https://doi.org/10.34024/prometeica.2023.28.15457
PAZ, JUSTIÇA E INSTITUIÇÕES EFICAZES (ODS 16)
DESAFIOS E ENFRENTAMENTOS DA ASSOCIAÇÃO LIBERDADES POÉTICAS PARA REMIÇÃO DE PENA POR LEITURA NO SISTEMA CARCERÁRIO PAULISTA
PEACE, JUSTICE, AND EFFECTIVE INSTITUTIONS (SDG 16)
Challenges and confrontations of Associação Liberdades Poéticas for sentence remission through reading in the São Paulo prison system
PAZ, JUSTICIA E INSTITUCIONES EFECTIVAS (ODS 16)
Desafíos y enfrentamientos de la Associação Libertades Poéticas para la remisión de pena por lectura en el sistema penitenciario paulista
(Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista, Brasil)
(Must University/Escola de Propaganda e Marketing, Brasil)
Recibido: 31/07/2023
Aprobado: 12/09/2023
RESUMO
O artigo que ora apresentamos problematiza a formação e os enfrentamentos da Associação Liberdades Poéticas para atender ao Objetivo Número 16 da ONU, “Paz, Justiça e Instituições Eficazes”. Trata-se de um grupo de voluntários, composto por pessoas de diferentes sexualidades, formações acadêmicas, atuações profissionais e faixas etárias, criado em 2020 durante a pandemia, que tem como premissa reconhecer a prática da leitura como um Direito Humano, indispensável à humanização e à transformação dos sujeitos. Atuamos com remição de pena por leitura no sistema prisional paulista, que confere, às pessoas privadas de liberdade, quatro dias de redução na sentença para cada obra lida, em um limite de dez títulos/ano. Nossa fundamentação teórica sustenta-se em Antonio Candido, em Lynn Hunt, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na Constituição Federal, entre outros. Concluímos que, apesar da orientação geral da ONU e dos esforços do governo federal com a publicação da Resolução 391/2021, do Conselho Nacional de Justiça, para flexibilizar a remição de pena por meio da leitura, agentes do sistema penitenciário no estado de São Paulo ainda operam sob uma lógica autoritária que não corresponde à do CNJ, tampouco à ODS 16.
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Palavras-chave: ODS 16. direitos humanos. remição de pena por leitura.
ABSTRACT
The article we present now problematizes the formation and confrontations of the Associação Liberdades Poéticas in fulfilling UN Sustainable Development Goal 16, "Peace, Justice, and Strong Institutions". This is a group of volunteers, composed of individuals with diverse sexualities, academic backgrounds, professional experiences, and age ranges, created in 2020 during the pandemic. Their premise is to recognize reading as a Human Right, essential for the humanization and transformation of individuals. We work with sentence remission through reading in the prison system of São Paulo, which grants inmates a reduction of four days in their sentence for each book read, up to a limit of ten titles per year. Our theoretical foundation is supported by authors such as Antonio Candido, Lynn Hunt, the National Council of Justice (CNJ), the Federal Constitution, among others. We conclude that despite the general guidance of the United Nations (UN) and the efforts of the federal government with the publication of Resolution 391/2021 from the National Council of Justice (CNJ) to facilitate sentence remission through reading, agents of the prison system in the state of São Paulo still operate under an authoritarian logic that does not align with that of the CNJ, nor with Sustainable Development Goal 16 (ODS16).
Keywords: SDG 16. human rights. sentence remission through reading.
RESUMEN
El artículo que presentamos ahora problematiza la formación y los enfrentamientos de la Liberdades Poéticas para cumplir con el Objetivo Número 16 de la ONU, "Paz, Justicia e Instituciones Eficaces". Se trata de un grupo de voluntarios, compuesto por personas de diferentes sexualidades, formaciones académicas, trayectorias profesionales y edades, creado en 2020 durante la pandemia, que tiene como premisa reconocer la práctica de la lectura como un Derecho Humano indispensable para la humanización y transformación de los sujetos. Trabajamos con la remisión de pena por lectura en el sistema penitenciario de São Paulo, que otorga a las personas privadas de libertad una reducción de cuatro días en su sentencia por cada obra leída, con un límite de diez títulos al año. Nuestra fundamentación teórica se sustenta en Antonio Candido, Lynn Hunt, el Consejo Nacional de Justicia (CNJ), la Constitución Federal, entre otros. Concluimos que, a pesar de la orientación general de la ONU y los esfuerzos del gobierno federal con la publicación de la Resolución 391/2021 del CNJ para flexibilizar la remisión de pena a través de la lectura, los agentes del sistema penitenciario en el estado de São Paulo todavía operan bajo una lógica autoritaria que no corresponde ni al CNJ ni al ODS 16.
Palabras clave: ODS 16. derechos humanos. remisión de pena por lectura.
Desde 1989 até a contemporaneidade, o ensaio “Direitos Humanos e Literatura”, de Antonio Candido, tornou-se referência não só para os estudantes de Letras, mas para todos os interessados em compreender as relações entre os Direitos Humanos e as artes em geral, uma vez que “não há povo e não há homem que possam viver sem . . . a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação” (1989, p. 112). Tratava-se, à época, de um pensamento quase subversivo, uma vez que a ditadura civil-militar brasileira, encerrada poucos anos antes, perseguiu de forma violenta, em seus 21 anos de vigência (1964– 1985), quem manifestasse apoio aos pobres, aos oprimidos, aos que discordassem ou criticassem o ideário autoritário. Escritores, artistas, intelectuais, religiosos, políticos, estudantes, entre outros, eram aprisionados, mortos por tortura, censurados, exilados, destituídos de seus direitos políticos. Por isso, a proposta do crítico literário de dar acesso a “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura [ênfase adicionada], desde o que
chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações” (Candido, 1989, p. 112) passou a configurar um pensamento democratizante e humanizador. Tão fundamental quanto alimento ou moradia, a cultura classifica-se como um “bem incompressível”, sem a qual é impossível sobreviver (1989, p. 111).
