afirma que o espaço ocupado por um corpo é infinitamente divisível. Como pode, então, o espaço ser divisível, se ele é composto por elementos simples? Refletindo sobre esta afirmação, aparece uma suposta contradição. Porém Kant explica que os elementos simples da matéria, mesmo unidos a vários outros, nunca constituirão um corpo. Então, a mônada mesmo unida a várias mônadas, nunca constituirá o espaço. O que ocorre é que o espaço não tem substancialidade. Ele é um aspecto fenomênico da interação das mônadas. A mônada, em si mesma, é inextensa. Ela só constitui o espaço através de suas relações externas, por meio de uma força que manifesta a sua presença. Esta força chama-se impenetrabilidade, e, só através dela, os elementos simples podem ocupar um lugar. Há aqui uma relação da presença e da força, onde, por estar em algum lugar, o elemento só pode, para isto, possuir a força da impenetrabilidade. O conceito de força é considerado, no escrito de 1756, como algo que se origina das mônadas, isto é, nasce com elas. Em suma, Kant diz que o modo de ação externa das mônadas é a impenetrabilidade. A matéria é composta de elementos simples, no espaço divisível.

  5. Investigações sobre a Evidência dos Princípios da Teologia Natural e da Moral - 1764


No escrito intitulado Investigações Sobre a Evidência dos Princípios da Teologia Natural e da Moral, na segunda consideração, Kant coloca a seguinte proposição: todos os corpos devem ser constituídos de substâncias simples. Esta proposição é, por si só, evidente. Um corpo é composto de um número determinado de partes simples e no espaço ocupado por ele há um número igual de partes compostas. Cada parte simples ocupa um espaço. Um espaço é ocupado quando a uma coisa se opõe outra por impenetrabilidade. Os corpos ocupam o espaço, porque possuem tal propriedade. Esta é uma força que pertence aos elementos simples dos corpos e manifesta uma ação oposta à outra força exterior. Os elementos simples dos corpos ocupam o espaço pelo fato de possuírem a característica da impenetrabilidade. Kant, então, se pergunta como os elementos primitivos sendo inextensos ocupam um espaço. Ele responde que a coisa é extensa quando ocupa um espaço independentemente da existência de outras coisas. Isso não ocorre nos elementos simples, por este motivo, ele não pode ser extenso. Mas sendo a impenetrabilidade a causa do elemento ocupar um espaço, há, então, no elemento simples, uma multiplicidade na sua ação exterior, sem haver esta multiplicidade nas suas partes internas. Daí resulta poder-se afirmar que o elemento não é extenso, porém ocupa um lugar. Em suma, nota-se que nas Investigações Sobre os Princípios da Teologia Natural e da Moral, Kant continua com a sua teoria da matéria exposta na Monadologia Física. Quanto à questão da alma, vê-se no segundo parágrafo, da consideração III deste escrito, que Kant concorda com a demonstração feita pelos filósofos sobre o caráter imaterial da mesma. Porém, o que convém descartar, é que ela tenha uma natureza material, que ela seja uma substância igual aos elementos simples da matéria, que ela exista no espaço por causa da impenetrabilidade e que ela constitua com outras coisas algo extenso e com massa. Segundo Kant, caso ocorresse esta demonstração, tornaria claro como é incompreensível a forma de um espírito estar presente no espaço.

