https://doi.org/10.34024/prometeica.2020.21.10410


 

 

REALIDADE, LINGUAGEM E BELEZA SEGUNDO WERNER HEISENBERG

REALIDAD, LENGUAGE Y BELLEZA SEGÚN WERNER HEISENBERG

REALITY, LANGUAGE AND BEAURY ACCORDING TO WERNER HEISENBERG


Antonio Augusto Passos Videira

(Universidade do Estado do Rio Janeiro)

guto@cbpf.br


Carlos Fils Puig
(Independiente)
cfpuig@gmail.com


Recibido: 09/03/2020
Aprobado: 04/05/2020


RESUMO


Neste artigo, apresentamos uma análise das noções de beleza e verdade segundo o pensamento desenvolvido pelo físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976). Essa análise é realizada de modo a ressaltar os fortes vínculos constitutivos entre ambas as noções.

Palavras-chave: Werner Heisenberg. Beleza. Verdade. Filosofia da ciência. História da ciência.


RESUMEN


En este artículo, presentamos un análisis de las nociones de belleza y de verdad según el pensamiento desarrollado por el físico alemán Werner Heisenberg (1901-1976). Ese análisis fue echo de modo a subrayar los fuertes vínculos constitutivos entre las dos nociones.


Palabras clave: Werner Heisenberg. Belleza. Verdad. Filosofía de la ciencia. Historia de la ciencia.


ABSTRACT

In this article we present an analysis of the notions of beauty and truth according to the thought developed by the German physician Werner Heisenberg (1901-1976). This analysis is done in such a way as to highlight the strong constitutive bonds between those two notions.


Keywords: Werner Heisenberg. Beauty. Truth. Philosophy of Science. History of Science.

 

 

Introdução


Recentemente, o físico teórico italiano Carlo Rovelli, autor de livros destinados ao grande público, escreveu um artigo, publicado em um periódico de física, afirmando que a filosofia é importante e útil para a física (Rovelli, 2018). Contrapondo-se à opinião de autoridades como Steven Weinberg, Stephen Hawking e Neil de Grasse Tyson, Rovelli defende que a física, a bem da verdade, precisa de filosofia. Em um jogo em que o peso das autoridades é relevante, uma vez que argumentos ou resultados empíricos não são capazes de mudar as posições contrárias, o cientista italiano recorre a nomes consagrados para afirmar:


Thus, if we read what the greatest scientists had to say about the usefulness of philosophy, physicists like Heisenberg, Schrödinger, Bohr, and Einstein, we find that they expressed totally opposite opinions to those of Hawking and Weinberg (Rovelli 2018, p. 482. Itálicos nossos).


Nada do que se encontra acima é novo para aqueles que se interessam pela relação entre filosofia e ciência. A relação entre as duas é importante a ponto de se poder considerar a filosofia como contribuindo para a existência da ciência natural. Sem a presença de um elemento não científico, a ciência simplesmente não existiria, nas palavras de Einstein (1981, p. 13), “O espírito científico, fortemente armado com seu método, não existe sem a religiosidade cósmica.” A natureza desse elemento não científico pode ser – e de fato é – objeto de discussões e controvérsias (Videira, 2013). Recorrendo ao exemplo que será trabalhado no presente artigo, o físico teórico alemão Werner Heisenberg, argumentaremos em favor da seguinte tese: esse elemento não científico possui uma natureza complexa, já que é metafísico, epistemológico e estético. Metafísico porque diz respeito à realidade, epistemológico porque concerne à linguagem donde a conceitos e, finalmente, estético porque a beleza também se faz presente devido à sua capacidade de servir como meio para a exibição da verdade. Uma das questões mais relevantes para a discussão aqui encetada é saber em que medida os três elementos estão sempre unidos ou se podem aparecer em separado.

Reconhecendo a necessidade de oferecer um esclarecimento a respeito daquilo que nós estamos tomando como metafísica, pensamos que esta última é fundamentalmente a definição, ou a caracterização – o que não é o mesmo que definição – do próprio objeto de estudo da ciência natural: a realidade (ou natureza, mundo externo, universo, entre tantos outros termos semelhantes) (Rovelli, 2018). Em outros termos, metafísica diz respeito à natureza do próprio objeto de estudo da ciência. Esta natureza é tripla. Ela se refere à natureza externa ao homem, refere-se também à natureza do próprio homem e, finalmente, refere-se à natureza da ciência. A ciência interessa-se pelos dois tipos de natureza, o que acaba por provocar o aparecimento de dificuldades metodológicas, epistemológicas e científicas, principalmente devido ao fato de que as duas naturezas estão vinculadas entre si. O homem integra a natureza, gerando implicações ainda hoje desconhecidas, seja para a ciência, seja para a filosofia.


Heisenberg, realidade e linguagem

Heisenberg era incrédulo com relação à possibilidade de a ciência dispensar a filosofia. Não nos parece equivocado afirmar que uma das suas metas, ao redigir os seus textos filosóficos, seria convencer os seus colegas de que deveriam aceitar a presença da filosofia. Uma boa ciência começaria pelo reconhecimento da presença ativa da filosofia. Os cientistas não deveriam se declarar neutros em filosofia. Ao contrário, deveriam optar por uma escola, ou doutrina, filosófica, ainda que tal opção pudesse mudar com o passar do tempo. No caso do físico alemão, a sua decisão foi opor-se ao materialismo científico, uma perspectiva filosófica, segundo o próprio Heisenberg, criada ao longo do século XIX. Para Heisenberg, o materialismo, ao menos enquanto ontologia, era uma ilusão: “Die Ontologie des Materialismus beruhte auf der Illusion, dass man die Art der Existenz, das unmittelbar Faktische der uns umgebenden Welt, auf die Verhältnisse im atomaren

Bereich extrapolieren könne. Aber diese Extrapolation ist unmöglich.” (Heisenberg apud Krüger, 1970)14

Ao recorrermos ao exemplo de Heisenberg para discorrer em favor das vinculações entre ciência e filosofia, não alimentamos a pretensão de expor alguma tese nova ou desconhecida. Estamos convencidos de que não é mais possível querer contribuir com nenhuma novidade em um assunto há tanto tempo discutido como este.