Mesmo passadas tantas décadas desde seu lançamento, esse texto nunca perdeu a atualidade, o que faz dele um clássico. A cada releitura, valorizamos uma ou mais passagens, que antes nos passaram de forma menos ou mais desapercebidas. O contexto é outro, e nos modificamos continuamente enquanto leitores e sujeitos do mundo. Se antes havia controle das liberdades individuais e de expressão, nos tempos atuais, apesar do alto progresso industrial e tecnológico, em plena vigência do terceiro mandato do presidente Lula (2023–2026), ainda há muita injustiça e exclusão social. Por isso, permanece tão presente a premissa do crítico literário de que a literatura é “um direito das pessoas de qualquer sociedade” (Candido, 1989, p. 116) e de que, por meio dela, ocorre humanização:
. . . o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do amor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (1989, p. 117).
Lynn Hunt, escritora e historiadora estadunidense, em seu capítulo “Lendo romances e imaginando igualdade” atribui outra característica da literatura, especialmente dos romances do século XVIII: a divulgação e compreensão da empatia:
além de fronteiras sociais tradicionais entre os nobres e os plebeus, os senhores e os criados, os homens e as mulheres, talvez até entre os adultos e as crianças. Em consequência, passavam a ver os outros – indivíduos que não conheciam pessoalmente – como seus semelhantes, tendo os mesmos tipos de emoções internas. Sem esse processo de aprendizado, a ‘igualdade’ talvez não tivesse um significado profundo e, em particular, nenhuma consequência política (2009, pp. 39-40).
Para essa pesquisadora, os romances epistolares, juntamente com outras manifestações de arte, contribuíram para que a noção de Direitos Humanos começasse a se desenvolver. Tanto ela como Candido, agora colocados em diálogo, reiteram, cada um a seu modo, em seu tempo e em seu contexto, que a literatura é altamente pedagógica e “instrumento consciente de desmascaramento pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual” (Candido, 1989, p. 122).
Até agora, expusemos ideias segundo as quais seres humanos são tidos e havidos como merecedores da fruição e da humanização que a literatura promove. Afinal, é disso que trata o artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:
Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor. (Unicef, 2023).
Os 17 Objetivos Sustentáveis da ONU (2015-2030), por sua vez, podem ser lidos como uma versão atualizada e pragmática da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Enquanto esta buscava garantir quase exclusivamente a paz entre os povos e a igualdade entre os seres humanos, aqueles apelam globalmente “para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade” (Idis/Caf, 2023).
Ambos os documentos não apontam explicitamente assimetrias entre as nações, tampouco as disputas travadas, globalmente, em torno de questões econômicas, políticas, sociais e culturais. No entanto, a mera existência deles já indica a necessidade de políticas públicas que garantam condições de vida para as gerações atuais e as seguintes. Nossa pergunta-problema, como lidar com injustiças quando pensamos
não mais nas vítimas, mas nos algozes, parte da propositura desses dois textos da ONU e da provocação de Lynn: “Temos de imaginar o que fazer com os torturadores e os assassinos, como prevenir o seu surgimento no futuro sem deixar de reconhecer, o tempo todo, que eles são nós. Não podemos nem tolerá-los, nem desumanizá-los” (2009, p. 215).
Em outras palavras: a separação entre nós e o Outro é efêmera e frágil, especialmente em países em que apenas a minoria da população tem acesso a “bens incompressíveis”, ou retomando Candido, onde “nossos direitos são mais urgentes que o do próximo” (1989, p. 110). As seções que passaremos a desenvolver na sequência tentam responder, ainda que de forma parcial e provisória, a esse questionamento. Traremos a situação em que se encontra o sistema penitenciário no Brasil, os antecedentes, os desafios e os resultados das atividades de remição de pena por leitura pela Associação Liberdades Poéticas com pessoas privadas de liberdade no estado de São Paulo. Para o senso comum, esse grupo social deveria ser cada vez mais invisibilizado e marginalizado, pois cometeram infrações e crimes variados, mas para os seus voluntários, trata-se de sujeitos de direitos que precisam ter assegurados seus direitos humanos e ser tratados com dignidade.
As unidades prisionais brasileiras abrigam indivíduos que, independentemente de seus delitos e respectivas penas, tornam-se, instantaneamente, estigmatizados assim que ultrapassam os portões em direção aos pavilhões. Excluídos de suas relações sociais, impedidos de construírem sua cidadania e vítimas da eliminação da memória, sofrem o que se chama de “morte social”. Além disso, experimentam um processo de “desculturação”, ou seja, “a aquisição de uma nova cultura, no caso uma cultura criminosa e estigmatizada” e consequente “perda ou destruição total do patrimônio cultural adquirido ao longo de sua vida, até então” (Soares & Freire, 2020, p. 159).
Ao ter de se sujeitar às novas circunstâncias, os apenados precisam se acomodar à nova realidade e reproduzir comportamentos que, naquele ambiente, são aceitáveis e tidos como “corretos, positivos ou necessários à preservação da vida e da integridade física ou psíquica” (Soares & Freire, 2020, p. 159).
