https://doi.org/10.34024/prometeica.2024.31.15381

 


ETNOPEDAGOGIAS

SABERES SOCIOEDUCATIVOS SEM PROCURAR A JUSTA FORMA


ETHNOPEDAGOGIES

Socio-educational knowledge without seeking the right form


ETNOPEDAGOGÍAS

Conocimiento socioeducativo sin buscar la forma adecuada


Adailton Alves Silva

(Universidade do Estado de Mato Grosso, Brasil)

adailtonbbg@unemat.br

Recibido: 13/07/2023
Aprobado: 08/08/2024

 


RESUMO

O presente artigo tem como proposta discutir/refletir sobre alguns aspectos relativos às pedagogias de povos culturalmente distinto – Manoki/Iranxe, Mӱky, Apyãwa/Tapirapé e A’uwẽ/Xavante - a partir de uma ótica simétrica e de equidade dos diferentes saberes socioeducativos. Saberes e conhecimentos esses que nos explicita essa peculiaridade que cada povo possui na condução do processo socioeducativo de suas crianças. Nesse contexto, buscamos ainda mostrar a necessidade de ampliar o espectro epistemológico dos saberes e conhecimentos o que, consequentemente, nos obriga a considerar e respeitar outros modos de produzir sentidos, saberes e conhecimentos, ou seja, reconhecer/respeitar a diversidade de concepções e de identidades culturais nesse processo de produção do conhecimento. Ao discutir as diferentes pedagogias na perspectiva dos Etnosaberes, reconhecemos nelas um importante modo de se viver a experiência do encontro das diferentes formas de conceber, produzir, sistematizar e difundir saberes e conhecimentos em espaços distintos.

Palavras-chave: etnosaberes. educação indígena. cultura. identidade.


ABSTRACT

The purpose of this article is to discuss/reflect on some aspects related to the pedagogies of culturally distinct peoples – Manoki/Iranxe, Mӱky, Apyãwa/Tapirapé and A’uwẽ/Xavante – from a symmetric perspective and equity of different socio-educational knowledge. Knowledge and knowledge that makes explicit to us this peculiarity that each people have in the conduct of the socio-educational process of their children. Knowledge and knowledge that makes explicit to us this peculiarity that each people have in the conduct of the socio- educational process of their children. By discussing the different pedagogies from the perspective of Ethnoknowledge, we recognize in them an important way of living the

experience of the encounter of the different ways of conceiving, producing, systematizing and disseminating knowledge and knowledge in different spaces.

Keywords: ethnoknowledge. indigenous education. culture. identity.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir/reflexionar sobre algunos aspectos relacionados con las pedagogías de pueblos culturalmente distintos - Manoki/Iranxe, Mӱky, Apyãwa/Tapirapé y A'uwẽ/Xavante - desde una perspectiva simétrica y equidad de los diferentes saberes socioeducativos. Conocimientos y saberes que nos hacen explícita esta peculiaridad que cada pueblo tiene en la conducción del proceso socioeducativo de sus hijos. En este contexto, también buscamos mostrar la necesidad de ampliar el espectro epistemológico del conocimiento y el saber, lo que en consecuencia nos obliga a considerar y respetar otras formas de producir significados, saberes y saberes, es decir, reconocer/respetar la diversidad de concepciones e identidades culturales en este proceso de producción de conocimiento. Al discutir las diferentes pedagogías desde la perspectiva del Etnoconocimiento, reconocemos en ellas una forma importante de vivir la experiencia del encuentro de las diferentes formas de concebir, producir, sistematizar y difundir el conocimiento y el conocimiento en diferentes espacios.

Palabras clave: etnoconocimiento. educación indígena. cultura. identidad.


Para início de conversa!

Apesar de “não saber quase nada” de música, ela me proporciona viajar no mundo das ideias e produzir sentidos outros de muitas coisas que nos rodeia. Parte do título deste artigo é oriunda dessas viagens, que surgiu da escuta atenta e da interpelação de Iolanda, música de Chico Buarque.

Sendo assim, gostaria de falar um pouco mais sobre o subtítulo deste artigo, porque de certa forma ele diz respeito do que gostaria de abordar aqui. Ou seja, Saberes e Conhecimentos sem Procurar a Justa Forma! não é apenas uma metáfora, mas também uma advertência ao leitor no sentido de que o que vou discutir neste texto não tem nenhuma pretensão de ajustar aos modelos epistemológicos canonizados no meio acadêmico, pelo contrário, gostaria de trazer para a discussão/reflexão outras maneiras de produzir conhecimento e, consequentemente, outras maneiras de conceber e estar no mundo que nos cerca.

E ainda, ao mencionarmos “... sem procurar a justa forma!”, queremos mostrar a necessidade de ampliar o espectro epistemológico dos saberes e conhecimentos o que, consequentemente, nos obriga a considerar e respeitar outros modos de produzir sentidos, saberes e conhecimentos, ou seja, reconhecer/respeitar a diversidade de concepções e de identidades culturais nesse processo de produção do conhecimento, pois, assim como Manuel de Barros, acreditamos que gente simples, fazendo coisas pequenas, em espaços “não” importantes, produzem diferentes saberes e conhecimentos significativas.

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Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. 1 (Manuel de Barros).


Para tanto, no presente manuscrito gostaria de falar de coisas que ouvi, senti e vivi ou vivenciei durante os últimos vinte e cinco anos trabalhando com/na formação de professores indígenas e que, ao mesmo tempo, fui sendo interpelado por diferentes maneiras/concepções de ver e de estar em distintos espaços sociais. Sendo assim, o que pretendo discutir/refletir não terá, a priori, a intensão de buscar ou explicitar concepções que se adeque numa justa forma e nem numa única maneira de conceber o mundo que nos


1 Manuel de Barros. O apanhador de desperdícios. Disponível: https://leiturinha.com.br/blog/poemas-de-manoel-de-barros/. Acessado: 23/2/2023 às 22:29

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rodeia, pois, como nos alerta Dom Pedro Casaldáliga 2, “de longe, toda montanha é azul. De perto, toda

pessoa é humana”.