Gregor Schiemann (2009), um intérprete contemporâneo de Heisenberg, descreve com as seguintes palavras a relação de Heisenberg com a filosofia:

Heisenberg war nicht nur handelnder, sondern auch reflektierender Naturforscher. Die Formen, in denen Heisenberg seine Überlegungen und Gedanken ausarbeitete, sofern sie sich nicht auf fachwissenschaftliche Probleme beschränkten, waren vor allem Vorträge und öffentliche Reden. Die grundsätzlichen Elemente seines Denkens blieben im wesentlichen dieselben, angefangen von den frühen Vorträgen in den 1930er Jahren bis zu den späten der 1970er Jahre, auch wenn die Texte natürlich jeweils historisch zeitgebunden waren und in Einzelheiten von konkreten Anlässen abhingen. Heisenberg war davon überzeugt, dass dem physikalischen Wissen eine außerordentliche Bedeutung für das Verständnis der Welt und die Gestaltung des modernen Lebens zukomme. (…) Die philosophische Relevanz der Atomphysik sah Heisenberg darin, dass zum ersten Mal in der Geschichte der Naturwissenschaft deren eigene Erkenntnisgrenzen empirisch nachgewiesen worden seien. In seinem Denken nahm die Diskussion dieser Grenze und die Rolle des nichtphysikalischen Wissens eine zentrale Stellung ein. Er entwarf ein wissenschaftliches Weltbild, das die gesamte Wirklichkeit in einer plural verfassten und historisch veränderlichen Struktur zu ordnen suchte (Schiemann, 2009)15.


Da longa citação acima, gostaríamos de chamar a atenção para a concepção de realidade de Heisenberg; ela seria plural ou múltipla. Plural por ser composta de diferentes níveis, ou camadas, mas também por ela ser condicionada pelo tempo. Duas consequências podem ser extraídas desta noção de realidade plural e múltipla, A primeira diz respeito ao fato de que o conhecimento acerca da realidade se transforma com o avanço da ciência. E a segunda afirma que não há filosofia capaz de apreender, de modo global, completo e coerente, seja a realidade, seja o conhecimento humano sobre ela.


A realidade estudada pela ciência corresponde a uma parte desta mesma totalidade. É um erro acreditar que as verdades da ciência correspondem à realidade como se esta última fosse tal e qual aquilo que é afirmado pelas leis, teorias e modelos científicos. Não apenas a ciência é menor do que a totalidade – tudo aquilo que pode ser produzido pelos seres humanos: arte, filosofia, religião, etc será sempre menor do que a totalidade, mas ela (a ciência) é menor do que até mesmo a realidade natural. Aquilo que chamamos de realidade corresponde ao que resulta da interação que mantemos com o mundo externo e não apenas através dos nossos sentidos.

Uma das características dos escritos filosóficos de Heisenberg é a repetição de temas e teses que foi mais evidente a partir do final da Segunda Guerra Mundial, quando o ele foi levado a apresentar sua concepção de ciência. Como não poderia deixar de ser, Heisenberg discorria sobre a noção de realidade, a qual para ele, poderia ser caracterizada como sendo:


14 “A ontologia do materialismo baseava-se na ilusão de que o tipo de existência, a natureza diretamente factual do mundo ao nosso redor, poderia ser extrapolado para o reino atômico. Mas essa extrapolação é impossível” (apud Krüger, 1970, tradução nossa).

15 Heisenberg não era apenas um cientista natutal atuante, mas também um que refletia. As formas em que Heisenberg elaborou seus pensamentos e pensamentos, na medida em que se limitassem a problemas científicos, eram principalmente palestras e discursos públicos. Os elementos básicos de seu pensamento permaneceram essencialmente os mesmos, desde as primeiras palestras na década de 1930 até o final da década de 1970, mesmo que os textos fossem, naturalmente, historicamente limitados no tempo e dependessem em detalhes de ocasiões específicas. Heisenberg estava convencido de que o conhecimento físico era extremamente importante para entender o mundo e moldar a vida moderna. (...) Heisenberg viu a relevância filosófica da física atômica no fato de que, pela primeira vez na história das ciências naturais, os seus próprios limites de conhecimento haviam sido empiricamente comprovados. A discussão desse limite e o papel do conhecimento não-físico tiveram um papel central em seu pensamento. Ele projetou uma visão científica do mundo que buscava organizar toda a realidade em uma estrutura plural e historicamente mutável.” (Schiemann, G., 2009, Tradução nossa)

 

 

Die Wirklichkeit, von der wir sprechen können, ist nie die Wirklichkeit an sich, sondern eine gewusste Wirklichkeit oder sogar in vielen Fällen eine von uns gestaltete Wirklichkeit. Wenn gegen diese letztere Formulierung eingewandt wird, dass es schließlich doch eine objektive, von uns und unserem Denken völlig unabhängige Welt gebe, die ohne unser Zutun abläuft oder ablaufen kann und die wir eigentlich mit der Forschung meinen, so muss diesem zunächst so einleuchtendem Einwand entgegengehalten werden, dass schon das Wort ‘es gibt’ aus der menschlichen Sprache stammt und daher nicht gut etwas bedeuten kann, das gar nicht auf unser Erkenntnisvermögen bezogen wäre. Für uns gibt es eben nur die Welt, in der das Wort ‘es gibt’ einen Sinn hat (Heisenberg, 1959).16


 

Uma tal concepção de realidade impossibilita a manutenção da distinção entre sujeito e objeto (Costa, 2008). São muitas as passagens em que Heisenberg se pronuncia contra a partição dualista, segundo ele proposta por Descartes. Heisenberg não apenas recusa-se a ver o mundo como constituído por apenas duas partes, mas também não aceita que subjetivo e objetivo estejam em pólos opostos e incomunicáveis. Os níveis que constituem a sua própria concepção de realidade contem elementos subjetivos e objetivos, ao mesmo tempo (Heisenberg, 2008 [1942]).