A situação torna-se ainda mais grave quando nos deparamos com o clássico ocupante majoritário das unidades prisionais brasileiras: homens pretos, com baixa escolaridade e renda, famílias normalmente desestruturadas, dentre outras características estigmatizadoras. Loïc Wacquant não parece exagerar quando se refere às prisões menos como instituições judiciárias e mais como “campo de concentração para pobres” ou como
empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais . . . O sistema penitenciário brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do Terceiro Mundo, mas levadas a uma escala digna do Primeiro Mundo, por sua dimensão e pela indiferença estudada dos políticos e do público. Entupimento estarrecedor dos estabelecimentos, o que se traduz por condições de vida e de higiene abomináveis, caracterizadas pela falta de espaço, ar, luz e . . . negação de acesso à assistência jurídica e aos cuidados elementares de saúde
. . . violência pandêmica entre detentos, sob forma de maus tratos, extorsões, sovas, estupros e assassinatos, em razão da superlotação superacentuada, da ausência de separação entre as diversas categorias de criminosos, da inatividade forçada (embora a lei estipule que todos os prisioneiros devam participar de programas de educação ou de formação) e das carências da supervisão. (2001, p. 7).
A quase ausência de educação formal certamente figura como uma das principais características da população encarcerada. Basta recorrermos aos dados concretos apurados por Claudia Arantagy (2023, p. 54): 51,35% sequer concluiu o Ensino Fundamental, enquanto, entre pessoas livres, esse número gira em torno de 33%. Apoiada ainda nos dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0), que faz parte do Cadastro Nacional de presos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicados em 2018, essa autora revela, ainda, que fora das prisões 17% da população possui o ensino superior completo, mas nas unidades prisionais este número é praticamente inexistente: cai para 0,8%.
Dados atualizados em dezembro de 2022 pela Secretaria Nacional de Políticas Públicas, Senappen, informam que o Brasil conta com um total de 832.295 pessoas privadas de liberdade, das quais 30.871 são mulheres, 648.692 ocupam celas do sistema brasileiro (estadual e federal) e 186.603 estão em prisões domiciliares1. Mais do que conhecer esses números, importa saber o número de vagas no sistema para compreender as condições em que as pessoas custodiadas se encontram. Atualmente, cumprem pena, em celas estaduais e federais do sistema carcerário brasileiro, 648.692 pessoas para 477.056 mil vagas disponíveis no período de julho a dezembro de 2022, em 1.400 unidades prisionais. Evidencia-se, assim, o déficit de 171.636 vagas no sistema.
Figura 1 – Vagas no sistema penal – jul. a dez. 2022

Senappen. Recuperado de https://bit.ly/3KfAbsQ
Embora o Consultor Jurídico (Conjur), em boletim publicado em 10/7/20222, afirme que de 2020 a 2021 abriram-se 123 mil vagas novas, a tendência é o aumento do número de pessoas presas, já que o Brasil “sacrifica princípios fundamentais para encarcerar (e oferecer o mito de mais segurança), isto é, o isolamento e a neutralização do preso está acima de sua humanidade e de qualquer chance de recuperação” (Benaglia, 2022, p. 107).
Em publicação no jornal Nexo, em 22 de junho de 2023, Laura Coelho Palma, sustentada em dados extraídos do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020), resume bem a composição étnica da população privada de liberdade no Brasil:
Apesar da população negra representar 56% do povo brasileiro, 66,7% da população carcerária brasileira é negra. Nos últimos dez anos, a população negra encarcerada cresceu em 7%. Esse cenário indica que, além da privação de liberdade ser uma prática comum de punição no país, ela priva desigualmente as raças que compõem a sociedade brasileira. (Nexo, 23 jun. 2023).
Anderson Marzinhowsky Benaglia complementa esse quadro ao afirmar que a prisão “mostra-se também lugar dos pobres, já que o aprisionamento colabora, em alguma medida, com o sistema econômico” (2022, p. 102). Para esse autor, o neoliberalismo é forte agente para essa composição das populações
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1 Senappen, 2022. Telas 4. 10, 11, respectivamente. Recuperado de: https://bit.ly/473krCR
2 Recuperado de: https://www.conjur.com.br/2022-jul-10/populacao-carceraria-volta-aumentar-deficit-vagas-cai
encarceradas, uma vez que tal sistema econômico verticaliza as relações sociais, com raras oportunidades de ascensão econômica. Minhoto (2020, p. 167), por sua vez, afirma não duvidar de que, no Brasil, pratica-se o encarceramento em massa, uma vez que
se caracteriza, em primeiro lugar, pelos fatos brutos da abrangência da população prisional e da magnitude da taxa de encarceramento; em segundo lugar, pode-se dizer que o encarceramento se torna encarceramento em massa quando deixa de funcionar como mecanismo de aprisionamento do indivíduo transgressor e passa a operar como mecanismo de aprisionamento de estratos populacionais.
Sabemos que existe instabilidade no fornecimento de dados de pessoas emprisionadas que, por meio de políticas públicas, alcançam algum resultado que o promovam da situação em que se encontram. O próprio Ministério da Transparência (CGU – Corregedoria Geral da União) admite que o Departamento Penitenciário Prisional (Depen) “não realiza o monitoramento sistemático das políticas de promoção, por conta das fragilidades do sistema informatizado para acompanhamento de indicadores, pela ausência de definição precisa dos procedimentos de monitoramento nos normativos e pela ausência de políticas nacionais institucionalizadas em certos setores” (Brasil, 2018, p. 44).