  1. Sistemas Socioeducativos sem Ter a Justa Forma

    No contexto da aldeia, é notório que a preocupação com a educação de uma criança não está no que ele será quando crescer. A preocupação maior daquele coletivo está no processo que conduz ela a se tornar um adulto a partir dos parâmetros cosmológicos/sociais/políticos estabelecidos culturalmente. Isto é, quando a criança nasce todos já sabem o que ela vai ser quando chegar à fase adulta e, sendo assim, a preocupação maior está em unir forças no processo de condução socioeducativa daquela criança.

    Nessa perspectiva, podemos dizer que cada povo possui sua maneira própria de conduzir suas crianças nesse processo de formação, mais do que isso, possui mecanismos próprios para gerar, sistematizar e difundir seus saberes, fazeres e conhecimentos às novas gerações (D’Ambrosio, 1990), incluindo seus costumes, sua visão de mundo, as relações com os outros, com o meio e com sua espiritualidade. E todo esse dinamismo acontece nos distintos espaços de sociabilidade da aldeia, como nos alerta Melià (1998) ao dizer que:

    Os povos indígenas sustentaram sua alteridade graças a estratégias próprias, das quais uma foi precisamente a ação pedagógica. Em outros termos, continua havendo nesses povos uma educação indígena que permite que o modo de ser e a cultura venham a se reproduzir nas novas gerações, mas também que essas sociedades encarem com relativo sucesso situações novas (Melià, 1998; p. 21 - 22).


    Vale ressaltar, diante mão, que não concebemos as ações pedagógicas como uma instituição homogênea e única, tendo em vista que cada povo possui sua maneira específica de educar suas crianças, e isso nos leva a uma compreensão da existência de uma complexa teia de diferentes formas de gerar, sistematizar e conduzir esses processos socioeducativos nos diferentes espaços e tempo. Portanto, cada vez que referirmos à Etnopedagogia faz-se necessário mencionar o povo, pois cada comunidade possui a sua.

    Sendo assim, o que queremos enfatizar e compartilhar aqui neste artigo são fatos socioeducativos que estão ligados intimamente ao coletivo da aldeia e aos princípios e valores culturais daquele povo. Nesse sentido podemos dizer que viver, sobreviver e conviver a/na aldeia são condições primordiais para o desenvolvimento dessa Etnopedagogia, pois é nesse espaço que há um processo de fricção de vários mecanismos que resulta em ensino, aprendizagem e educação. Consequentemente, é na aldeia que uma criança aprende e ao mesmo tempo ensina o sentido da liberdade, respeito, generosidade e que reconhece os outros como iguais e diferentes. E como vive num mundo de interações de diferentes, não tem do que temer diante dos desafios que a vida lhe proporciona.

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    No contexto de uma aldeia indígena são muitos os mestres e as situações que infundem, explicam e conduzem o longo processo socioeducativo. Na concepção dos povos indígenas, é necessário todo o coletivo da comunidade para educar uma criança, pois não é só na escola que as crianças indígenas aprendem, mas sim em todo lugar aprendemos diariamente com os pais, familiares, inclusive com a comunidade, como nos adverte o professor e Cacique Elber K. Tapirapé 3.

    Nesse sentido, a educação no contexto da aldeia é concebida como um processo de vida e não uma preparação para a vida futura, e que a escola deve representar a vida tão real e vital para a criança como a que ela vive na aldeia. Ou seja, viver e conviver a/na aldeia é um elemento fundamental para a celebração de uma educação holística, plena e de qualidade.

    Nessa pedagogia há várias maneiras próprias de ensinar e aprender, mas todos esses jeitos de educar uma criança lhe proporcionam a liberdade e autonomia de experimentar, quer dizer, ela aprende


    2 Fragmento do Poema de Dom Pedro Casaldáliga (1971).

    3 Depoimento concedido em 25/5/16 durante uma Oficina Pedagógica do curso de Formação continuada na E. I. E. Tapi’itãwa na TI Urubu Branco - Confresa-MT.

     

     

    acompanhando seu pai ou sua família nos determinados tempos e espaços, como na caçada, na pescaria, na colheita de frutas, na roça, no pátio da aldeia, nos rituais etc. É nesse contexto que as crianças praticam os inúmeros conhecimentos por meio de participação ativa, observação direta, oralidade e, simultaneamente, recebendo as orientações dos mestres dos saberes sobre o viver e conviver coletivamente. Essa é uma característica da pedagogia indígena, na qual as crianças ensinam umas às outras fazendo na/da brincadeira aquilo que presenciam no dia a dia com seus pais e na sua comunidade e que repercutirá na sua vida adulta.

    Nesse processo há mestres de sabedorias ancestrais, como os avós, anciãos, anciãs, pajés; há também os mestres de saberes ligados ao embrião do povo/comunidade, as crianças, aquelas que nascem mais para ensinar do que para aprender. Por isso, se preocupar com uma criança sobre o seu futuro, lhe perguntando o que quer ser quando crescer é uma afronta, porque ela não necessita de uma credencial para ser só quando adulta, pois ela já é. Olhar para uma criança indígena por esse ângulo é desconsiderar o papel e função social da criança, é apagar o que de fato ela é.


  2. O diferente faz diferente de forma diferente

    Toda atividade humana resulta de motivação demandada pela realidade na qual está inserido o indivíduo através de situações ou problemas que essa realidade lhe propõe, diretamente, através de sua própria percepção e de seu próprio mecanismo sensorial, ou indiretamente, através das interrelações interculturais dos grupos sociais (D’Ambrosio, 1990). Mas nunca é demais lembrarmos que a lógica do colonizador é totalmente diferente dessa lógica supracitada, ou seja, da lógica do colonizado. A estratégia predominante do colonizador é silenciar / desvalorizar / anular a existência da diversidade epistemológica, ou melhor, ela busca colocar os diferentes saberes numa justa forma. E, aqueles saberes que não se aderem a essa concepção são negados e/ou eliminados, e tudo isso contribui para um epistemicídio estrutural que assola as diferenças socioculturais.

    Ainda olhando para essa lógica predadora, Daniel Munduruku vai nos alertar mostrando como ela se estruturou:

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    [...] o humano ocidental cresceu para dominar a natureza como algo fora dele. Dessa forma ele ignorou a escrita da natureza na tentativa de tornar-se dono dela. Desvalorizou as outras formas de leitura e de escrita do mundo e impôs seus próprios olhares e métodos científicos fazendo-nos crer que sua escrita era mais perfeita que aquela infinitamente mais antiga (Daniel Munduruku, 2022; p. 9) 4.