Muitos seriam os meios à disposição dos seres humanos para tentar atingir e descrever a realidade. Para Heisenberg, a realidade não deveria ser encarada como se fosse um monólito, uma estrutura única. Ao contrário, ela seria constituída por várias camadas ou níveis diferentes. O ser humano pode interagir com aquilo que está fora dele por meio de diferentes ‘instrumentos’ como, por exemplo, a linguagem, talvez o seu mais frequente e poderoso ‘instrumento’ para lidar com a realidade. Não se deve esquecer que ele também pode interagir com o seu próprio interior. Nas palavras do já mencionado Schiemann:


Verschiedene Erkenntnisweisen kommen nach Heisenberg zum einen nebeneinander vor, so dass die Menschen die Welt gleichsam aus unterschiedlichen Perspektiven betrachten können. Mit dem Wechsel der Perspektive wandelt sich die Welt. Die größte Differenz besteht zwischen den Perspektiven des religiösen Glaubens und der Wissenschaft. Aber auch innerhalb des Horizontes der wissenschaftlichen Erkenntnis weist Heisenberg Unterschiede nach, die sich nur bedingt in ein einheitliches Schema integrieren lassen. Zum anderen unterliegen seiner Auffassung nach alle Erkenntnisweisen einem Wandel in der Zeit. Es verändert sich nicht nur die Reichweite ihrer Geltung, sondern teilweise auch das epochale Ordnungsschema, in dem sie eingebettet sind. Insofern Heisenberg den historischen Wandel als diskontinuierliche Entwicklung beschreibt, kann man ihn als Theoretiker der Erkenntnisrevolutionen und des Epochenbruches bezeichnen. Er betont zugleich aber auch die sich durchhaltenden Elemente der Kontinuität und damit die Grenzen seiner eigenen pluralistischen Philosophie (Schiemann, 2009).17


Como já foi afirmado anteriormente, Werner Heisenberg recusava uma concepção cientificista, materialista, positivista ou mecanicista da realidade. Em outros termos, ele recusava toda e qualquer concepção de realidade que reduzisse esta última a um único aspecto. A sua atitude pode ser explicada pela impossibilidade de se conseguir, por meio de definições, axiomatizações e interpretações, a estabilidade ou a finalização conceitual. As dificuldades inerentes aos conceitos apenas em parte podem ser consideradas como responsáveis pela dificuldade, vivida pela ciência, em compreender a realidade. Outros elementos se fazem presentes, sendo igualmente efetivos.



16 “A realidade da qual podemos falar nunca é a realidade em si mesma, mas uma realidade conhecida ou, em muitos casos, uma realidade que projetamos. Se se opõe a esta última formulação que existe, afinal, um mundo objetivo que é completamente independente de nós e de nosso pensamento, que é ou pode ser executado sem nossa intervenção e que realmente queremos dizer com pesquisa, devemos primeiro combater essa objeção, que é tão plausível que a palavra ‘existe’ vem da linguagem humana e, portanto, não pode significar algo que não esteja relacionado ao nosso conhecimento. Para nós, existe apenas o mundo em que a palavra ‘existe’ faz sentido” (Heisenberg, 1959, tradução nossa).

17 “Segundo Heisenberg, diferentes maneiras de conhecer ocorrem lado a lado para que as pessoas possam ver o mundo de diferentes perspectivas, por assim dizer. À medida que a perspectiva muda, o mundo muda. A maior diferença está entre as perspectivas da crença religiosa e da ciência. Mas Heisenberg também demonstra diferenças dentro do escopo do conhecimento científico que só podem ser integrados em um esquema uniforme em uma extensão limitada. Por outro lado, em sua opinião, todas as cognições estão sujeitas a alterações no tempo. Não apenas o escopo de sua validade muda, mas, em alguns casos, a ordem de época em que estão incorporados. Na medida em que Heisenberg descreve a mudança histórica como um desenvolvimento descontínuo, ele pode ser descrito como um teórico da revolução epistemológica e da ruptura epocal. Ao mesmo tempo, porém, ele enfatiza os elementos persistentes da continuidade e, portanto, os limites de sua própria filosofia pluralista.” (Schiemann, 2009, tradução nossa).

 

 

Consideremos, a título de exemplo, o materialismo. Na não aceitação do materialismo haveria ainda a crença de Heisenberg na existência de uma ordem central; ordem esta que não poderia ser descrita, compreendida e reconstruída a partir dos átomos. Heisenberg não colocava em questão a existência dessa ordem central como se constata na sua autobiografia nas passagens em que ele reconstrói o diálogo que manteve em 1952 em Copenhague com Wolfgang Pauli (Heisenberg, 1995 [1952]).


Segundo Heisenberg, a presença de uma ordem central está ligada à busca pela unidade. Em outros termos, quem busca a unidade o faz porque acredita que a realidade seja intrinsecamente ordenada:


Wenn man zurückblickt auf die griechische Philosophie von ihrem Beginn bis zu diesem Punkt, so erkennt man, dass sie von Anfang an getragen wurde durch die Spannung zwischen dem Einen und dem Vielen. Für unsere Sinne besteht die Welt aus einer unendlichen Vielfalt von Dingen und Vorgängen, von Farben und Klängen. Aber um sie zu verstehen, müssen wir irgendeine Art von Ordnung einführen. Ordnung bedeutet, zu erkennen, was gleich ist; Ordnung bedeutet eine Art von Einheit. An dieser Stelle entspringt dann der Glaube, dass es ein Grundprinzip geben müsse; aber zur gleichen Zeit entsteht auch die Schwierigkeit, aus ihm die unendliche Vielfalt der Dinge zu erklären (Heisenberg, 1984, p. 46–47).18


Heisenberg afirmava que a realidade capaz de ser estudada pela ciência, seja esta última natural ou humana, é incapaz de contribuir para que o ser humano alcance a ordem central. A ciência pode contribuir positivamente para a concretização deste objetivo, na medida em que é uma prática coletiva e dialógica, além, é claro, de poder conhecer certos aspectos dessa realidade maior e englobante. No entanto, este objetivo da ciência torna-se prejudicial caso ela arrogue para si uma capacidade inexistente, a saber: atingir uma compreensão da totalidade. O reconhecimento da existência da ordem central não pode ocorrer por meio da ‘faculdade do entendimento’.