Ainda assim, juristas e pesquisadores que se dedicam a compreender o sistema penitenciário brasileiro são unânimes quanto à sua perversidade e às estratégias empregadas de silenciamento e apagamento dos custodiados. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 347, do Distrito Federal, em 2015, reconheceu que o sistema penitenciário nacional encontra-se em “estado de coisa inconstitucional”, isto é, que a instituição possui um “quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária” (Brasil, 2015).
Segundo a Constituição Federal vigente, “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre direito tributário, financeiro, penitenciário [ênfase adicionada], econômico e urbanístico . . .” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 24, I). Isso quer dizer que poderão legislar sobre a temática penitenciária, em primeiro lugar, a União e, secundariamente, os estados.
Graças a essas características é que juristas afirmam que, no Brasil, existem “diversos sistemas penitenciários” (Neves & Silva, 2020, p. 99). Enquanto a Lei de Execução Penal (LEP), editada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República em 1984, estabelece os parâmetros mínimos a serem observados no cárcere brasileiro, cada estado pode criar outras disposições que complementam e atendam às suas demandas e a seus orçamentos, desde que não haja conflito com o disposto pela União.
É nesse sentido, por exemplo, que o estado de São Paulo, para atuar em conjunto com seu Departamento dos Institutos Penais do Estado (Dipe), hoje sua Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), instituiu a “Fundação Estadual de Amparo ao Trabalhador Preso”, estabelecendo que
Artigo 3º - A Fundação terá por objeto contribuir para a recuperação social do preso e para a melhoria de suas condições de vida, através da elevação do nível de sanidade física e moral, do adestramento profissional e do oferecimento de oportunidade de trabalho remunerado, propondo-se, para tanto, a:
- concorrer para a melhoria do rendimento do trabalho executado pelos presos;
- oferecer ao preso novos tipos de trabalho, compatíveis com sua situação na prisão;
- proporcionar a formação profissional do preso, em atividades de desempenho viável, após a sua liberação;
- concorrer para a laborterapia, mediante a seleção vocacional e o aperfeiçoamento profissional do preso;
- colaborar com o Departamento dos Institutos Penais do Estado – DIPE, e com outras entidades, na solução de problemas de assistência médica, moral e material ao preso, à sua família, bem como à família da vítima do delito;
- concorrer para o aperfeiçoamento das técnicas de trabalho, com vistas à melhoria, qualitativa e quantitativa, da produção dos presídios, com a elaboração de planos especiais para as atividades industriais, agrícolas e artesanais, promovendo a comercialização do respectivo produto, com sentido empresarial;
- promover estudos e pesquisas relacionados com seus objetivos e sugerir, se for o caso, aos poderes públicos competentes, medidas necessárias ou convenientes para atingir suas finalidades;
- apoiar as entidades públicas ou privadas que promovam ou incentivam a formação ou aperfeiçoamento de pessoal penitenciário;
- desempenhar outros encargos que visem à consecução de seus fins. (Lei nº 1.238, 22 de dezembro de 1976).
A Fundação do estado passou a denominar-se “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel” em 1994 (Lei nº 8.643, 25 de março de 1994) e conta hoje com diversos programas que visam a atender às disposições de sua Lei Organizacional, isto é, mostra-se “focada na reintegração social da pessoa privada de liberdade, por meio do desenvolvimento de seu potencial como indivíduo e cidadão”, como se definem. Para isso, contam com programas de desenvolvimento humano e cultural; educação para o trabalho e cidadania, formação em nível superior no sistema prisional; incentivo à leitura – projeto Lendo a Liberdade; assistência jurídica suplementar; alocação de mão de obra; capacitação profissional; e escola de empreendedorismo em arte.
Apresentamos, a seguir, um organograma que demonstra as relações hierárquicas entre Estado e Funap:
Figura 2 – Parte do organograma da SAP

Benaglia, 2022, p. 137. Recuperado de: https://encurtador.com.br/vBPW8.
A Funap encontra-se posicionada antes mesmo do gabinete do secretário de estado, demonstrando autoridade e autonomia na propositura de atividades. Na sequência, encontram-se as coordenadorias regionais que administram as unidades prisionais e seus departamentos no estado de São Paulo.
É válido destacar que a competência legislativa concorrente entre estado e União se limita às questões administrativas do sistema penitenciário, uma vez que os direitos atribuídos ao público-alvo do sistema são disciplinados pelos Códigos Penal e Processual Penal, isto é, de forma privativa da União (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 22, I).
A exemplo disso, podemos citar a lei do estado de São Paulo nº 16.648, de 11 de janeiro de 2018, que buscava instituir “no âmbito dos estabelecimentos carcerários das comarcas do estado, a possibilidade de remição da pena pela leitura” (Lei nº 16.648, 11 de janeiro de 2018, preâmbulo).
Com isso, o estado acolhia, formalmente, a recomendação nº 44 do CNJ e passava a obrigar sua aplicabilidade nas penitenciárias de São Paulo, mas havia algumas limitações em seu texto, como, por exemplo, a necessária alfabetização dos presos para participarem das oficinas de leitura (Lei nº 16.648, 11 de janeiro de 2018, artigo 2º), bem como favoritismo religioso, ao determinar que a Bíblia poderia ser livro passível de remição de pena:
Sendo a Bíblia a obra literária escolhida, esta será dividida em 39 (trinta e nove) livros segundo o Velho Testamento e 27 (vinte e sete) livros integrantes do Novo Testamento, considerando-se assim a leitura de cada um destes livros como uma obra literária concluída. (Lei nº 16.648, 11 de janeiro de 2018, artigo 2º, parágrafo único).