    Nesse sentido, essa lógica nos revela o quanto a ganância dos colonizadores esteve acima dos saberes e conhecimentos ancestrais dos povos que habitavam, e que ainda habitam, essas terras invadidas. Eles não tiveram nenhum respeito pela diversidade epistêmica aqui encontrada e mais, mostraram suas verdadeiras cupidezes pela riqueza aqui encontrada. Para isso não se furtaram de querer aprisionar os diferentes povos, roubar-lhes os conhecimentos tradicionais e tentar anular/negar suas diferentes formas de contar, de escrever (escrita própria), de falar e de conceber o seu entorno.

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    [...] Quiseram roubar – e em muitos casos conseguiram – nossa alma colocando em seu lugar um espírito que nunca foi nosso. E o que eles colocaram no seu lugar? Necessidades que não eram nossas. Vontades que não tínhamos; desejos que não desejávamos; ódios que não sentíamos; bens que não nos pertenciam; pensamentos que não pensávamos. Foram plantando no coração de nossos antepassados um desejo de não Ser (Daniel Munduruku, 2022; p. 10)36F .


    Sendo assim, o objetivo básico deste artigo é mostrar alguns fatos que vai na contramão dessa concepção homogeneizadora, pois entendemos e defendemos que o diferente faz o diferente de forma diferente por


    4 In Herbetta, Alexandre Ferraz e Nascimento, André Marques do. Apresentação: Políticas interculturais de cocriação e novos espaços epistêmicos. In Oferenda - Políticas interculturais de cocriação e novos espaços epistêmicos) 2ª Edição. [Ebook]. - 2.ed. - Goiânia: Cegraf UFG, 2022.

    5 In Herbetta, Alexandre Ferraz e Nascimento, André Marques do. Apresentação: Políticas interculturais de cocriação e novos espaços epistêmicos. In Oferenda - Políticas interculturais de cocriação e novos espaços epistêmicos) 2ª Edição. [Ebook]. - 2.ed. - Goiânia: Cegraf UFG, 2022.

     

    que suas necessidades são diferentes e concebe o mundo e seu entorno também de forma diferente. Entendemos ainda que essa é uma premissa básica e responsável pela diversidade epistemológica, pois cada grupo social possui um modo específico de gerar, sistematizar e difundir seus saberes e conhecimentos (D’Ambrosio, 1990).

    Nesse sentido entendemos que a maior discriminação é tratar os diferentes de forma igual e nessa perspectiva concordo completamente com Santos (2003), quando ele nos alerta dizendo que:

    [...] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades (SANTOS, 2003; p. 56).


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    É a partir dessa ótica simétrica e de equidade dos diferentes saberes socioeducativos que gostaria de ressaltar alguns aspectos socioculturais de povos culturalmente distintos – Manoki/Iranxe, Mӱky, Apyãwa/Tapirapé e A’uwẽ/Xavante - que nos explicita essa peculiaridade que cada povo possui na condução do processo socioeducativo de suas crianças e, consequentemente, na forma de produzir significado para os mais jovens, como bem nos diz Airton Krenak: “nós, que persistimos em uma experiência coletiva, não educamos crianças para que eles sejam alguma coisa, mas para serem companheiras umas das outras6.


    1. A aldeia como espaço de difusão de saberes e conhecimentos

      A aldeia com seus múltiplos espaços socioeducativos é um laboratório vivo. A imersão nesse contexto é um aspecto muito rico e nos proporciona situações de fortes questionamentos e aprendizagens.

      Os quatro fatos socioeducativos que trago a seguir, surgem da minha experiência de imersão nesses espaços. Mas para que isso acontecesse foi necessário me despir de verdades absolutas, me permitir aproximar das mesmas condições que aquelas pessoas produzem seus saberes e conhecimentos, exercitando o estranhamento dos aspectos familiares e, ao mesmo tempo, buscando familiarizar com os aspectos que me provocam estranhezas.

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      Com o intuito de ressaltar alguns dos aspectos que me interpelaram durante esses últimos 25 anos atuando/aprendendo com e a partir dessas diferentes epistemologias, compartilho situações e concepções de quatro grupos sociais distintos: os Apyãwa/Tapirapé 7 (Aprendendo com Arapapá), os Mӱky 8 (O

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      menino que virou roça), os Manoki 9 (O caldo que nos leva para o Céu) e os A’uwẽ/Xavante 10 (I’amõ

      a constituição do eu na perspectiva A’uwẽ/Xavante), de modo que possamos refletir sobre o caráter, a forma e a dinâmica dos seus processos socioeducativos e sua imbricação com os respectivos mitos, ritos e cerimônias, ou seja, para que possamos compreender um pouco da dimensão de como se constitui a teia Pedagogias Indígenas.


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      1. Aprendendo com Arapapá 11

        Para os Apyãwa/Tapirapé, grande parte do processo socioeducativo do povo está organizado socialmente em duas metades, a metade Araxã e a metade Wyraxiga, que são denominadas por eles de Wyrã (aves).


        6 In KRENAK, Airton. Futuro Ancestral. Companhia das Letra, 1ª edição (2 dezembro 2022).

        7 Os Apyãwa/Tapirapé são um povo Tupi-Guarani que habitam duas Áreas Indígenas, Tapirapé/Karajá, homologada em 1983 e Urubu Branco, homologada em 1998, ambas situadas na Região do Médio Araguaia, Estado de Mato Grosso.

        8 Os Myky estão localizados ao noroeste de Mato Grosso, município de Brasnorte-MT, com uma população de aproximadamente 133 pessoas.

        9 O povo Manuki está localizado ao noroeste do Estado de Mato Grosso, no munício de Brasnorte.

        10 Os A’uwẽ/Xavante pertencem à família linguística Jê, do tronco Macro-Jê e habitam nove Terras Indígenas em diversos municípios do Estado de Mato Grosso.

        11 Arapapá: Cochlearius cochlearius (colher) ou Wyraximewa (pássaro bico chato) é uma ave que é apanhada nos ninhais no mês de abril e entregue para as crianças do sexo masculino. Para as meninas é entregue um periquito verde com a mesma finalidade.

         

         

        Essas metades são compostas de três subgrupos aos quais pertencem os homens nas diferentes fases de vida. É a partir dessa organização que sistematizam e difundem grande parte dos seus saberes e conhecimentos.