Considerações finais


As doutrinas de Crusius e Knutzen, por exemplo, influenciaram Kant diretamente. A obra de Knutzen constitui o ponto de partida para a psicologia racional kantiana em 1747. Em sua primeira obra, Kant defende o comércio psicofísico a partir de uma teoria monadológica da matéria. Porém a base teórica de Knutzen, aquela que afirma uma origem comum para o movimento e a representação, é algo descartado por Kant. Crusius influencia-o, porque foi o primeiro filósofo alemão a tentar explicar "como" ocorre o comércio psicofísico, afirmando que embora as substâncias sejam diferentes, pode-se atribuí-las o mesmo modo de ação externa. Baumgarten consta neste trabalho por ser ele o autor do tratado de metafísica, livro que Kant empregava em suas aulas. Citou- se Mendelssohn pelo fato de que suas doutrinas são as mais aceitas na época dos Träume. Esse também foi citado, porque Kant escreve-lhe uma carta contando quais foram seus objetivos ao redigir os Träume. Por fim, mencionou-se Euler. Ele escreve as Cartas a uma Princesa Alemã em 1768, tendo esta obra grande semelhança com os Träume, o que sugere haver certa influência de Kant sobre o mesmo. Quanto aos textos de Kant podemos afirmar que no desenvolvimento da psicologia racional kantiana é possível diferenciar três períodos. O primeiro período encontra-se em 1747 e 1755. Nos Pensamentos Sobre a Verdadeira Estimação das Forças Vivas, escrito de 1747, Kant explica como ocorre a relação entre a alma e o corpo, sustentando a tese de que a "vis activam" a possibilita. Em 1755, na História Geral e Teoria do Céu, Kant aborda o problema do comércio psicofísico sob uma forma diferente do escrito de 1747. Em 1747, ele tenta demonstrar a tese do comércio psicofísico. Na História Geral e Teoria do Céu, ele preocupa-se em evidenciar pela experiência que a alma e o corpo se encontram em ação recíproca real. O segundo período compreende os escritos a partir de 1755 até 1762. Pode-se considerá-lo como uma etapa de transição no pensamento kantiano, porque nas obras desta época há retificações em relação à teoria do comércio psicofísico. Na Nova Dilucidatio, Kant desenvolve a tese de que a possibilidade de uma ação recíproca entre as substâncias deriva de um princípio comum especial, que é Deus. Na Monadologia Física, pela primeira vez, ele define no que consiste o estado externo das mônadas, que é a

impenetrabilidade. Com esta consideração há uma exigência, que é a existência da alma separada do corpo.

O terceiro período começa a partir de 1764. Nele ocorre a dissolução da teoria do comércio psicofísico de 1747. Kant reconhece a impossibilidade de demonstrar a tese relação entre a alma e o corpo. Ele declara que não pode conciliar a tese da imaterialidade com a do comércio psicofísico. Nas Investigações Sobre a Evidência dos Princípios da Teologia Natural e da Moral, Kant continua com a teoria da matéria vista na Monadologia Física, aceita a caracterização da alma como substância simples derivada da unidade da apercepção e critica as provas dos racionalistas sobre a imaterialidade da alma. Nos Träume Kant não apresenta nenhuma tese nova frente à questão do comércio psicofísico. Tudo o que ele expõe aqui tem como fundamento os seus trabalhos anteriores. A dissolução da psicologia racional vista nos Träume vem preparada ao longo do desenvolvimento do pensamento kantiano. Desde 1747 a 1766, embora havendo algumas modificações no sentido de Kant corrigir e aprofundar determinados aspectos de sua tese sobre o comércio psicofísico, o pensamento kantiano encontra-se em continuidade. Tem-se que interpretar tal desenvolvimento, tomando como base os problemas tratados por Kant, suas soluções, e estas, por sua vez, ocasionando novas perguntas e, assim, sucessivamente. A evolução do pensamento kantiano é caracterizada pela paulatina clarificação dos problemas. Já em seu primeiro trabalho no ano de 1747, Kant se interessava pelo problema do comércio psicofísico, tentando solucioná-lo. Este, em realidade, implicava duas questões: a demonstração de sua realidade e a explicação de sua possibilidade. Em 1747, ambos formavam um núcleo comum. A não explicação da possibilidade do comércio psicofísico ocasionaria a sua indemonstrabilidade. Kant encontrava dificuldades frente a esta problemática. Era difícil tentar explicar como substâncias tão heterogêneas poderiam relacionar-se entre si. Sua resposta sobre o que possibilitava isto, a "vis activan", não satisfazia. No escrito de 1756, ele afirma que a força que faz com que um elemento esteja em lugar chama-se impenetrabilidade. Porém, isto no lugar de solucionar o problema, acarretou mais dificuldades, porque Kant acreditava no caráter imaterial da alma. Em 1764, ele afirma, então, a incompreensibilidade de um espírito estar no espaço. Nos Träume, ele mantém a concepção monadológica da matéria, afirma a incompreensibilidade da

presença de um espírito no espaço como, também, a indemonstrabilidade do comércio psicofísico. Em suma, nos Träume (1766), Kant não coloca nenhuma tese nova sobre o problema da relação entre a alma e o corpo. O que ele faz é alcançar a clarificação sobre este problema o qual já vem sendo esboçado desde seu primeiro escrito em 1747.


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