A segurança, obtida através dos conceitos, implica na diminuição daquilo que pode ser experienciado, apreendido e alcançado na realidade, acabando por levar a uma crise, já que diminui a base empírica dos conceitos. Essa crise se faz presente, como aparecendo de modo incontestável, na instabilidade na relação entre conceito e realidade. Os conceitos nunca podem corresponder exata e/ou plenamente à realidade, ainda mais porque eles são criações historicamente determinadas. A axiomatização conceitual é incapaz de eliminar os traços referentes à origem dos conceitos. Essa incapacidade não faz com que a axiomatização, tão celebrada pelos neopositivistas, seja completamente inútil, apenas mostra que ela não é capaz de resolver problemas referentes à relação entre nomes e objetos.

Apesar de ser cético com relação a sobrevalorização neopositivista da linguagem, Heisenberg acreditava que considerar cuidadosamente a linguagem poderia render benefícios. As disputas conceituais, ou terminológicas, seriam como que o indicativo de que algo está se passando nos fundamentos da ciência, tal como a inexistência de um consenso entre os seres humanos (ou ainda, de modo mais restrito, entre os cientistas) com relação ao que é a realidade. As diferenças e disputas terminológicas entre cientistas poderiam indicar mudanças na concepção de realidade então vigente.

Caso leve-se a sério essas diferenças e disputas, isto, é, caso elas sejam tomadas como indicando algo mais profundo do que apenas uma diferença entre convenções, não se torna impossível concluir que os cientistas jamais concordam com relação àquilo que há de mais fundamental nas suas ciências. Isto porque uma análise detida dos seus escritos mostra, com facilidade, diferenças conceituais. Ou seja, os termos não possuem os mesmos significados para todos os cientistas. Os dois parágrafos abaixo exibem com nitidez uma das opiniões de Heisenberg sobre a relação entre linguagem e realidade.

Immer wieder in der Geschichte der Naturwissenschaften haben überraschende Entdeckungen und neue Ideen zu wissenschaftlichen Auseinandersetzungen geführt; sie haben polemische Veröffentlichungen entstehen lassen, die die neuen Ideen kritisieren, und solche Kritik ist oft für ihre Entwicklung durchaus


18 “Se se olhar para a filosofia grega desde o início até este ponto, será possível constatar que ela está, desde o início, apoiada pela tensão entre o uno e o múltiplo. Para os nossos sentidos, o mundo consiste em uma variedade infinita de coisas e processos, de cores e sons. Mas, para entender isso, precisamos introduzir algum tipo de ordem. Ordem significa reconhecer o que é o mesmo; ordem significa um tipo de unidade. É aqui que surge a crença de que deve haver um princípio básico; mas, ao mesmo tempo, surge a dificuldade de explicar a variedade infinita de coisas.” (Heisenberg, 1984, p. 46–47, tradução nossa)

 

nützlich gewesen. Aber diese Kontroversen haben fast nie vorher jenen Grad von Heftigkeit erreicht, den sie nach der Entdeckung der Relativitätstheorie, und in einem geringeren Grade auch nach der Quantentheorie, annahmen. In beiden Fällen sind die wissenschaftlichen Probleme schließlich sogar mit politischen Streitfragen verknüpft worden, und einige Physiker haben bei den politischen Methoden Zuflucht gesucht, um ihren Ansichten zum Sieg zu verhelfen.


Diese heftige Reaktion auf die jüngste Entwicklung der modernen Physik kann man nur verstehen, wenn man erkennt, daß hier die Fundamente der Physik und vielleicht der Naturwissenschaft überhaupt in Bewegung geraten waren, und daß diese Bewegung ein Gefühl hervorgerufen hat, als würde der Boden, auf dem die Naturwissenschaft steht, uns unter den Füßen weggezogen. Gleichzeitig bedeutete es aber doch wohl auch, daß man noch nicht die richtige Sprache gefunden hatte, in der man über die neue Situation sprechen konnte, und daß die ungenauen und zum Teil unkorrekten Behauptungen, die hier und dort in der Begeisterung über die neuen Entdeckungen veröffentlicht worden sind, alle Arten von Mißverständnissen hervorgerufen haben. Hier handelt es sich in der Tat um ein schwieriges, grundsätzliches Problem (Heisenberg, 2000)19.


Ainda assim, os cientistas não têm melhor meio para se fazer compreender do que a linguagem. Não se pode abandoná-la como também não se pode desistir de aperfeiçoá-la através de novas definições e precisões linguísticas:

Andererseits muß die Naturwissenschaft ja auf die Sprache als das einzige Mittel zur Verständigung begründet werden, und daher müssen hier, wo das Problem der Unzweideutigkeit von der größten Wichtigkeit ist, die logischen Schlußverfahren ihre Rolle spielen. Die charakteristische Schwierigkeit an dieser Stelle kann vielleicht in der folgenden Weise beschrieben werden: In der Naturwissenschaft versuchen wir das Spezielle aus dem Allgemeinen abzuleiten; das Einzelphänomen soll als Folge einfacher allgemeiner Gesetze verstanden werden. Die allgemeinen Gesetze können, wenn sie sprachlich formuliert werden, nur einige wenige Begriffe enthalten, denn sonst wäre das Gesetz nicht einfach und allgemein.


Aus diesen Begriffen muß nun eine unendliche Vielfalt von möglichen Erscheinungen hergeleitet werden, und zwar nicht nur qualitativ und ungenau, sondern mit größter Genauigkeit hinsichtlich jeder Einzelfrage. Es ist unmittelbar einzusehen, daß die Begriffe der gewöhnlichen Sprache, ungenau und unscharf definiert, wie sie sind, niemals solche Ableitung zulassen könnten. Wenn aus gegebenen Voraussetzungen eine Kette von Schlüssen hergeleitet werden soll, so hängt die Anzahl der möglichen Glieder in der Kette von der Genauigkeit der Voraussetzungen ab. In der Naturwissenschaft müssen daher die Grundbegriffe in den allgemeinen Gesetzen mit äußerster Präzision definiert werden, und das ist nur mit Hilfe der mathematischen Abstraktion möglich (Heisenberg, 2000).20