Entretanto, como a remição de pena constitui um direito e benefício da pessoa presa, é matéria legislativa que apenas a União pode editar. Por essa razão, o procurador-geral de Justiça de São Paulo ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade em face da referida Lei estadual em 19 de agosto de 2019, gerando o processo número 2182765-41.2019.8.26.0000 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que julgou procedente a ação em 29/1/2020 (p. 282-304), anulando, assim, o dispositivo estadual da remição de pena pela leitura.
Dessa forma, observamos que a lei estadual vigorou por dois anos (entre janeiro de 2018 e 2020) e, nesse período, estariam os juízes vinculados em seu reconhecimento. Quando a lei foi anulada, a remição de pena pela leitura no estado de São Paulo voltou a ser regulada, a princípio, pela Recomendação do CNJ que, por apenas sugerir a forma de remição, não obrigava os juízes a aceitá-la, diferentemente de hoje, com a Resolução 391/2021, que possui maior aplicabilidade.
Assim, no estado de São Paulo, a Funap, por ser a instituição que se compromete com a gestão de todas as atividades de reintegração social no âmbito das prisões, editou portarias que visam a implementar a remição de pena por leitura, mas que, em certa medida, contrariam o disposto pelo CNJ e pelo Depen, órgãos nacionais, que possuem competência hierárquica superior à Funap, na adoção de formas de trabalho no Poder Judiciário e do sistema penitenciário. Vejamos.
Quanto à leitura livre (Portaria 72/00/2021), a Funap entende como aquela
realizada nas salas de leitura por meio do empréstimo de livros do acervo das Unidades Prisionais, sob a gestão de monitores de apoio (reeducandos) contratados pela FUNAP para a organização do acervo literário e o controle de empréstimos [ênfase adicionada] às pessoas privadas de liberdade, privilegia o fomento e o desenvolvimento do hábito da leitura para melhor formação pessoal, cultural, profissional e social dos reeducandos.
Mas prevê sua existência apenas
mediante adesão formal da direção das UP [Unidades Prisionais] ou dos HCTP [Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico], dos órgãos ou entidades em parceria, das pessoas voluntárias em atuar nas atividades, bem como das PPL [Pessoas Privadas de Liberdade] às ações vinculadas ao programa, conforme modelos estabelecidos pela FUNAP. (Portaria FUNAP nº 072/00/2021, 01 de outubro de 2021, artigo 4º, § 1º).
Ou seja, não havendo adesão da Unidade Prisional ao programa ofertado pela Funap, o direito de remição de pena pela leitura será negligenciado ao preso. Na hipótese de adesão ao programa, a Funap estipula as regras de sua realização, dissonantes daquelas estipuladas em âmbito nacional pelo CNJ.
A Funap ainda prevê que é “vedada a elaboração do RL [Relatório de Leitura] nos pavilhões habitacionais ou em ambientes sem a supervisão direta de servidores da administração penitenciária ou da Funap” (Portaria FUNAP nº 072/00/2021, 01 de outubro de 2021, artigo 4º, § 4º), ou seja, atribui expressamente a característica avaliativa do relatório, algo que o CNJ e o Depen condenam.
Vejamos o modelo de relatório de leitura estabelecido pela Funap:
Figura 3 – Relatório de Leitura proposto pela Funap

São Paulo, 2021, anexo 01 do documento
Identificamos, portanto, características que afrontam o disposto pelo CNJ, uma vez que equipara o relatório de validação a avaliações formais, ao pressupor a presença de um “aplicador”, que “deverá ler (em voz alta) as orientações abaixo ao leitor”, estabelecer o tempo de 60 minutos para sua elaboração (Portaria FUNAP nº 072/00/2021, 01 de outubro de 2021, anexo 01 do documento) e condicionar que todos escrevam seus textos nas linhas em branco, impedindo, assim, a participação de analfabetos ou mesmo de estrangeiros, que poderiam expressar a narrativa por meio do desenho, por exemplo, modalidade permitida pelo CNJ.
Ademais, o trabalho dos pareceristas é bastante complexo, uma vez que devem ser preenchidos dois formulários de validação da leitura: um, que contemple o solicitado pelo CNJ (Portaria FUNAP nº 072/00/2021, 01 de outubro de 2021, anexo 2 do documento), e um paralelo, que será enviado mensalmente à Funap para “tabulação e elaboração de estudos dobre o programa” (Portaria FUNAP nº 072/00/2021, 01 de outubro de 2021, artigo 8º, § 2º e anexo 3 do documento).
Esse segundo relatório de validação, nomeado pela Funap como “Relatório de Validação Qualitativa de Leitura”, estabelece que, além dos itens descritos pelo CNJ, quais sejam, estética textual, fidedignidade e clareza do texto, devem ser observados “parâmetros de validação qualitativa da leitura das obras empregadas no programa”, que serão contabilizados e, a partir da quantidade de parâmetros validados, terá um conceito atribuído pelo validador (Portaria FUNAP nº 072/00/2021, 01 de outubro de 2021, artigo 8º, § 2º).
Figura 4 – Formulário de validação qualitativa da leitura proposto pela Funap – página 01

São Paulo, 2021, anexo 03 do documento – página 01
Figura 5 – Formulário de validação qualitativa da leitura proposto pela Funap – página 02

São Paulo, 2021, anexo 03 do documento – página 02
Talvez esse segundo relatório tenha por finalidade tão somente alimentar o banco de dados da Funap ou facilitar, aos pareceristas, a aplicação dos critérios exigidos pelo CNJ para aprovação do relatório de leitura. Independentemente dessas alternativas, tal prática mostra-se irregular, pois o parecerista estará mais voltado para determinar se a leitura corresponde aos pontos que a classificam como “inapta”,” apta” ou “apta com louvor” do que validar se as obras lidas foram lidas na totalidade e compreendidas (Portaria FUNAP nº 072/00/2021, 01 de outubro de 2021, artigo 8º, § 3º).
