Reseñas


https://doi.org/10.34024/prometeica.2021.23.11835


PRECIADO, P. B. UM APARTAMENTO EM URANO. CRÔNICAS DA TRAVESSIA. SÃO PAULO: ZAHAR. ISBN-13: 2020 978-8537818831


PRECIADO, P. B. AN APARTMENT ON URANUS. CHRONICLES OF THE CROSSING. SÃO PAULO: ZAHAR. ISBN-13: 2020 978-8537818831


PRECIADO, P. B. UN APARTAMENTO EN URANO. CRÓNICAS DE LA TRAVESÍA. SÃO PAULO: ZAHAR. ISBN-13: 2020 978-8537818831


Breno Benedykt
(Universidade de São Paulo)
breno.benedykt@usp.br


Recibido: 04/03/2021
Aprobado: 01/06/2021

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Um apartamento em Urano: crônicas da travessia,1 lançado em espanhol em 2019 e em 2020, em português, pela editora Zahar, com tradução de Eliana Aguiar, reúne 73 crônicas escritas pelo filósofo Paul B. Preciado, entre os anos de 2010 e os primeiros meses de 2018, publicadas, em sua maioria, no jornal francês Libération. Parte dessas crônicas já circulavam em português através de blogs interessados em difundir as reflexões do filósofo espanhol. Esse é o caso, por exemplo, da crônica, O feminismo não é um humanismo. Nela, Paul traça o horizonte de uma conexão entre feminismo e animalismo, a qual, diferentemente do naturalismo presente em certas correntes conservadoras do feminismo, opõe-se à naturalização dos gêneros que opera como pressuposto que exclui do feminismo transsexuais sob o argumento de que seriam mulheres artificiais. Paul, que em nascimento foi identificada como menina, conta-nos, por meio de suas crônicas, como, na infância, já sonhava com um mundo utópico, cuja primeira representação estaria em um de seus desenhos de escola, o qual acabou por lhe render, aos oito anos, assim como à sua

família, uma série de consequências normativas desastrosas. Nele, Beatriz representava humanos em harmonia com os animais e sua companheira amorosa, uma amiga da escola. Porém, se Paul nos remete a essa cena do passado, é apenas para nos ajudar a compreender o presente e com isso abrir o horizonte para o futuro. Não à toa, aquilo que Paul mais nos narra em relação às transformações de seu si “sexual” dizem respeito à travessia de suas passagens jurídicas e biológicas em homem trans. O uso da testosterona, a mudança de voz, as dificuldades nos aeroportos quando a discrepância entre a foto antiga e o rosto novo começaram a se acentuar, a mudança jurídica de nome, de Beatriz para Paul Beatriz - apenas para citar algumas das cenas presentes nas crônicas. Mas, se Paul nos dá o mapa aberto de uma cartografia de si, essa cartografia está totalmente atrelada a primorosas reflexões filosóficas e políticas. São ao menos duas as crônicas que discutem o método filosófico que atrela escrita, biografia e política. O método de uma vida filosófica engajada politicamente de modo entusiasmado com o seu presente, O


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1 PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia. São Paulo: Zahar, 2020.

método Marx, e o método de uma escrita onde a vida se faz presente, o método Derrida/Foucault, para não dizer, também, Deleuze-Guattariano. É por meio da lente desses pensadores que Paul, atenta como Walter Benjamin a todos os detalhes do cotidiano, também se volta a realizar uma ampla crítica à cultura do capitalismo em sua modalidade técno-neoliberal, a qual vai de jogos de celular a filmes de sucesso, como Ninfomaníaca e Azul é a cor mais quente, até biografias. Mas, se a lente se aproxima desses autores ditos pós-estruturalistas, a filiação é mais ampla e a luta contemporânea os ultrapassa, o que o leva a se contrapor publicamente a nomes como os de Michel Onfray, que atacou Judith Butler com argumentos extraídos de blogs filiados ao tradicionalismo reacionário canadense. É assim que Paul se move de crônica em crônica, muitas delas escritas em hotéis e aeroportos, ao longo de seus deslocamentos entre diferentes cidades: Paris, Atenas, Barcelona, cidades que ama, Nova York, cidade na qual morou oito anos, enquanto estudava na New School for Social Research de Nova York, além de tantas outras como Buenos Aires, Lyon, Calella, Kiev. É graças a essa segunda travessia, inseparável da anterior, que Paul também nos dá oportunidade de ver pelos seus olhos o que era a ocupação da Praça Syntagma, em Atenas, em 2011, o ar revolucionário que se conectava com aqueles que estavam nas ruas ou praças de Madri, Nova York, Paris. Mas suas crônicas também nos trazem explicações importantes sobre o que acontecia lá de específico, tanto em relação à constituição de uma experiência revolucionária do comum, como em relação às questões econômicas, geográficas e políticas que atravessavam cada país; como os efeitos na Grécia da invenção geopolítica da noção de Sul da Europa, uma vez que sempre há a invenção de um Sul pobre e endividado e por detrás dela há a imposição de um Norte rico, como nos explica sua crônica, O Sul não existe.