O aumento da precisão conceitual pode ser obtido através do recurso à matemática, ainda que esta não possa revolver todos os problemas relativos à precisão. Aliás, para Heisenberg, a matemática não é relevante por contribuir para a precisão ou exatidão. Sua relevância decorre fundamentalmente da sua capacidade de exibir a beleza, existente na natureza, e, deste modo, conduzir os cientistas à verdade. A


19 “Repetidas vezes, na história das ciências naturais, descobertas surpreendentes e novas idéias levaram a debates científicos; eles criaram publicações polêmicas que criticam as novas idéias, e essa crítica tem sido frequentemente útil para seu desenvolvimento. Mas essas controvérsias quase nunca atingiram o nível de virulência que assumiram após a descoberta da relatividade e, em menor grau, a teoria quântica. Em ambos os casos, os problemas científicos foram vinculados a questões políticas, e alguns físicos recorreram a métodos políticos para ajudar a ganhar suas visões. “Essa reação violenta ao recente desenvolvimento da física moderna só pode ser entendida caso se perceba que aqui os fundamentos da física, e talvez da ciência natural, começaram a se mover e que esse movimento criou um sentimento como se o solo, sobre o qual a ciência natural se encontra, estivesse se abrindo e nos puxou para debaixo de nossos pés. Ao mesmo tempo, porém, também significava que ainda não havia encontrado o idioma certo para falar sobre a nova situação, e que as declarações imprecisas e às vezes incorretas foram divulgadas aqui e ali no entusiasmo pelas novas descobertas. causarndo todos os tipos de mal-entendidos. Aqui, de fato, se está diante de um problema difícil e fundamental.” (Heisenberg, 2000, tradução nossa).

20 “Por outro lado, a ciência natural deve basear-se na linguagem como o único meio de comunicação e, portanto, onde o problema da ambiguidade é da maior importância, os procedimentos de inferência lógica devem desempenhar seu papel. A dificuldade característica nesse ponto talvez possa ser descrita da seguinte maneira: na ciência, nós tentamos derivar o particular do geral; o fenômeno individual deve ser entendido como uma conseqüência de leis gerais simples. As leis gerais só podem conter alguns termos se forem formuladas linguisticamente; caso contrário, a lei não seria simples e geral. “Uma variedade infinita de aparências possíveis deve agora ser derivada desses termos, não apenas qualitativa e imprecisa, mas com a maior precisão em relação a cada questão individual. É imediatamente perceptível que os termos da linguagem comum, por mais imprecisos e confusos que sejam, nunca poderiam permitir tal derivação. Se uma cadeia de conclusões deve ser derivada de determinadas condições, o número de elos possíveis na cadeia depende da precisão das condições. Na ciência natural, portanto, os conceitos básicos das leis gerais devem ser definidos com extrema precisão, e isso só é possível com a ajuda da abstração matemática.” (Heisenberg, 2000, tradução nossa).

 

 

matemática não tem como resolver todos os problemas que acometem a ciência, já que esta última recorre, como não poderia deixar de ser, à linguagem ordinária ou cotidiana. Entre outras consequências, a presença incontornável da linguagem ordinária ou cotidiana faz com que a linguagem da ciência seja vaga e imprecisa.

So spricht man etwa über Elektronenbahnen, über Materiewellen und Ladungsdichte, über Energie und Impuls usw., bleibt sich dabei aber immer der Tatsache bewußt, daß diese Begriffe nur einen sehr begrenzten Anwendungsbereich besitzen. Sobald dieser vage und unsystematische Gebrauch der Sprache zu Schwierigkeiten führt, muß sich der Physiker in das mathematische Schema zurückziehen und dessen eindeutige Verknüpfung mit den experimentellen Tatsachen benützen. Diese Verwendung der Sprache ist in mancherlei Weise recht befriedigend, da sie uns an einen ähnlichen Gebrauch der Sprache im täglichen Leben oder in der Dichtung erinnert (Heisenberg, 2000).21


Imprecisos, vagos, insuficientes, todos esses predicados podem ser atribuídos aos conceitos. No entanto, nada disso faz com que eles possam desaparecer, seja da vida diária, seja da ciência, como se fossem dispensáveis. Sem eles, nós não temos como penetrar no mundo dos fenômenos naturais, principalmente aqueles fenômenos situados nas dimensões cosmológicas ou atômicas. Os conceitos são como que guias, que conduzem os cientistas na exploração dessas esferas por demais distantes do corpo humano, mas não tão distantes da razão e da fantasia humanas. É por isto que o emprego da linguagem por parte de um cientista é semelhante ao de um poeta. Os conceitos são como que elementos com a capacidade de contribuir para transformar aquilo que não é ainda empiricamente determinado em presente e efetivo.


In ähnlicher Weise sind in der Quantentheorie alle klassischen Begriffe, wenn man sie auf das Atom anwendet, ebensowohl und ebensowenig definiert wie die Temperatur des Atoms, sie sind mit statistischen Erwartungen verknüpft; nur in seltenen Fällen können die Erwartungen nahezu an Sicherheit grenzen. Wieder ist es ähnlich wie in der klassischen Wärmelehre schwierig, die Erwartung objektiv zu nennen. Man mag sie eine objektive Tendenz oder Möglichkeit nennen, eine Potentia im Sinne der Aristotelischen Philosophie. In der Tat glaube ich, daß die Sprache, die bei den Physikern gebräuchlich ist, wenn sie über Atomvorgänge sprechen, in ihrem Denken ähnliche Vorstellungen hervorruft wie der Begriff Potentia.

So haben sich die Physiker allmählich wirklich daran gewöhnt, die Elektronenbahnen und ähnliche Begriffe nicht als eine Wirklichkeit, sondern eher als eine Art von Potentia zu betrachten. Die Sprache hat sich, wenigstens in einem gewissen Ausmaße, schon an die wirkliche Lage angepaßt. Aber es ist nicht eine präzise Sprache, in der man die normalen logischen Schlußverfahren benützen könnte; es ist eine Sprache, die Bilder in unserem Denken hervorruft, aber zugleich mit ihnen doch auch das Gefühl, daß die Bilder nur eine unklare Verbindung mit der Wirklichkeit besitzen, daß sie nur die Tendenz zu einer Wirklichkeit darstellen.