A Lei de Execuções Penais 7.210 considera obrigatória a existência de bibliotecas nas prisões (Brasil, 1984), de modo a fomentar educação, leitura e escrita. O livro é a única mídia incentivada dentro do sistema carcerário, uma vez que televisores, rádios e jornais, embora autorizados, dependem da aquisição do preso, geralmente com a ajuda de familiares. Smartphones são proibidos, assim como computadores de uso pessoal e internet.
Apuramos que, em 2020, havia 148 bibliotecas prisionais fixas no estado de São Paulo, sendo que três encontravam-se em Hospitais de Custódia (por não haver cumprimento de pena nesses estabelecimentos, não há oferta de remição de pena). Existiam também bibliotecas itinerantes que operam em sete centros de detenção provisória na coordenadoria “Corevali” (Vale do Paraíba e Litoral) da SAP, que, embora não seja apresentada sua quantidade, consideramos o seu máximo, isto é, uma para cada unidade, conforme gráfico abaixo:

Benaglia (2022). Recuperado de: https://encurtador.com.br/vBPW8. Baseado nos dados de SÃO PAULO, 2020, questão 01
O gráfico acima aponta a presença de bibliotecas fixas em 83% dos 179 estabelecimentos prisionais do estado de São Paulo, enquanto 4% são itinerantes. Portanto, apenas 87% das unidades prisionais do estado têm bibliotecas, embora a LEP obrigue sua presença em todo o sistema prisional brasileiro.
Isso quer dizer que 11% das prisões paulistas estão sem qualquer fomento de acesso a livros, e sobre 2% das prisões não se têm informação, dada a inauguração de três unidades prisionais entre os anos de 2020 e 2022, não contempladas nos documentos analisados.
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3 Os dados citados nessa seção do artigo foram extraídos de Benaglia (2022, pp. 147-153). Recuperado de: https://encurtador.com.br/vBPW8
4 Cálculo baseado em São Paulo, 2020, questão 03.
Em sentido complementar, quanto aos estabelecimentos prisionais do estado de São Paulo com bibliotecas, sejam fixas ou itinerantes (155 unidades), identificamos que em 72% delas era possível a prática da remição de pena por leitura. No entanto, em 28% das unidades prisionais, embora contassem com bibliotecas, essa modalidade de remição de pena ainda não era praticada.

Figura 7 – Presídios com bibliotecas e a prática da remição de pena por leitura
Benaglia, 2022. Recuperado de: https://encurtador.com.br/vBPW8. Baseado nos dados de São Paulo, 2020, questão 03.
O cenário mais incoerente encontra-se na análise do número de custodiados que, embora cumprissem pena em estabelecimentos com biblioteca e autorização para a prática da Remição de Pena por Leitura, não participavam desses projetos:
Figura 8 – População carcerária paulista com acesso a bibliotecas e à prática da remição de pena por leitura

Benaglia, 2022. Recuperado de: https://encurtador.com.br/vBPW8. Baseado nos dados de São Paulo, 2020, questão 03.
Em números, isso significa que 162.630 pessoas emprisionadas com acesso às bibliotecas prisionais não se beneficiavam da remição de pena por leitura. Apenas 14% da população carcerária paulista
(considerando o levantamento do Depen de 2020), isto é, 27.564 pessoas participavam da remição de pena por leitura em estabelecimentos que a autorizavam e recepcionavam os grupos voluntários.
Havia também uma distribuição pouco homogênea quanto à oferta e à demanda pela remição de pena por leitura. Enquanto em alguns presídios a SAP informa que todos participavam dessa modalidade de remição de pena por leitura, em outros, nem 1% de sua população tinha essa oportunidade. Ou seja: diferentes prisões oferecem diferentes tratamentos a seus custodiados, dentro do mesmo estado. Também podemos atribuir os baixos índices aos rigorosos critérios de seleção dos presos que podem participar da remição de pena por leitura:
Para participar dos projetos de remição de pena pela leitura, além da manifestação de interesse, o preso necessita ter as competências de leitura e escrita necessárias para a execução das atividades e da elaboração do trabalho final, possuindo condições de fazer uma resenha segundo os critérios estipulados . . . Por fim, o preso que apresentar aptidão e grau de instrução condizente à finalidade do programa será submetido à análise da Diretoria de Segurança e Disciplina, que avaliará seu perfil e conduta carcerária. (São Paulo, 2020, questão 04).
Assim, percebemos que os requisitos para acesso ao direito de remição de pena por leitura, que já se encontrava reconhecido pelo CNJ, eram totalmente subjetivos, ficando a cargo da diretoria a escolha de quem realmente participaria deles. Ainda que algum custodiado manifestasse interesse em participar, apresentasse competências de leitura e escrita e o chamado “grau de instrução”, a última palavra ainda era da diretoria, que avaliava seu perfil para com a atividade.
Vimos nesta seção dados concretos sobre as práticas de remição de pena por leitura, mas cumpre, ainda, relatarmos as rodas de leitura da Associação Liberdades Poéticas com mulheres privadas de liberdade na Penitenciária Feminina da Capital (PFC) em 2020 e 2023.