        No contexto cultural desse povo, o processo de educar suas crianças, jovens e, consequentemente, os adultos, possui a seguinte característica:

        A educação Apyãwa se inicia em casa e fora de casa, onde se ensina a partir da organização familiar. Em seguida passa pelo conhecimento da organização da comunidade, nas práticas culturais, rituais e a vida cotidiana do povo Apyãwa. Sabemos que tudo aquilo que a gente aprendeu com os nossos pais e com a nossa comunidade, consideramos como a principal educação indígena Apyãwa. Por que é daí que saímos sabendo de tudo o que se deve e o que não se deve ser praticado, principalmente no uso das riquezas naturais do nosso território. Tudo isso aprendemos por meio de observação e das práticas (PROFESSORES

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        APYÃWA, MAIO/2016.43F


        Nesse contexto socioeducativo do povo Apyãwa, um aspecto que nos instiga à reflexão sobre o ato de educar é o fato de as crianças assumirem responsabilidades ainda muito novas. A criança quando alcança a fase de vida denominada Xyre’i’i (rapazinho) é lhe concedido a responsabilidade de adotar uma ave aquática (Arapapá), com o objetivo de cuidar dela até a fase adulta. Enquanto essa ave não consegue pescar seu alimento, o Xyre’i’i é responsável de pescar todos os dias para alimentá-la. Essa é uma ação pedagógica em que a criança é submetida com o objetivo de aprender cuidar o suficiente da ave para que, quando se tornar pai de família, já possua a habilidade de alimentar e educar seus filhos. Para a menina na mesma fase de vida é lhe permitido adotar um filhote de periquito com essa mesma finalidade.

        O importante notar é que, quando a ave vai crescendo e adquirindo força suficiente para alcançar voos mais distantes, a criança aos poucos vai diminuindo a oferta de alimento e, consequentemente, aos poucos a ave vai buscando sua independência alimentar, ou seja, começa a pescar nos pequenos córregos próximos à aldeia até que adquiram confiança e passa voltar para o seu habitat natural, as beiras de rios, lagos e córregos.

        A respeito dessa forma de educar do povo Apyãwa/Tapirapé, ao visitar a casa de uma família na aldeia Tapi’itãwa, obtivemos um depoimento que explicita o quanto as crianças levam a sério a incumbência de cuidar dessa ave recém-nascida:

        [...] outro dia na escola, a xyrezadinha ficou me pedindo para deixá-los saírem mais cedo um pouco, pois precisavam ainda de ter que ir pescar para dar comida para seus filhos. Achei muito interessante essa preocupação deles de cuidar dos seus Arapapá! (J. X. T. – depoimento em 02/05/16).


        Nessa dinâmica da criança Apyãwa/Tapirapé adotar uma ave por um período, podemos perceber o quanto ela é submetida a situações de aprendizagem do mundo onde está inserida, pois é nesse período que a criança busca conhecer todos os aspectos e comportamento dessa ave para que tenha sucesso na sua criação, já que, caso a ave venha morrer de fome e/ou de descuido, isso será um ponto negativo na sua avaliação feita pelos mais velhos. Isso pode lhe custar o rótulo de ser, quando crescer, um pai de família descuidado com suas responsabilidades.

        Essa peculiaridade da dinâmica do processo socioeducativo e das atividades cotidianas, além de propiciar o aperfeiçoamento das ações educativas, por conta do estímulo ao respeito com as aves, animais, meio ambiente, à superação de si e do outro, atua na instrução dos mais jovens e na difusão dos saberes relacionados aos mitos. Todo esse processo mediatizado pela visão de mundo expressada nos rituais e cerimônias, representa um elemento crucial na vivência, convivência e atualização da cultura Apyãwa/Tapirapé.


        12 Texto elaborado coletivamente pelos professores Xawapare’ymi Genivaldo Tapirapé; Tawy’i Julio Cesar Tapirapé; Xaopoko’i Amarildo Tapirapé; Koxapao Vanete Tapirapé; Tamanaxowoo Tapirapé; Orokomy Tapirapé durante a realização da Oficina Pedagógica de Formação Continuada na aldeia Tapi’itãwa – Confresa, maio/2016.

      2. O menino que virou roça

        Viver socialmente em um determinado grupo é passar, passar é ritualizar e ritualizar é educar-se na convivência com o outro e com o meio que lhe cerca. É nessa dinâmica da passagem que as pessoas educam e são educadas para um bem viver (Gennep, 1977; Freire, 1996). Nesse aspecto do processo de ritualização, cada povo possui um potencial, uma força de sabedoria e de pedagogia que permite a construção e reconstrução dessa forma de caminhar, de passar e educar.

        O povo mӱky, por exemplo, tem como ponto de partida e de chegada, um dos seus principais mitos de origem como balizador desse processo socioeducativo. O mito “o menino que virou roça” constitui e sedimenta o conjunto de normas que conduz o processo socioeducativo das crianças, jovens e, consequentemente, dos adultos.

        Para esse povo, um dos principais espaços socioeducativos é o espaço-roça que, segundo a sua cosmologia de mundo, está sedimentado no mito “o menino que virou roça”, transcrito a seguir:

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        Diz que, antigamente, o pai costumava pescar. O pai chegou e o menino perguntou ao pai:- Você pescou peixe? O pai assobiou para o filho. O menino ficava triste. O pai assobiou. No outro dia, foi de novo pescar. Então o filho falou para a mãe: - Mãe, vamos andar. Vou espiar o mato. - Tá bem! Foram mãe e filho e pararam no caminho. Então, o filho falou: - Me enterra. Não vou te enterrar. Você me é muito querido. Me enterra! Eu não vou morrer. Cuide de mim e eu não vou morrer nunca. Meu pai assoviava feio. Me enterra, só cabeça de fora. Vai embora, não olha pra trás enquanto anda. Prepara peneira, ralo, pilão. Pai vai trançar xire. Então, escutou barulho de derrubada e pau caindo. Depois, mãe e pai voltaram. Onde que estava enterrado, foram e viram roça grande. A criança renasceu como roça. Cabeça virou cabaça. Braço virou mandioca mansa. Unha virou amendoim. A costela virou feijão costela. O osso do peito virou feijão fava. Coração virou cará branco. O fígado virou cará preto. A canela virou mandioca brava. A tripa virou batata doce. O pênis virou araruta. O joelho virou cabacinha. No outro dia, todos foram espiar a roça. Colheram mandioca brava, feijão costela, araruta, feijão fava, cará, batata, amendoim, cabaça, mandioca mansa, cabacinha. 44F


         

        Compreender a dinâmica dos saberes e conhecimentos imbuídos no ritual que celebra o mito “o menino que virou roça”, tornou-se possível a mim quando aceitei o convite para participar de uma edição do referido ritual.