In den Experimenten über Atomvorgänge haben wir mit Dingen und Tatsachen zu tun, mit Erscheinungen, die ebenso wirklich sind wie irgendwelche Erscheinungen im täglichen Leben. Aber die Atome oder die Elementarteilchen sind nicht ebenso wirklich, sie bilden eher eine Welt von Tendenzen oder Möglichkeiten als eine von Dingen und Tatsachen (Heisenberg, 2000).22


21 “Fala-se, por exemplo, sobre órbitas de elétrons, sobre ondas de matéria e densidade de carga, sobre energia e momento etc., mas sempre permanece consciente do fato de que esses termos têm apenas uma área de aplicação muito limitada. Assim que esse uso vago e sistemático da linguagem levar a dificuldades, o físico precisa se voltar para o esquema matemático e usar sua clara conexão com os fatos experimentais. Esse uso da linguagem é bastante satisfatório em muitos aspectos, porque nos lembra um uso semelhante da linguagem na vida cotidiana ou na poesia.” (Heisenberg, 2000, tradução nossa).

22 “Da mesma forma, na teoria quântica, quando aplicados ao átomo, todos os termos clássicos são tão e tão pouco definidos quanto a temperatura do átomo; eles estão ligados a expectativas estatísticas; somente em casos raros, as expectativas quase limitam a segurança. Novamente, é difícil, como na teoria clássica do calor, nomear objetivamente a expectativa. Pode-se chamá-lo de tendência ou possibilidade objetiva, uma potentia no sentido da filosofia aristotélica. De fato, acredito que a linguagem que os físicos usam quando falam sobre processos atômicos gera idéias semelhantes em seus pensamentos como o termo potentia. “Gradualmente, os físicos realmente se acostumaram a ver as órbitas eletrônicas e termos semelhantes, não como uma realidade, mas como uma espécie de potentia. A linguagem se adaptou, pelo menos em certa medida, à situação real. Mas não é uma linguagem precisa na qual se possa usar os procedimentos normais de raciocínio lógico; é uma linguagem que evoca imagens em nosso pensamento, mas ao mesmo tempo com elas o sentimento de que as imagens só têm uma conexão pouco clara com a realidade, que apenas representam a tendência a uma realidade. “Nas experiências com processos atômicos, lidamos com coisas e fatos, com fenômenos tão reais quanto qualquer fenômeno na vida cotidiana. Mas os átomos ou as partículas elementares não são tão reais, eles formam um mundo de tendências ou possibilidades, e não um [mundo] de coisas e fatos.” (Heisenberg, 2000, tradução nossa).

 

Ao aproximar a prática do cientista natural daquela existente no domínio da poesia, Heisenberg procura lembrar que os conceitos não apenas designam coisas como processos, objetos e estados, mas, e talvez esta seja uma função tão importante quanto aquela, os conceitos são usados como elementos para tatear a realidade. Os conceitos são como as antenas dos insetos que ajudam a tocar a avançar em meio a uma realidade, que se mostra pouco visível ou nítida. Ou ainda, os conceitos são como que a bengala de um(a) cego(a). Tal como no caso dos insetos e dos cegos, a realidade não se encontra ‘à disposição’ dos investigadores sem que estes últimos estejam munidos de conceitos, os quais não podem ser separados da realidade que ajudam a desvelar e conhecer. Separados aqui significa que não se pode determinar uma lnha nítida e precisa entre os conceitos e os fenômenos.


Heisenberg e a noção de beleza


As limitações inerentes aos conceitos fazem com que eles devam ser como que acompanhados de outros elementos, os quais contribuem para que a ciência possa descrever e conhecer a realidade. Esses outros elementos são determinados pela filosofia. Determinação aqui não significa que a existência de tais elementos se dê apenas através da filosofia. Esta última pode ajudar a escolher entre os muitos tipos de elementos. Um exemplo concreto é a noção de beleza. Não apenas a lógica poderia ser útil e relevante no aproveitamento das contribuições positivas obtidas com os conceitos; também a beleza poderia extrair dos conceitos aquilo que eles podem dar para a descrição e compreensão do comportamento da natureza (ou realidade).


Heisenberg também considerava a beleza da matemática como um dos sinais de que uma teoria física tinha chances de “encaixar-se” à natureza, ou seja, de que seria possível afirmar a existência de corroboração experimental para a mesma. Ele parecia acreditar que existiria uma harmonia na natureza que pode ser descrita em termos matemáticos – e que as formas dessa matemática refletiriam as características naturais dos fenômenos.


Ao pronunciar-se sobre o significado da beleza nas ciências naturais em conferência pronunciada na Academia de Belas Artes de Munique, Heisenberg afirma que, embora naquela academia a “beleza” era algo usualmente referido às “artes, o reino do belo estende-se bem além do seu território. Este certamente engloba outras regiões da vida mental também; e a beleza da natureza também é refletida na beleza da ciência natural (Heisenberg, 1974, p. 167).”23 Para defender seu ponto de vista, o de que existe essa relação estreita entre a beleza natural e a beleza da ciência, o físico alemão recorre aos filósofos da antiguidade e suas definições, uma das quais recorre reiteradamente, a que “descreve a beleza como a conformidade adequada das partes entre si e com o todo.”24 A simplicidade e completude do sistema euclidiano são tidas como belas no modo como as partes pertencem ao todo e em sua relação umas com as outras e Heisenberg refere a como a beleza estava envolvida no “problema milenar do ‘um’ e do ‘múltiplo’ que ocupou, estreitamente ligado ao problema do ‘ser’ e do ‘vir a ser’, uma posição central na filosofia grega antiga” (Heisenberg, 1974, p. 168). A simplicidade e a completude contribuem para que a harmonia e o equilíbrio surjam de forma natural e equilibrada.


A história da relação entre beleza e matemática teria início com Pitágoras, a quem é atribuída a descoberta de que “cordas vibrando sob tensão igual soam harmônicas se os seus comprimentos estiverem em uma razão numérica simples. Assim, a relação matemática também era fonte de beleza.” Isso deu origem à ideia de que “a ordem matemática era o princípio básico através do qual a multiplicidade de fenômenos poderia ser descrita” (Heisenberg, 1974, p. 169).