Corria o mês de fevereiro de 2020, um mês antes do inimaginável lockdown em escala global para evitar contágio do coronavírus SarsCoV-2, que matou, apenas no Brasil, em três anos (mar. 2020 a mar. 2023), mais de 700 mil pessoas.
Naquele tempo, que nos parece agora tão distante, havia um grupo de pessoas com idades e formações acadêmicas distintas, que acreditava na proposta da remição de pena por leitura e acabara de inventar o nome Liberdades Poéticas para nos representar. Ainda não éramos associação; apenas um grupo relativamente organizado, constituído exclusivamente de voluntários. No final de 2019, assinamos o Termo de Cooperação Técnico com a Penitenciária Feminina da Capital (PFC), instrumento necessário para que fosse possível descontar, no âmbito jurídico, quatro dias de pena após a leitura e a produção de uma resenha, encaminhada pela direção da unidade ao juiz das varas correspondentes das apenadas. Por decisão própria, escolhemos, de Lygia Fagundes Telles, a obra Venha ver o pôr-do-sol e outros contos (1988). Tínhamos a intenção de fazer três entradas mensais para debater os textos e, na última, auxiliar na produção textual da resenha. Não deu tempo. A pandemia interrompeu nossos trabalhos em fevereiro de 2020, na nossa segunda entrada, e levamos três anos para lá voltarmos presencialmente.
A PFC situa-se em São Paulo e é acessível por metrô, pois está próxima à Estação Carandiru. Para quem se utiliza desse meio de transporte, faz-se necessário atravessar o atual Parque da Juventude, onde antes havia o Complexo penitenciário do Carandiru, sobre cuja memória há poucos vestígios, exceto uma estátua no meio do percurso (fig. 9), que marca o local do Pavilhão 9, onde ocorreu o massacre em 1992, e um museu bastante modesto em tamanho, próximo de um de seus portões.
Figura 9 – Estátua Sonho de Liberdade no Parque da Juventude

Se contamos o percurso, é porque o que sentimos na caminhada que separa o metrô da entrada da PFC de certa forma nos afeta. Ainda que o parque seja frequentado por pessoas que praticam esportes, por outras que estão lá a passeio ou apenas para fruir a natureza, para quem lembra ou conhece o passado desse lugar não é uma experiência isenta. É como se fosse uma espécie de preparação para o ambiente em que estamos em via de ingressar, mas com acesso limitado, pois só nos é permitido passar da portaria da unidade prisional até a “escola”, uma construção onde há a biblioteca, quatro salas de aula, um banheiro e uma sala que funciona como depósito de livros e de outros materiais escolares. Há grades em todas as janelas e portas. Na sua entrada há funcionárias da unidade que controlam todo o movimento, anotando, em uma lista de presença, os nomes das custodiadas que comparecem para as atividades.
O conto selecionado, “Venha ver o pôr-do-sol”, de 1988, narra a vingança de um jovem que atrai sua ex-namorada para um cemitério abandonado e a encaminha para dentro de uma tumba, deixando-a trancada e a sós, propositadamente. A narrativa não é óbvia; adivinha-se aos poucos, quase ao seu final, que o desfecho será trágico.
As interações desse grupo de mulheres durante os 120 minutos da atividade conosco nos impressionou, pois comentavam, com bastante animação, a inocência da personagem que se deixou enganar por um ex-namorado, por quem não nutria mais nenhum interesse, para seu destino macabro. Criticavam a crença no amor e, embora considerassem o final excessivamente trágico, justificavam-no pela ingenuidade da personagem feminina. Também observamos em suas falas indícios de suas histórias pessoais, uma vez que várias custodiadas cometeram crimes (especialmente tráfico de drogas) para
ajudarem seus companheiros e, assim como a protagonista do conto, são abandonadas por eles, tão logo são aprisionadas
Como não pudemos mais dar continuidade a esse ciclo de leitura com o advento da pandemia, esse texto não serviu para remição de pena, mas sim para nos mostrar que o interesse dessas mulheres superava qualquer expectativa nossa.
Sustentados por essa sensação, resolvemos aproveitar a pandemia para nos organizar juridicamente. Durante seis meses em 2020, fizemos reuniões online semanais e montamos, parágrafo por parágrafo, nosso estatuto. Enquanto isso, procurados pela Funap, pudemos oferecer uma nova roda de leitura, dessa vez no formato online, sob a tutela de um de seus coordenadores, que esteve na PFC presencialmente, enquanto os mediadores permaneciam conectados em suas casas. Escolhemos para essa ocasião O diário de Anne Frank, pois já tínhamos conhecimento de que a biblioteca dessa unidade tinha ao menos 20 exemplares, um para cada custodiada que participava dessas atividades.
Essa experiência foi um marco para a Associação Liberdades Poéticas. Por estarmos online, pudemos não só mostrar trechos do livro, reproduzidos como se fosse o diário propriamente dito, mas também exibir um vídeo que mostra o atual museu Anne Frank, em Amsterdã, onde antes funcionou seu esconderijo. Assim, foi possível “viajar” com as custodiadas e mostrar todos os ambientes da casa, com as devidas explicações.
Uma das interações que mais nos chamou a atenção ao final desse evento, reproduzimos agora, de memória: “Eu sei que estou presa, mas prefiro estar onde estou. Diferentemente da Anne Frank, sei que vou sair viva da prisão. Ela não conseguiu.”
Não nos foi mais permitido voltar a fazer nenhuma roda de leitura online, pois alegaram complexidade técnica, haja vista a proibição de ter sinal de internet dentro dos presídios. Não muito depois desse evento já tínhamos CNPJ e nos tornamos, juridicamente, uma associação sem fins lucrativos. Esperamos autorização para a volta às atividades, de forma presencial, o que ocorreu em junho de 2023, com a obra A Hora da estrela, de Clarice Lispector, publicado em 1977.