        Conforme consta na mitologia e cosmovisão mӱky, a roça ao longo do tempo existencial do povo se constituiu numa célula mãe no processo de vivência, convivência e transcendência do povo, envolvendo adultos e crianças e tornando-se uma instituição fundamental na pulsão da vida para as diferentes faixas etárias (D’ Ambrosio, 1990).

        Dessa maneira, o projeto de vida desse povo está intimamente vinculado ao plantio ritual da roça e, sendo assim, aproximadamente a cada três anos acontece o grande ritual de Jéta pedindo licença para derrubar as árvores para a realização/celebração da roça comunitária, ou seja, pedindo licença para cortar um membro da criança que foi enterrado.

        A necessidade do plantio da mandioca é um fator temporal determinante para uma nova derrubada para a realização da roça comunitário, haja visto que a quantidade de mandioca plantada nesse tipo de roça supre as necessidades da comunidade por um longo tempo, aproximadamente uns três anos. Enquanto nos anos que intercalam o plantio de mandioca, plantam roças menores, familiares, ou apenas derrubam capoeiras para outras plantações (Escola Estadual Indígena Xinui Mӱky, 2008).

        Na esfera de terras férteis e produtivas, a plantação da roça constitui um espaço privilegiado e propício para que a leitura do mundo anteceda a leitura da palavra (Freire, 1986), ou seja, é no espaço-roça que acontece o exercício da primeira leitura do mundo, dentro e a partir “do concreto cultural e histórico” (Freire, 1982; s/p) do povo, ressignificando assim o sentido da vivência e convivência compartilhada.


        13 Nota do autor: A versão do mito foi produzida pelos professores mӱky para elaboração do Projeto Político Pedagógico (2008) da Escola Estadual Indígena Xinui Mӱky.

         

        O mito do menino que se transformou em roça é uma narrativa mítica central no conjunto dos saberes (mentefatos) e fazeres (artefatos) do povo mӱky, pois esse é um mito que traz na sua essência a manifestação primeira do canto da Jéta, ou seja, do Espírito que, segundo a cosmologia mӱky, é aquele que através das cerimônias que constitui esse ritual, planta/cultiva/colhe a roça e, para quem depois, serão oferecidos os alimentos preparados pelas mulheres, assim como a caça providenciada pelos homens, para agradecer a dádiva de uma colheita abundante (Amarante, 2010).

        A celebração do ritual de preparação da roça tem suas etapas bem definidas. A primeira, diz respeito à escolha do local adequado para o plantio, seguida da derrubada das árvores que é tarefa masculina. Mas antes de derrubarem as árvores, há um momento em que os homens conversam com as árvores pedindo licença para derrubá-las, estabelecendo assim, um pacto com os Espíritos em vistas à subsistência do povo. A queimada é também um ritual masculino, mas logo após, são as mulheres que vão plantar os carás que simbolizam os órgãos do menino. Só então, em seguida à primeira chuva, segue-se a plantação ritual da mandioca e posteriormente dos outros cultivares (Amarante, 2010).

        No momento em que a roça se encontra pronta para o início da plantação, é que acontece o processo de iniciação dos meninos. É nesse momento que os garotos deixam de serem consideradas crianças e passam a integrar o grupo dos homens, conhecendo a partir de então, o segredo da Jéta e assumindo o papel que compete ao homem no relacionamento com o Sagrado. Trata-se de um momento fundamental no processo socioeducativo da comunidade em que se destacam aspectos formalizados e mais intensivos da educação mӱky. Para as meninas, esse momento acontece por ocasião da primeira menstruação, quando elas ficam reclusas, sob cuidados das mães ou de outras mulheres mais velhas (Amarante, 2010).

        Figura 01: Crianças mӱky durante a cerimônia de Jéta.

        Foto: Adailton Alves da Silva, 2014


        Os meninos que constitui o grupo de iniciando, com idade entre nove e onze anos, são escolhidos pelo grau de maturidade que possuem, pois, a partir dessa iniciação eles tornam-se depositários de segredos fundamentais da cultura e já não podem relatar para as mães e irmãs as atividades masculinas em que se encontrarão envolvidos. Durante vários dias os homens prepararam arcos, flechas e xire proporcionais ao tamanho das crianças, buscam buriti para os enfeites das pernas e dos braços e preparam urucum para as pinturas corporais. Enquanto isso, as mulheres ralam mandioca e socam milho no pilão no preparo do alimento tradicional para a ocasião e para todo o período em que os filhos passarão na roça ou acompanhando os homens na caçada.

        No dia da cerimônia de partida dos meninos para a roça propriamente dita, pela manhã, as mulheres mais velhas, no terreiro da aldeia, conversam longamente com os iniciandos, explicando o significado desse momento da vida deles. Depois dessa conversa, mães e crianças se despedem, pois daquele momento em diante os meninos passam a pertencer a um novo grupo e viver um novo tempo, habitando outros espaços. As mães entregam seus filhos para que, a partir desse momento, ingressem no mundo dos

        homens e aprendam a ser também os provedores da subsistência da comunidade, seja como caçador, seja como aqueles que vão cuidar para que a “roça menino” não morra (Amarante, 2010).

        Durante esse ritual os meninos, armados com arco e flecha, pintados e com o cocar na cabeça, posicionam-se em fila e as mães passam de um a um lhe fazendo as últimas recomendações/orientações. Como já mencionamos nesse texto, toda a comunidade é responsável pela educação das suas crianças, mas nesse momento um dos homens assume a responsabilidade de conduzir os novos membros da comunidade nas atividades cerimoniais. Pois, como diz Brandão (2006), trata-se de um momento de:

        [...] troca de condutas e significados, regido por regras e princípios que, aos poucos incorporam à pessoa de cada um, os códigos das diferentes outras situações da vida social. Incorporam, no seu todo, a própria estrutura simbólica da sociedade no universo pessoal de idéias (cic), ações e sentimentos de cada pessoa (Brandão, 2006; p. 14).