A beleza, conforme a primeira de nossas definições antigas, é a conformidade adequada das partes entre si e com o todo. As partes aqui são as notas individuais, enquanto o todo é o som harmônico. A relação matemática pode, desse modo, reunir duas partes inicialmente independentes em um todo e produzir


23 “the arts, the realm of the beautiful stretches far beyond their territory. It assuredly encompasses other regions of mental life as well; and the beauty of nature is also reflected in the beauty of natural science (HEISENBERG, 1970, p. 167).”

24 “describes beauty as the proper conformity of the parts to one another, and to the whole (Heisenberg, 1970, p. 168).”

beleza. Essa descoberta realizou um avanço na doutrina pitagórica para formas totalmente novas de pensamento, suscitando, assim, a ideia de que a base primordial de todo ser não era mais vista como matéria sensorial, tal como a água em Tales; mas um princípio ideal de forma. Isso afirmou uma ideia básica que, mais tarde, forneceu o fundamento para todas as ciências exatas. (Heisenberg, 1974, p. 169)25


A utilização da filosofia antiga em defesa da beleza das construções abstratas possui aspectos interessantes. Ela mostra como a questão remonta à tradição antiga sem deixar de ser atual. Além disso, apresenta de modo simples como a apreciação da beleza pode ser colocada para entidades abstratas, conforme foi discutido por McAllister (1996). As ciências exatas são oriundas dessa tradição antiga e a relação entre as construções matemáticas e a natureza já é dada nessa origem.


Compreender a multiplicidade colorida dos fenômenos foi, desse modo, estreitada através do reconhecimento neles dos princípios unitários da forma, que podem ser expressos na linguagem da matemática. Através disso, também, uma conexão íntima foi estabelecida entre o inteligível e o belo. Porque se o belo é concebido como a conformidade das partes entre si e com o todo, e se, por outro lado, toda compreensão é tornada possível primeiro por meio dessa conexão formal, então a experiência do belo se torna virtualmente idêntica à experiência das conexões, seja compreendidas ou pelo menos supostas (Heisenberg, 1974, p. 169).26


Ou seja, para o autor, a percepção de beleza e a de inteligibilidade são basicamente o mesmo. Ele segue referenciando os gregos antigos para afirmar o mesmo da relação entre o belo e o bom. Entretanto, embora as ideias dos antigos da relação entre beleza e entendimento fossem o fundamento das ciências exatas, elas não poderiam ter sido desenvolvidas naquela época, resultando em conflitos, tais como os atuais, entre aqueles que defendem um conhecimento mais empírico, e os que se dedicam à física teórica. Esses conflitos não podiam ser resolvidos na época antiga, mas hoje, para o autor, podem. Para Heisenberg, não haveria razão para tais conflitos, pois o caminho natural das ciências seria aquele que levaria a uma convergência entre as duas abordagens. Mas a divergência que o conflito entre as duas tendências gerou separou, até os dias de hoje, os estudos do belo e das ciências, sendo a abordagem teórica abstrata do estudo da matemática vista como trabalho infrutífero para a descrição da natureza, se não aliada às evidências empíricas (Heisenberg, 1974, p. 170ss; Puig, 2018).

Ao defender a aproximação da matemática bela aos fenômenos da natureza, Heisenberg defende aquilo que também se viu em Dirac, uma relação direta e intrínseca entre a cognição e a inteligibilidade e a natureza (Puig, 2018). Essa relação se manifesta ou pode ser identificada através da matemática bela. Para ele, Galileu, Kepler e Newton “apontam o caminho” para as ciências exatas de hoje, que muito embora tenham se calcado em observações, obtiveram enorme sucesso com a simplificação destas em teorias abstratas e matemáticas. Como a definição antiga rege, essa matematização envolvia, para Heisenberg, necessariamente também o belo, uma vez que se trata de dar boa conformação das partes entre si e com o todo (Heisenberg, 1974, p. 173).


O modo como a beleza é significativa para a descoberta da verdade é algo que tem sido reconhecido e enfatizado em todos os tempos. O lema em latim ‘Simplex sigillum veri’ – ‘O simples é o selo da verdade’

– está inscrito em letras grandes no auditório de física da Universidade de Göttingen, como uma exortação àqueles que descobririam novidades; e outro lema em latim, ‘Pulchritudo splendor veritatis’



25 Beauty, so the first of our ancient definitions ran, is the proper conformity of the parts to one another and to the whole. The parts here are the individual notes, while the whole is the harmonious sound. The mathematical relation can therefore assemble two initially independent parts into a whole, and so produce beauty. This discovery effected a breakthrough, in Pythagorean doctrine, to entirely new forms of thought, and so brought it about that the ultimate basis of all being was no longer envisaged as a sensory material such as water, in Thales—but as an ideal principle of form. This was to state a basic idea which later provided the foundation for all exact science (Heisenberg, 1974, p. 169, tradução nossa).

26 Understanding of the colorful multiplicity of the phenomena was thus to conic about by recognizing in them unitary principles of form, which can be expressed in the language of mathematics. By this, too, a close connection was established between the intelligible and the beautiful. For if the beautiful is conceived as a conformity of the parts to one another and to the whole, and if, on the other hand, all understanding is first made possible by means of this formal connection, the experience of the beautiful becomes virtually identical with the experience of connections either understood or at least guessed at (Heisenberg, 1974, p. 169).

 

‘A beleza é o esplendor da verdade’ – também pode ser interpretado como significando que o pesquisador reconhece a verdade, primeiro, por seu esplendor, pelo modo como brilha (Heisenberg, 1974, p. 173).27


Essas mesmas ideias são apresentadas pelo autor em outros textos, mas como é nesse texto que ficam mais claras, é geralmente a ele que fazem referência os outros autores que aqui menciono. Para Heisenberg, há ainda outra definição de beleza que vem da antiguidade e que também pode ser resgatada e ser útil hoje: trata-se da definição atribuída a Plotino, que afirma “A beleza é a transparência, através do fenômeno material, do esplendor eterno do ‘um’”28 (Plotino, sr apud Heisenberg, 1974, p. 180). Fica clara a crença de Heisenberg em uma unidade da natureza que seria refletida na unidade da ciência – e essa unidade é apreendida pelo intelecto através da intuição de beleza.