Essa experiência mostrou-se mais complexa, uma vez que a narrativa de Clarice Lispector é mais subjetiva, com maior predominância de sentimentos do que de ações. Ainda assim, as mediações foram impactantes: uma das mulheres, ainda no primeiro encontro, mostrou-se tão entusiasmada com o trabalho que estávamos apresentando que quis nos recitar um poema de cor, de sua autoria. Contou-nos que já tinha participado, em outra unidade prisional, de remição de pena por leitura, quando “se descobriu poeta”. Ao declamar o poema, se transformou: levantou-se da cadeira e, andando no meio do círculo que sempre formamos para as mediações, realizou uma performance, associando gestos ao texto. As demais participantes ouviram-na, algumas mostrando admiração, outras, indiferença.
Essas são algumas das experiências que as rodas de leitura provocam. Nunca sabemos o que iremos vivenciar a cada entrada da Liberdades Poéticas, pois se trata de um grupo de mulheres adultas e privadas de liberdade. A experiência de vida dentro e fora da prisão as torna leitoras diferentes das que encontramos nas escolas e universidades do mundo livre.
É necessário, ainda, explicar o motivo do largo intervalo entre o final da pandemia e o nosso retorno às atividades presenciais na PFC. Não só houve a publicação da Resolução 391/2021 do CNJ, mas, também, mudança de regime dessa unidade prisional, que passou de fechado a semiaberto, o que trouxe novidades administrativas e novo grupo de mulheres. Também se alterou a relação da Funap conosco: paradoxalmente, antes da Resolução, podíamos selecionar livremente os livros, desde que houvesse 20 exemplares de cada. Era-nos autorizado trabalhar a produção das resenhas sem qualquer participação externa e, para as custodiadas com maior dificuldade de escrita, auxiliá-las, apresentando soluções para que conseguissem exprimir suas ideias. Atualmente, segundo o Termo de Cooperação, os relatórios de leitura, que substituíram as resenhas, devem ser escritos exclusivamente na sala da escola prisional, com
as carteiras enfileiradas, sob supervisão de funcionários da unidade, da Funap e dos voluntários da Associação Liberdades Poéticas.
Ainda que tais alterações nos desagradem, continuamos apostando na importância da remição de pena por leitura, pois se trata não apenas de um direito que deve ser concedido a todos os custodiados, mas também de oportunidades de promover contato com a arte e de estreitar relações humanas, consequência inerente promovida por qualquer leitura compartilhada.
Mostramos até agora os diversos enfrentamentos do sistema penitenciário brasileiro quando é analisado sob o ponto de vista de sua eficácia, como sugere a ODS 16. Faz-se necessário esclarecer que, para nós, da Associação Liberdades Poéticas, pensar a penitenciária como uma “instituição eficaz” significa avançar na humanização das relações humanas, promover condições de ressocialização dos apenados, combater o estigma, a “morte social” e a aculturação a que estão assujeitados. Trata-se, ao fim e ao cabo, de garantir o respeito aos Direitos Universais do Homem, ainda que sejam pessoas privadas de liberdade e tenham, eventualmente, cometido crimes violentos. Definir as sentenças e onde serão cumpridas é tarefa do Poder Judiciário, mas cabe à União e aos estados, como mencionamos anteriormente, cuidar do bem-estar de homens e mulheres infratores, por meio de suas secretarias e fundações. Por fim, entendemos que cabe aos grupos de voluntários que atuam no sistema combater a ideia, cada vez mais explícita depois do advento do bolsonarismo no Brasil, de que “bandido bom é bandido morto”.
Assim, à guisa de conclusão desse artigo, ressaltamos a atuação da Funap, a quem nos reportamos, especialmente depois da publicação da Resolução 391/2021, que embora fosse de maio de 2021, só foi regulamentada para as prisões de São Paulo em outubro de 2021 (Benaglia, 2022, p. 153). Não se trata apenas da demora em colocá-la em prática, mas, isso sim, da falta de flexibilidade para corresponder às novidades que ela trouxe.
Temos, ainda, de trabalhar sob a mesma perspectiva autoritária que a Resolução 391/2021 combate, isto é, a única forma de comprovar a realização da leitura ao juiz é por meio da escrita, quando poderiam ser aceitas outras respostas, como desenhos, poemas, dramatizações etc. Já citamos, ao longo do texto, que o nível de escolaridade dos apenados é, majoritariamente, muito baixo, o que torna essa modalidade de remição complexa para os semianalfabetos ou estrangeiros que aqui cumprem pena.
Também temos pouca inferência na seleção de títulos, uma vez que a Funap justifica que só podem ser disponibilizados os que constam de seu acervo original, com 20 exemplares, pelo menos, de cada título. Sabemos que a aquisição de livros com verbas públicas é complexa, mas seria possível atuar com o mercado editorial para estimular doações e, assim, atualizar e ampliar o número de obras em circulação para esse fim.
Quando lembramos o interesse que as leituras provocam entre as pessoas privadas de liberdade durante nossas entradas na PFC e que, no estado de São Paulo, apenas 14% das unidades prisionais realizam essa modalidade de remição, constatamos a ineficácia do sistema, pelo menos do paulista. Não basta o CNJ publicar resoluções: é necessário que as fundações e secretarias advoguem a favor dos apenados para que desfrutem de benefícios que lhe são assegurados por lei, como a remição de pena.
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