Pensador que trafega por mundos teóricos denominados genericamente de queer, feminista, pós- estruralista e decolonial, Paul afirma, ao lado de uma série de pensadoras, como Gayatri C. Spivak, Judith Butler, Monique Witting, Virginie Despentes e Donnah Haraway, que agora se impõe de modo decisivo, o que chama, a partir de Thomas Kuhn, de uma revolução de paradigma, tanto epistemológico como estético e político. O que essa revolução implica? Se pensarmos em algumas de suas entrevistas e no modo como sua experiência filosófica se dá e se exprime, inclusive nas crônicas, trata-se de reavivar uma tradição filosófica que Michel Foucault se esforça por restituir em seu curso A coragem da verdade,2 a qual compreende que a atitude filosófica, sua experimentação ética e estética, é primeira em relação à sua erudição. Aquilo que para os pós-estruturalistas e, talvez até mesmo para Walter Benjamin, era uma borda, aqui converte-se num meio. Mas epistemologicamente, se voltarmos à crônica O feminismo não é o humanismo, a qual diga-se de passagem perverte o título do famoso ensaio do filósofo Jean Paul Sartre -, trata-se de desfazer, desmontar, desconstruir ou até mesmo destituir todos os binarismos que sustentam os fundamentos universais do humanismo europeu, isto é, os axiomas que sustentam o modo normativo e impositivo de se entender liberdade, igualdade e fraternidade: “O animalismo revela as raízes coloniais e patriarcais dos princípios universais do humanismo europeu. O regime da escravidão e depois o do salário como fundamento da ‘liberdade’ dos homens modernos; a guerra, a competição e a rivalidade são os operadores da fraternidade; a expropriação e a segmentação da vida e do conhecimento, o reverso da igualdade”3. Mas, toda essa negatividade só se dá graças à existência de um avesso de positividade, um feminismo voltado a uma expansão ilimitada das alianças entre todos aqueles que experienciam, como nos ensina Spivak, uma condição de subalterno diante daquilo que Paul chama, em uma de suas crônicas de, Ne(©r)oliberalismo. “Porque”, afirma Paul em outra de suas crônicas, “a revolução atua através da fragilidade”4, e não através daqueles que têm coragem de impor, por meio da lei ou da norma, o modo adequado de se existir biológica ou subjetivamente. Por isso, Paul parece estar sempre nos convidando a reaprender a imaginar politicamente o meio, onde se traçam os modos moleculares de alianças, de experimentações e de transformações de vida que nos foram dadas como inimagináveis: indigenismo queer, pansexualidade planetária, tecnoxamanismo, assembleia solene de plantas e flores em torno das vítimas da história do humanismo. Uma nova epistemologia que passa necessariamente pela atenção às variações afetivas que nos atinge tanto pela exterioridade das lutas políticas como por aquela, igualmente sensível, da escrita, onde mais do que eu, é o si ou a vida que se põe à prova, pois são nesses casos que a cada lance pode ganhar luz uma pequena, mas decisiva mudança. Toda uma aventura real, ética, estética e política de uma ciência nômade ou minoritária. Como dizia Deleuze e Guattari: “ciências ambulantes, itinerantes, que constituem em seguir um fluxo num campo de vetores no qual singularidades se distribuem como outros tantos acidentes’”5.

“‘Pode o subalterno falar?’: a pergunta que Gayatri C. Spivak fazia pensando nas complexas condições de enunciação dos povos colonizados ganha agora um sentido distinto”, avança Paul em relação à sua travessia trans e política-imaginativa, “E se o subalterno fosse também uma possibilidade sempre já contida em nosso próprio processo de subjetivação?”6. Como deixá-lo falar? Com que voz? É o começo, nos diz Paul, da “guerra dos mil anos; a mais longa das guerras, pois afeta as políticas da reprodução e os processos através dos quais um corpo humano se constitui como sujeito soberano. A mais importante das guerras, portanto, porque o que está em jogo não é o território ou a cidade, mas o corpo, o gozo, a vida”7. Guerra esta que se trava em qualquer um e em qualquer lugar, na cultura pop e na erudita, nas casas de BDSM e nas praças ocupadas, nos museus e na academia, na escola e no trabalho, na escrita e na cama, nos filmes e na escrivaninha. Resta a nós aprender a dançar com Paul. Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia, talvez seja o melhor dos começos.



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2 FOUCAULT, M. A coragem da Verdade: O governo de si e dos outros II. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

3 PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia. São Paulo: Zahar, 2020, p. 133.

4 Ibidem, p. 142.

5 DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 5. São Paulo: 34, 2012, p. 42.

6 PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia. São Paulo: Zahar, 2020, p. 176.