        Ao término do período que permanecem na roça, que varia entre uma a duas semanas, os jovens retornam para o pátio da aldeia e são recebidos por toda a comunidade. É um momento de muita alegria e novamente as mães e mulheres em geral, celebram esse momento com uma atitude acolhedora e de agradecimento pela dádiva recebida pelos iniciados durante o ritual.

        Durante todo esse período, a noite é de ritual, começando ao pôr do sol e se estendendo até o amanhecer do dia seguinte. Os homens dançam no terreiro da casa tradicional e personificam o canto das Jétas. As mulheres e crianças se reúnem no interior dessa mesma casa, construída no centro da aldeia. Lá, todas as redes são armadas e as mulheres são aquelas que têm o dever de chamar os antepassados para que continuem acompanhando a jornada do povo. Elas cantam para as Jétas, verbalizando numa espécie de choro de gratidão pela presença desses espíritos e as preces de intercessão pelo povo (Amarante, 2010).

        A chegada dos meninos na aldeia é um momento muito significativo do ritual. É um momento sociopolítico, econômico e de vivência da espiritualidade, principalmente, educacional por excelência, pois é a partir desse processo que a comunidade sistematicamente constrói e reconstrói seu projeto de vida, em que a partilha da carne, do peixe, dos bolos, dos beijus e da abundância de chicha explicitam e concretizam a alegria de viver, conviver e transcender, ou seja, de se definirem e se organizarem como sociedade mӱky, a partir de princípios e valores ancestrais.

        Nesse contexto, podemos dizer que a roça mӱky constitui-se como espaço sociopolítico-econômico direcionado à vivência, convivência e transcendência participativa e compartilhada, ao mesmo tempo em que concretiza num espaço cultural no qual se explicita a prática socioeducativa do povo.

        É nesse espaço e através da celebração dos seus rituais e cerimônias, com um processo socioeducativo significativo, que o povo encontrou e encontra o sentido de viver e conviver com a certeza de sedimentar sua resistência para construir sua esperança e manter viva a cultura mӱky. É no contexto da roça que se forma o ser aprendente da criança, do adolescente, do homem e da mulher, onde, em suma, se explicita a prática educativa tradicional do povo (Amarante, 2010).

        Dessa maneira, a roça ganha significado cosmológico e espiritual em todo seu ciclo e, sendo assim, torna-se a principal matriz que sedimenta todo o processo socioeducativo do povo, já que todos os ritos e cerimônias estão relacionados diretamente com o cultivo das roças. Cultivá-la significa não se desgarrar da cultura, pois acreditam que por ela perpassa a resistência e a construção do projeto de futuro do povo mӱky.


      3. O caldo que nos leva para o céu

        Experienciar a intensidade da aldeia é uma peculiaridade que nos coloca em movimento, que nos interpela, que nos proporciona um deslocamento de olhar/sentir os fatos da forma como eles são e acontecem. Pois, como nos alerta Larrosa (2002; p. 25/26), “é experiência aquilo que “nos passa”, ou

        que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação”.

        A partir dessa ótica, a experiência compartilhada aqui neste artigo compreende o acompanhamento do processo de produção da Chicha do povo Manoki realizada durante a escuta/observação atenta de uma Anciã Manoki, em uma Oficina Pedagógica na aldeia Cravari (município de Brasnorte-MT), povo Manoki, no período de 27 a 31 de maio/21, juntamente com os alunos da FAINDI e da escola da comunidade.

        O processo de preparo da Chicha inicia com a coleta da mandioca brava na roça. Após a coleta a mandioca é descascada e logo em seguida é ralada. O passo seguinte é espremer a massa de mandioca para retirar o líquido o máximo que puder. Para retirar esse líquido ela nos informou que tem vários processos de prensar a massa, mas na ocasião foi utilizado um pedaço de tecido, pois era pouca massa e também se tratava de uma atividade pedagógica para os alunos que acompanhava o processo. A figura 02, a seguir, explicita as principais fases da produção da Chicha.

        Figura 02 - Principais fases do processo de produção da chicha de mandioca d’água.

         

        Foto: a) Ralador de mandioca; b) Massa da mandioca brava c) Massa da mandioca depois de retirado o caldo; d) Chicha de mandioca brava. Fonte: Adailton Alves da Silva, maio de 2019.


        Após ter a quantidade de caldo suficiente, segunda as medidas estabelecidas pela anciã, o mesmo é colocado num recipiente e levado ao fogo brando. Enquanto o caldo vai sendo aquecido ela ia mexendo com uma concha de madeira num movimento circular e, ao mesmo tempo, a senhora alegremente ia explicando para o grupo todo o processo.

        [...] É assim, tem que ir mexendo, não pode parar. Tem que colocar o fogo certo, não pode ser muito alto e nem muito baixo. Tem que ter muito cuidado. Se tomar esse caldo assim, sem ferver, ele nos leva para o céu! É verdade! Por isso tem que ferver até chegar no ponto certo. Tem que ter muito cuidado e fazer bem feito, senão pode fazer mal. Não é qualquer um que sabe fazer não! Eu aprendi com minha mãe. Quando secar um tanto assim, mais ou menos nessa cintura (mostrando no recipiente), aí já está bom para tomar. Aí é só esperar esfriar e já pode tomar (Depoimento da anciã Manoki, em 30 de maio de 2019).

        A narrativa dessa anciã nos explicita alguns aspectos da ciência Manoki que na minha visão são, no mínimo, algo que nos coloca num lugar de desconstrução de verdades absolutas. Ter domínio da técnica da retirada do ácido cianídrico (HCN) da mandioca brava (Manihot utilíssima), ou melhor, ter conhecimento que a substância venenosa é termolábil e volátil e com o cozimento por fervura elimina praticamente toda a toxicidade, é um exemplo dessa desconstrução, ao mesmo tempo que explicita como povo diferente faz coisas de maneira diferente para finalidades diferente ou semelhante.

      4. A partilha e o I’amõ – a constituição do eu na perspectiva A’uwẽ/Xavante

Durante a minha imersão na cultura A’uwẽ/Xavante, iniciada em 1998 e intensifica na ocasião das pesquisas de mestrado (2002 - 2004) e de doutoramento (2019-2012), uma das coisas que tenho buscado compreender até o presente momento é o processo de constituição do eu na perspectiva desse povo. O i’amõ é um dos aspectos que contribuí fortemente para essa tecnologia do eu.