Conclusão

Como conclusão, apresentamos, aquelas teses, que nos parecem estar entre as mais caras ao físico alemão. Vamos a elas:

  1. A ciência não se resume a uma dimensão operatória devido à sua possibilidade de ser bela. Ou, ao menos, de permitir aos seres humanos reconhecerem que a natureza é bela.

  2. A matemática é uma ciência como as outras, uma vez que ela permite o alcance da beleza.


  3. A verdade é mais do que correspondência aos fatos. Verdade deve integrar, ou religar, os seres humanos à totalidade, o que faz com que a verdade 'cientifica' seja próxima à verdade religiosa. Essa integração não é somente racional.

  4. A verdade não pode ser conhecida individualmente, o que torna o diálogo um meio importante para descobrir, expressar, comunicar, reconhecer e aceitar a verdade.

  5. A beleza é a expressão da verdade.


  6. A verdade permitiria a unificação da ciência.

As seis teses acima não devem ser entendidas como um resumo da ‘filosofia’ de Werner Heisenberg. Ao menos no escopo do presente artigo, elas devem ser compreendidas como indicando em que direção se movimentava o pensamento do físico alemão.


Ao discutir a ciência natural sob a perspectiva da filosofia Heisenberg procurava mostrar que aquela não podia ser devidamente tornada inteligível caso fosse vista como pragmatista, operacionalista, materialista ou positivista. A ciência não se limitava aos resultados obtidos, mesmo que fossem considerados apenas os verdadeiros ou que tivessem sido capazes de gerar aplicações tecnológicas. Ela seria muito mais do que isso, na medida em que os processos, usados para obter aqueles mesmos resultados, não poderiam ser desconsiderados ou descartados. Por isso, a história da ciência integraria a própria ciência.

Há mais: se os processos fazem parte da ciência, se os contextos de descoberta e justificação não podem ser separados como os conceitos não podem ser completamente distinguidos dos objetos que


27 The significance of the beautiful for the discovery of the true has at all times been recognized and emphasized. The Latin motto ‘Simplex sigillum veri’ The simple is the seal of the true is inscribed in large letters in the physics auditorium of the University of Göttingen, as an admonition to those who would discover what is new; and another Latin motto, ‘Pulchritudo splendor veritatis’ – ‘Beauty is the splendor of truth’ - can also be interpreted to mean that the researcher first recognizes truth by this splendor, by the way it shines forth (Heisenberg, 1974, p. 171, tradução nossa).

28 Beauty is the translucence, through the material phenomenon, of the eternal splendor of the ‘one’ (Plotino, sr apud Heisenberg, 1974,

p. 180, tradução nossa.).

 

 

tentam descrever e nomear, a ciência é uma prática compreensiva, na medida em que busca sentido, não apenas para os seus teorias, leis, modelos e resultados, mas também para as suas aplicações.

Ao longo de boa parte de sua vida profissional, Heisenberg procurou mostrar que não seria possível esquecer-se da segunda definição de beleza, aquela que defende que a beleza seria o esplendor da verdade. Essa segunda definição não era intrinsecamente melhor ou superior à primeira, que definia beleza em termos da relação das partes com o todo, o que a vincularia a uma noção de verdade como simplicidade. Heisenberg procurava evitar uma situação onde fosse obrigatório escolher entre simplicidade e complexidade, entre a razão e a ordem central. Sua meta foi sempre a de mostrar que simplicidade e complexidade estão profundamente ligadas, tal como os conceitos e objetos, ou ainda tal como a beleza e a verdade29.


Referências

Costa, F.A. (2008) A idéia de transformação em Werner Heisenberg. Dissertação [Mestrado] Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Einstein, E. (1981) Como Vejo o Mundo. Rio de Janeiro:Nova Fronteira.


Heisenberg, W. (1982) “The Meaning of Beauty in the Exact Sciences.” Heath, P. (Trad.) In: Across the Frontier. New York: Harper & Row, 1974, p. 167-180.


Heisenberg, W. (1984) Physik und Philosophie Stuttgart: Hirzel 4, p. 46–47.

Heisenberg, W. (1995 [1952]) A parte e o todo. Diálogos sobre Física Atômica. Rio de Janeiro: Contraponto.

Heisenberg, W. (2000) “Linguagem e Realidade” In: Physik und Philosophie. Stugart: Hirzel.


Heisenberg, W. (2008 [1942]) Ordenação da Realidade – O Manuscrito de 1942. Rio de Janeiro: Forense Universitária.


Krüger, L. (1970) Erkenntnisprobleme der Naturwissenschaften. Texte zur Einführung in die Philosophie der Wissenschaft, Kiepenheuer & Witsch/Neue wissenschaftliche Bibliothek/Philosophie, Band 38, p. 436.


Mcallister, J. (1996) Beauty and Revolution in Science. New York: Cornell University Press.


Puig, C.F. (2018) O uso de critérios estéticos na escolha de teorias científicas. Tese (Doutorado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 147 pp.

Rovelli, C. (2018) Physics Needs Philosophy. Philosophy Needs Physics. Found Phys 48, p. 481–491 https://doi.org/10.1007/s10701-018-0167-y

Schiemann, G. (2009). “Welt im Wandel. Werner Heisenbergs Ansätze zu einer pluralistischen Philosophie” In: Schwarz, A. & Nordmann, A. Das bunte Gewand der Theorie. Vierzehn Begegnungen mit philosophierenden Forschern. Recuperado de: https://philarchive.org/archive/SCHWIW-2. Acesso em: 04/12/2019.


29 AAPV agrade os apoios financeiros da CAPES, através da modalidade CAPES-PRINT (nº 88887.368212/2019-00), CNPq, modalidade bolsa de produtividade (nº 304.945/201-5) ao Programa Prociência FAPERJ/UERJ, bem como a hospitalidade da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (UCP, Braga), onde o artigo foi redigido.

 

Videira, A.A.P. (2013) A inevitabilidade da filosofia na ciência natural do século 19 - O caso da física teórica. Ijuí: Editora Unijuí.