Mas para que possamos compreender como esse aspecto se constitui dentro da malha cultural do povo A’uwẽ/Xavante, faz-se necessário entendermos como eles estão organizados socialmente. Na organização social desse povo, cada indivíduo ao nascer passa a pertencer a uma instituição clânica: Poreza’õno (girino) ou Öwawẽ (água grande) por escolha/definição patrilinear, e quando a pessoa alcança a fase de watébrémi (para os meninos) ou azarudu (para as meninas), são submetidos a um dos oitos grupo de idade: Ẽtẽpá (pedra grande), Tirówa (flecha de taquara, carrapato), Nozö’u (milho), Abare’u (pequi), Sadaró (mormaço), Anhanarówa (fezes), Hötörã (peixe pequeno) e Ai’rere (gabiroba) para cumprir, por aproximadamente cinco anos, o seu processo de reclusão/formação de acordo com os princípios do povo. Formação essa que é realizada via celebração dos ritos e cerimônias que constitui uma das principais instituições socioeducativa do povo, o Danhono (Silva, 2013).

O Danhono é um ritual celebrado no final do período de reclusão dos adolescentes (Wapté) no Hö (casa dos adolescentes) e é constituído de um conjunto de cerimônias, ritos e prova de vários gêneros, que tem como objetivo introduzir esses adolescentes (Wapté) e moças (Azarudu) A’uwẽ/Xavantes na vida adulta, na vida social e os preparar para novas responsabilidades.

A partir da dinâmica dos oito grupos, todas as pessoas – homens e mulheres - da aldeia são classificadas, ou seja, todas as pessoas após o período de formação no Hö passam a pertencer a um desses grupos e, consequentemente, adquirem fortes laços de amizade, companheirismo, comprometimento, respeito, responsabilidade e solidariedade entre si, e a partir desse momento, passam a pertencer um desses grupos para sempre. Essa passagem pela casa dos homens vai acontecendo alternadamente, é um movimento cíclico como podemos conferir na figura 3, a seguir.

Figura 03 – A Dinâmica da alternância dos grupos de idade no interior do Hö - A’uwẽ/Xavante da Terra indígena Pimentel Barbosa.

Fonte: Silva, 2013.


Sendo assim, o (casa dos homens) constitui-se num espaço/lugar que proporciona perfeitamente as condições necessárias para que esse processo socioeducativo aconteça. Podemos dizer ainda que é nesse

espaço que se estabelece relações inter-intra-multi entre os oitos grupos de idade, sendo uma delas a relação dos I’amõs.

Todos esses mecanismos da organização social do povo é que dão as condições necessárias para a formação do indivíduo. Dentro desse processo socioeducativo a cooperação, a (co)responsabilidade e a cumplicidade são práticas recorrentes entre os indivíduos e comunidade. São elementos que estão presentes em todos os eventos e momento do cotidiano do povo.

Nesse processo socioeducativo, destacamos dois importantes aspectos e que são intensificados no rito de iniciação do Danhono, a Divisão/Partilha e o estabelecimento dos I’amõ, que também são impulsores do movimento cíclico da constituição do ser A’uwẽ/Xavante entre A’uwẽ/Xavante.

Nesse ritual a divisão e a partilha de bens, sejam de consumo ou artefatos, são regidas por princípios de distribuição de equidade, segundo os quais a obrigação de dar supõe a obrigação de receber, e receber se torna, por sua vez, obrigação de doar. Por isso, o intercâmbio é de fato um diálogo social, mediante o qual o que circula é o prestígio de quem sabe doar e a alegria de quem sabe receber. Ao se referirem a este sistema de troca do povo A’uwẽ/Xavante, Giaccaria e Heide (1972) dizem que existem pelo menos dois princípios que sedimentam essas trocas.

Estas trocas são reguladas por dois princípios fundamentais. 1) A quem pede nunca se deve recusar o objeto pedido. 2) Tanto a coisa dada como o pagamento devem ser proporcionais à situação atual (material) dos contratantes. Isso faz com que um indivíduo que tenha acumulado bens não os guarde só para si, mas os faça reverter em benefício do grupo e aceita em troca coisas de valor inferior ao do que ele cede (Giaccaria e Heide,1972, p. 53).


Transgredir esses fundamentos da divisão e da partilha é considerado algo muito grave dentro dos princípios A’uwẽ/Xavante. Esse talvez seja um dos aspectos de impedimento de participação ativa da cultura do povo, como por exemplo, o casamento, pois aquele que não sabe dividir, não sabe partilhar, não será um bom chefe de família e muito menos um bom genro, pois nesse contexto, uma das habilidades que se espera do genro é que ele, ao ser incluído no núcleo doméstico da sua esposa, seja um bom caçador, um bom pescador, que cumpra a sua função/responsabilidade na elaboração das roças familiares, etc., e, principalmente, espera que ele saiba partilhar os bens de consumo com as pessoas do seu convívio direto, pelo menos. Caso contrário, segundo Giaccaria e Heide (1972):

É considerado “mau” seja aquele que não dá quando está em condições de dar, seja aquele que pede mais do que aquilo que o outro possa dar. Ambos são considerados Tsõtidi, isto é, inapto para a vida do grupo, indivíduos “socialmente perigosos”, porque minam, com o seu comportamento, a sobrevivência do grupo Giaccaria e Heide (1972; p. 53).


Nessa perspectiva a divisão, a partilha e a troca dos bens ocupam um lugar central no processo de formação/constituição do ser A’uwẽ/Xavante, sobretudo pelas implicações da organização social e da forma como os ritos e cerimônias são celebrados. A preocupação fundamental nesse processo é a repartição ou divisão dos bens entre as famílias e os grupos de maneira a garantir, com um sistema de dar e receber ciclicamente organizado, a sobrevivência e convivência do próprio grupo.

Já o I’amõ, que numa tradução literal do termo significa “a outra metade de mim”, é uma relação que é estabelecida durante o ritual do Danhono e que perpetua para toda a vida existencial daqueles jovens. Durante a permanência a , casa dos adolescentes, nesse ritual os adolescentes em formação vão se conhecendo, aprendendo a se respeitarem, vão se identificando e ao final do período de formação daquele grupo, essa relação fica estabelecida e sedimentada pelo companheirismo, respeito, ajuda e cumplicidade mútua etc. e que perpetua para a vida toda.

Nesse sentido, podemos dizer que o estabelecimento da relação com o outro, o i’amõ, é uma estratégia difundida culturalmente que vai em direção ao fortalecimento do povo, assim como também, proporciona a difusão de saberes e conhecimentos específicos. Essa ideia do “outro ser a outra metade mim”, proporciona a condição ideal para que ocorra a troca de experiências vivenciadas e,

consequentemente, o estabelecimento da cumplicidade e do comprometimento entre as pessoas e os grupos.


Para não concluir, mas para continuarmos sem procurar a justa forma...

Ainda parafraseando Chico Buarque, olhar e buscar compreender essa teia de pedagogias de povos culturalmente distintos faz com que a nossa miopia cultural “vais despindo aos poucos” e, consequentemente, vai nos permitindo conceber/entender outras possibilidades de produção de saberes e conhecimentos.

Vale ressaltar que essas etnopedagogias não são mais que pedagogias de povos culturalmente distintos. Mas, “quem dera fosse uma” concepção que estivesse ao alcance de todas as formas de pensar e fazer a educação que tanto nos empenhamos e que sonhamos para que um dia ela estivesse em todas as comunidades e que viesse “assim de forma tão” prazerosa.

Ressaltar essas atividades inerentes às etnopedagogias desses quatro povos indígenas, nos explicita uma forma específica de sistematização e difusão de saberes/conhecimentos que ultrapassa o simples fato em si da produção da chicha, da elaboração da roça menino, do estabelecimento da relação dos i’amõs e do aprender cuidar de uma ave de estimação propriamente ditos, pois são saberes que estão conectados numa teia, como por exemplo, a fauna, a flora e ao sagrado, e tudo isso, de certa forma, nos faz questionar a maneira compartimentada que os conhecimentos são difundidos de forma impositiva via educação escolar aos diferentes grupos sociais.

Nessa perspectiva, quando os pais pegam nos ninhais um filhote de Arapapá para seu filho, isso não se trata de uma domesticação da ave, mas sim de uma oportunidade que a criança terá de aprender diversos conhecimentos ao cuidar da mesma, pois ela assume a responsabilidade de zelar dessa ave enquanto estiver sob seus cuidados. Sendo assim, a criança terá que buscar conhecer seu hábito alimentar e comportamental para que ela seja bem cuidada, para depois de adulta voltar ao se habitat. Essa é uma experiência de curto prazo vivenciada pela criança, mas o suficiente para compreender e aprender a cuidar de seus filhos quando chegar o momento definido culturalmente de constituir sua família, assim como estabelecer uma relação respeitosa com a fauna e a flora onde está inserida.

Já o mito “O menino que virou roça” nos explicita uma concepção de que a natureza é uma extensão do ser humana, ou o humano uma extensão da natura e, sendo assim, não terá nenhum sentido eliminar uma árvore sem pedir licença, pois se isso acontecesse seria algo como se estivéssemos subtraindo parte (membro) do ser humana e essa incompletude física/espiritual inviabilizaria a pulsão da vida.

Com essa relação de complementaridade humano/natureza também fica estabelecido o respeito com as outras vidas que coabitam aquele mesmo espaço, a aldeia, o território, a mãe terra. Talvez esse seja um dos motivos dos anciãos e anciãs não compreenderem a lógica das grandes plantações de soja e cana- de-açúcar que circundam o território mӱky.

Assim como as demais atividades, a produção de Chicha do povo Manoki - O caldo que nos leva ao céu! – é uma daquelas experiências que nos faz curvar-se ao processo de desconstrução de saberes/conhecimentos canonizados pela ciência universal. Essa foi uma atividade que explicitou uma forma distinta de como a ciência indígena é e a serviço de quem ela está.

Nesse sentido, foi de suma importância que os alunos soubessem qual substância química contém a mandioca brava na perspectiva da ciência universal, mas também foi de grande relevância que esse conhecimento que vem de fora não suprima o saber local, ou seja, que esses alunos nunca esqueçam que esse líquido quando consumido demasiadamente pode levar a óbito.

Trazer a Ciência Manoki para a escola foi uma atividade fundamental para fazer perceber como a escola indígena pode se constituir com proposta de construção de um currículo de ciência que seja algo mais

que uma escola de brancos pensada para indígenas. Ou ainda, que seja um currículo que incorpore os saberes dos anciãos, a ancestralidade e as características da educação indígena, integrada à comunidade.

Nesse texto não temos elementos suficientes para caracterizar a amplitude do que é e o que significa o i’amõ na cultura do povo A’uwẽ/Xavante. Pois, quanto mais buscamos definir esse termo, mais ele foge pelas frestas do não dito, ou seja, sempre que buscamos defini-lo encontramos algo que não cabe num simples termo ou definição.

Mas arriscamos a dizer que ele explicita uma filosofia de vivência, convivência e transcendência, já que está ancorado na coletividade e numa aposta imprescindível e incondicional no outro, fatores primordiais no processo de constituição do ser humano. Ainda nesse sentido, podemos inferir dizendo que essa filosofia coaduna fortemente com o que o professor Ubiratan D’Ambrosio nos disse numa ocasião: “Eu sou nada se não tiver o outro. Nada. Se eu for sozinho, não tem continuação...” 45F14.

Longe de querer procurar uma justa forma para essas atividades/concepções é perceptível alguns aspectos comuns nessa teia de saberes e conhecimentos. Em todas elas, está presente fortemente a coletividade, ou seja, está presente o cuidado, o respeito e a preocupação com o coletivo; está presente a conectividade (física, social e espiritual) entre os indivíduos, entre indivíduos e natureza (fauna e flora).

Sendo assim, buscar conceber e compreender essas pedagogias a partir do contexto onde cada uma delas está ancorada é algo que nos coloca na condição de, no mínimo, questionar muitas verdades que estão fundadas em aspectos de uma cientificidade única e absoluta.


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14 Depoimento/Reflexão do professor Ubiratan D’Ambrosio durante o Encontro do GAU – Grupo de Amigos do Ubiratan D’Ambrosio, em 2014.

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